Muitos marxistas (e não só) implícita ou explicitamente restringem o domínio ideológico da «esquerda» à oposição à economia de mercado. Se alguém compactua, aceita, ou - pior ainda - defende a economia de mercado como alicerce das relações económicas (mesmo que depois enquadrado por leis que alteram o seu funcionamento no sentido de corrigir desigualdades, criar oportunidades, etc.), esse alguém não será «verdadeiramente» de «esquerda».
Parece-me errado definir a categoria desta forma, porque prejudica a comunicação. Se uma percentagem tão significativa das pessoas usa a palavra de forma diferente, este uso da mesma só pode criar confusão.
Pior que isso, quem usa o termo desta forma raramente é consistente. Se só quem se opõe à economia de mercado é de esquerda, é necessário retirar a implicação imediata - os portugueses não são de esquerda.
Em Portugal, quem deseja alterar as relações económicas no sentido de acabar com a economia de mercado é uma minoria. Essa minoria pode estar certa ou errada, não pretendo discutir tal tema neste curto texto. Mas não deixa de ser uma minoria, uma minoria que ronda (e talvez nem chegue) os 20% - uma em cada cinco pessoas. A vontade da maioria dos cidadãos, a vontade «do povo», «das ruas», «dos portugueses» não é a de acabar com a economia de mercado.
Será por ignorância? Por equívoco? Será devido à propaganda eficaz dos mais ricos ou à persuasão de políticos maliciosos que os servem? Será por conservadorismo, por medo do desconhecido? Será devido a uma natureza competitiva ou mesquinha? Ou será por bem senso? Ou será por uma percepção - intuitiva ou informada - das vantagens deste tipo de organização social? Não importa discuti-lo aqui, porque nenhuma destas justificações obsta ao facto: os cidadãos em geral e eleitores em particular, mal ou bem, não querem acabar com a economia de mercado.
É portanto necessária alguma consistência: ou «esquerda» é uma categoria suficientemente abrangente para abarcar uma fatia muito significativa (até tendencialmente maioritária) da população (caracterizada por uma preocupação com os valores da liberdade, igualdade, fraternidade; por uma vontade de ver o poder político e económico mais distribuído, menos concentrado) - ou esquerda é uma categoria que implica a vontade de abolir a economia de mercado como alicerce das relações económicas, e é uma ideia que - correcta ou incorrecta - é minoritária, marginal, em contradição com a vontade popular.
Concluo notando que isto não é uma especificidade portuguesa.
No resto da Europa, por exemplo, o mesmo acontece.