quinta-feira, 25 de abril de 2024

A laicidade na 2ª República: formalizada mas não praticada

 No dia 24 de Abril de 1974, se alguém perguntasse a um português médio qual era a instituição oficialmente não estatal que mais claramente apoiava o Estado Novo, a resposta seria muito provavelmente «a igreja [católica]». Todavia, na morte da ditadura não se fez o julgamento de meio século de união moral entre a maior igreja em Portugal e o regime de extrema-direita, nem se enterraram a generalidade dos ganhos políticos e institucionais que essa igreja conseguira através dessa aliança estreita. Pelo contrário, a laicidade seria, desde a fundação da 2ª República, garantida formalmente mas não praticada substancialmente.

A Revolução do dia 25 de Abril de 1974 deixou realmente, como se verá neste artigo, a República portuguesa actual com uma Constituição que contém um conjunto de preceitos que apontam no sentido da laicidade e poderiam moldar uma República laica. Todavia, os responsáveis políticos e institucionais ao longo das últimas cinco décadas escolheram não assumir a laicidade como um pilar do regime e até ignorar ou mesmo contradizer o espírito e a letra da Constituição de 1976, o que se tornou particularmente claro no século XXI a partir da Lei da Liberdade Religiosa (2001) e da celebração de uma nova Concordata com a Santa Sé (2004), e ainda por práticas políticas e institucionais sem resguardo nesses documentos, umas herdadas do Estado Novo e outras inovadas pela democracia, e que presumem o catolicismo como uma «religião de Estado» não oficial. As garantias de laicidade conferidas aos cidadãos na Constituição têm sido ignoradas nuns casos, defendidas noutros, e a evolução das relações com as comunidades religiosas tem sido nitidamente complexa. À questão «o Estado português é laico?» tem portanto que se responder que constitucionalmente sim, mas que a prática política e institucional se tem abstido de o concretizar, quando não tem contrariado activamente os princípios laicistas. Lamentavelmente, nenhum governo e nenhum partido desde 1976 apresentou uma vontade sistemática, coerente e continuada de laicizar as instituições estatais, ou sequer de assumir a laicidade como pilar fundamental da democracia.

  1. O que é a laicidade?

A laicidade não é a mera separação entre o Estado e as igrejas. É muito mais: é o princípio político de que o Estado se deve restringir a resolver os problemas do mundo que todos concordamos que existe. Dito de outra forma, significa que as concepções religiosas ou metafísicas não são um assunto público de que o Estado se deva ocupar e que devem ser deixadas à apreciação privada dos indivíduos. A laicidade desliga portanto a res publica – que se ocupa dos interesses comuns a todos – das finalidades religiosas – que são do interesse particular de grupos de cidadãos. A ligação política entre os indivíduos de uma República laica é assim a cidadania partilhada por todos, que deve ser exterior e cega aos laços religiosos ou de outro tipo de pertença que existam. Os valores fundamentais da laicidade são a liberdade de consciência, a igualdade dos cidadãos e a universalidade das leis. A liberdade de consciência inclui a liberdade de cada indivíduo ter uma religião, não ter religião alguma, mudar de convicção religiosa, e manter privadas as suas opções em matéria religiosa. A igualdade dos cidadãos significa que ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado pela sua opção em matéria religiosa, seja esta opção uma religião maioritária ou minoritária, ou uma opção espiritual não religiosa (como o agnosticismo ou o ateísmo). A universalidade das leis é a exigência de que não haja leis específicas para cidadãos que pertençam a uma comunidade religiosa: as leis devem ser feitas para todos, e cegas quanto às convicções em matéria religiosa. O reconhecimento de direitos específicos a comunidades religiosas (ou culturais, ou étnicas) introduz necessariamente diferenças de tratamento, e o direito à diferença, embora legítimo no quadro do exercício de liberdades iguais para todos, não pode descambar nas diferenças de Direito.

2. Do 25 de Abril à Constituição de 1976

    As circunstâncias da Revolução impuseram como urgências terminar a guerra colonial e constitucionalizar uma democracia pluralista. A colocação da laicidade como um preceito claramente definidor do futuro regime democrático não era incompatível com estes objectivos, e alguns dos novos protagonistas prometeram-no ao longo do primeiro ano do período revolucionário, designadamente preconizando a revogação da Concordata que em 1940 formalizara a aliança entre a igreja católica e uma ditadura que unia católicos militantes a fascistas e conservadores. Porém, num contexto em que os debates na sociedade e na própria Assembleia Constituinte se polarizaram em torno do carácter potencialmente socialista da 2ª República, e portanto do papel do Estado na economia, na comunicação social e mesmo nos sindicatos, a questão da laicidade foi secundarizada. Pior, a turbulência do processo revolucionário e a correlação de forças posterior ao Verão de 1975 empurraram grande parte do campo progressista para uma aliança de facto com a igreja católica, como os debates da Assembleia Constituinte demonstram. Em resumo, a laicidade seria garantida na Constituição de 1976, mas a sua aplicação prática não seria assumida como desejável pelas principais forças políticas, que evitaram causar qualquer abalo de maior ao poder fáctico da igreja católica, durante o período revolucionário e na instauração do novo regime.

    No período revolucionário e pré-constitucional, o avanço laicista mais importante foi o Protocolo Adicional à Concordata, assinado em 15 de Fevereiro de 1975 e que permitiu o divórcio aos casados pela igreja católica, mas que porém teve o efeito secundário de manter em vigor a Concordata. Esta revisão de um único artigo da Concordata de 1940 aconteceu na sequência de um movimento cívico protagonizado por Francisco Salgado Zenha e outros, tornado premente pelo grande número de casais que se tinham separado mas estavam impedidos de se divorciarem e voltar a casar por a Concordata não o permitir aos casados pela igreja católica1. Infelizmente, num sinal premonitório do que aconteceria nos meses seguintes, o próprio Protocolo Adicional reafirma explicitamente a vigência da Concordata, embora, insista-se, num momento ainda pré-constitucional.

    Nos debates da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de Abril de 1975 e formada a 2 de Junho desse ano, obviamente muito centrados na definição do carácter socialista da Revolução (e portanto em questões como o peso do Estado na economia e na sociedade ou os direitos dos trabalhadores), a laicidade não foi um ponto de discórdia saliente. Os preceitos constitucionais que estabelecem a laicidade da 2ª República foram aprovados por unanimidade em Agosto e Setembro de 1975. Desde então, a Constituição garante no seu artigo 41º que «a liberdade de consciência, religião e culto é inviolável» e que «as igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado». Todavia, o estatuto constitucional da escola privada face ao ensino público seria pretexto para um debate intenso em que a laicidade foi uma questão presente: a 9 de Setembro veio da Comissão de Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais um articulado que mantinha a extinção a prazo do ensino particular, e que garantia também que «o ensino oficial será laico». Ora, a 10 de Outubro a Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma Nota Pastoral tomando partido pela escola privada, e no dia 14 de Outubro os partidos maioritários na Constituinte recuaram obedientemente, abandonando a «integração do ensino particular no ensino oficial», e substituindo o carácter «laico» do ensino público pela sua «não confessionalidade». O «caso Renascença» e o «Verão Quente» tinham levado a uma aliança de facto dos sectores moderados com a igreja católica contra as esquerdas radicais, consumada no texto constitucional.

    3. O período de indefinição: avanços e recuos (1976-1999)

      Nas primeiras décadas da democracia, as relações entre o Estado e a igreja católica foram geridas com muita precaução pelo poder político, sempre desejoso de evitar um regresso à «questão religiosa» da 1ª República, mas as questões geradas por novos movimentos religiosos e pela secularização de grande parte da sociedade acabaram por colocar em causa o regime de relações que, através da Concordata, reconhecia uma única comunidade religiosa.

      O Acórdão nº423/87 do Tribunal Constitucional é provavelmente o acontecimento mais paradigmático deste período: constituiu simultaneamente uma pequena vitória e uma tremenda derrota para o laicismo. Vitória porque, por uma maioria de seis votos contra quatro, foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º de um Decreto-Lei que exigia de quem não quisesse frequentar a Religião e Moral Católica uma declaração expressa nesse sentido (obrigando assim à «exteriorização» de algo da «reserva pessoal», violando o nº1 – liberdade de consciência – e o nº4 – privacidade – do artigo 41º da Constituição); derrota porque, por cinco votos a favor e cinco contra – desempatados pelo voto do Presidente do Tribunal Constitucional – não se declararou inconstitucional mais nenhum dos restantes cinco artigos do Decreto-Lei.

      Entre os juízes vencidos na declaração de inconstitucionalidade da generalidade do Decreto-Lei, Luís Nunes de Almeida afirma, na sua declaração de voto, que os demais cinco artigos «ao estabelecerem que o ensino da religião e moral católica é ministrado pelas escolas públicas, integrando o respectivo currículo escolar normal, a expensas do Estado e através de agentes seus, violam o princípio da separação das igrejas do Estado, consignado no nº4 do artigo 41º, o princípio da não confessionalidade do ensino público, vertido no nº3 do artigo 43º, e o princípio da igualdade, reconhecido no artigo 13º da Constituição da República portuguesa». Nunes de Almeida afirma no seu voto de vencido que «não é legítimo que o Estado assuma como coisa sua, adoptando-o oficialmente, o ensino de qualquer religião. Tal ensino é livre (…) mas tão-só quando praticado no âmbito da respectiva confissão», e defende um modelo próximo do francês, em que o Estado «emprestasse» os edifícios escolares para o ensino da religião, sem que este ensino fosse parte do currículo escolar nem os professores, por o serem, tivessem relação com o Estado. Uma solução que seria aceitável para os laicistas.

      Noutra esfera do poder estatal, nos anos 80 e 90 vários governos cederam às pressões da igreja católica para ter (mais uma) frequência nacional de rádio, primeiro, e depois até um canal de televisão.

      Na Assembleia da República, em 1998 os partidos políticos não tiveram a coragem de legislar a Interrupção Voluntária da Gravidez decisivamente, acabando por remeter a questão para um referendo nacional, que foi ganho tangencialmente – para espanto de muitos – pelo campo clerical (51% contra 49%), após uma campanha que demonstrou que a igreja católica tinha maior capacidade de mobilização que as organizações da sociedade civil secularizada.

      Contudo, a sociedade mudava: em meados dos anos 90, foi com intolerância e até hostilidade que os media descreveram as aquisições imobiliárias e manifestações públicas de um novo movimento religioso, a Igreja Universal do Reino de Deus. O período histórico em que o catolicismo era a religião «natural» dos portugueses estava a terminar, e tornavam-se prementes alterações no enquadramento legislativo.

      4. O desvio comunitarista (de 1999 à actualidade)

        O debate que haveria de conduzir à Lei de Liberdade Religiosa (LLR) de 2001 e à Concordata de 2004 seria marcado por duas dinâmicas opostas: os defensores da laicidade – que chegaram a tentar que a LLR se aplicasse à igreja católica – e os defensores do estatuto privilegiado do catolicismo, que no essencial acabaram por triunfar. Efetivamente, nos seus primeiros artigos a LLR densifica os direitos individuais em matéria de religião de uma forma laicista, mas no seu artigo 58 exclui a igreja católica da aplicação da lei em matéria de direitos coletivos de liberdade religiosa, hierarquizando as comunidades religiosas. A LLR permitiu de facto alargar a algumas comunidades religiosas privilégios de que a igreja católica já gozava (do reconhecimento de casamentos às isenções fiscais), mas a predominância do catolicismo sobre outras comunidades religiosas não foi beliscada.

        A Concordata de 2004 manteve o reconhecimento da ordem interna da igreja católica (o «Direito Canónico») no Direito da República, comprometeu o Estado com a oferta de Educação Moral e Religiosa Católica na Escola Pública, e garantiu a «afetação permanente» para o culto católico, livre de encargos, de uma parte significativa do património monumental do Estado. Em 2009, um conjunto de Decretos-Lei sobre a assistência religiosa nos hospitais, prisões, e nas forças armadas e de segurança viria garantir que, embora o acesso de outras comunidades religiosas aos crentes confinados nessas instituições fosse livre, só os capelães católicos seriam remunerados pelo Estado. Práticas clericais como a realização de cerimónias religiosas em escolas públicas, universidades ou inaugurações de obras mantêm-se, mesmo sendo ilegais.

        Seguir-se-iam outras «Concordatas»: em 2015, a chamada «lei dos sefarditas», que veio permitir que as sinagogas interviessem directamente nos processos de aquisição de nacionalidade dos descendentes de judeus sefarditas; e o acordo com a Comunidade Ismaelita, que reconheceu imunidades judiciais e isenções fiscais. Avança-se no sentido, bem pouco republicano, de cada comunidade religiosa ter uma lei própria, aquilo que se pode designar por desvio comunitarista. O horizonte republicano em que todos os cidadãos terão os mesmo direitos independentemente da pertença religiosa fica cada vez mais longe.

        Entretanto e em sentido contrário à evolução legislativa, a sociedade não parou de se secularizar: em 2007, os casamentos civis passaram a ser mais de metade dos novos casamentos; e em 2015, mais de metade das crianças já nasceram de pais que não estavam casados. Simultaneamente, o mesmo poder político que nunca desafiou o poder institucional e económico da igreja católica mostrou-se sensível às alterações nos costumes: em 2007, a IVG foi despenalizada após novo referendo, vencido pelo «sim» (por uma confortável margem de 59% contra 41%); em 2010, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado; e em 2023 foi finalmente legislada a morte assistida.

        Se a laicidade nos deve proteger da ditadura da maioria, temos infelizmente que reconhecer a 2ª República manteve um regime de favorecimento simbólico e financeiro da igreja católica. Numa época em que as mudanças e os movimentos de povos aceleraram, e em que Portugal recebe um contingente significativo de muçulmanos asiáticos e evangélicos brasileiros, pode perguntar-se como será gerida a diversidade para que Portugal inexoravelmente caminha: através de um regime de predominância do catolicismo como «religião de referência», de um regime comunitarista de reconhecimento de direitos diferentes conforme as comunidades religiosas, ou por um regime de laicidade em que todos os cidadãos sejam livres e iguais?

        (Revista Ágora nº2, Abril de 2024)

        1«Artigo XXIV: Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis ao casamento católico.» [Redação de 1940 da Concordata]

        sábado, 12 de agosto de 2023

        Sim à Laicidade, não à Concordata

        Portugal assiste por estes dias a um evento católico assumidamente promovido pelo Governo da República e por muitas autarquias. Uma grande parte dos cidadãos critica o apoio financeiro do Estado e a submissão simbólica da República à Igreja organizadora, mas não a realização do evento (que decorre da liberdade religiosa). A jornada da juventude católica, um acontecimento pontual, permite lançar um olhar para formas mais sistemáticas de favorecimento.

        A Laicidade existe para nos proteger da ditadura da maioria, inclusivamente em liberdades tão fundamentais como as de consciência, expressão e circulação, mas nem é certo que a maioria hoje concorde com a promoção estatal deste evento ou com outras excepcionalidades católicas. O catolicismo foi, no passado, a religião oficial do Estado português, imposta sem piedade. Não espanta portanto o automatismo com que 78% dos residentes se identificam como "católicos" ao censo. Mas deve reflectir-se em como o comportamento social é radicalmente incongruente: 60% das crianças nascem fora do casamento, 70% dos casamentos são civis e existem 60 divórcios por cada 100 casamentos (metade dos quais de casamentos religiosos).

        No caso concreto da jornada da juventude católica, uma sondagem concluiu que 48% dos respondentes consideram que o apoio financeiro deveria ter sido menor, enquanto só 6% defendem que fosse maior e 42% concordam com o apoio dado. Existe portanto uma cada vez maior contradição entre a reverência institucional e o anacrónico favoritismo com que o poder político lida com a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), e o comportamento social e a vontade política dos cidadãos.

        A indignação contra a promoção simbólica e financeira desta jornada pode orientar-se para mudar este estado de coisas. O privilégio estrutural da ICAR em Portugal tem desde 1940 um instrumento jurídico, actualizado em 2004: a Concordata. Estabelece um regime de excepção que, ao contrário de todas as outras comunidades religiosas, reconhece automaticamente a ordem interna dessa Igreja (o "Direito Canónico") por exemplo na criação, extinção e modificação de associações e fundações, compromete a República com a oferta de "Educação Moral e Religiosa Católica" em todas as escolas públicas com professores nomeados pela autoridade eclesiástica mas contratados e pagos pelo Estado, e garante a "afectação permanente", livre de encargos, para o culto católico de uma parte significativa do património monumental do Estado. Portanto, a Concordata não confere direitos: atribui privilégios.

        Um passo decisivo para afirmar a igualdade de tratamento das comunidades religiosas (e também dos cidadãos) será revogar a Concordata, como pede a petição da Associação República e Laicidade à Assembleia da República, e aplicar a Lei da Liberdade Religiosa à ICAR. Todos os direitos necessários ao livre exercício de qualquer religião estão garantidos pela Constituição de 1976, lei fundamental do Estado português que garante as liberdades de religião e de culto, assim como as liberdades de expressão e de reunião.

        Um outro passo necessário será suprimir o n.º5 do artigo 135 do Código Penal, que coloca o segredo religioso acima do sigilo das profissões laicas, e também revogar o artigo 5.º da Concordata, que estipula que os "eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério".

        Finalmente, é claramente necessário discutir se a liberdade de consciência de cada um é realmente respeitada enquanto os impostos de todos os cidadãos financiam templos e cerimónias de uma qualquer confissão religiosa, seja a católica, a islâmica, a judaica ou a evangélica. Mais de um século depois, volta a compreender-se o sentido do artigo 4.º da Lei de Separação das Igrejas do Estado de 1911: "A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum".

        (Público, 3 de Agosto de 2023)

        sábado, 29 de julho de 2023

        Petição pela revogação da Concordata

        A Associação República e Laicidade lançou uma petição pela revogação da Concordata, que pode ser assinada aqui:

        Como reproduzido na TSF:

        • «O "favorecimento simbólico e financeiro da Igreja Católica toma formas pontuais", como a Jornada Mundial de Juventude (JMJ), que decorre de terça-feira a domingo, em Lisboa, e "formas mais sistemáticas, como a existência de 'Educação Moral e Religiosa Católica' na escola pública, a proteção do 'segredo eclesiástico' ou as isenções fiscais de que beneficiam as instituições católicas", lê-se num comunicado da associação. A associação, que já tinha criticado os gastos com o altar-palco da jornada, alertou ainda que o "favorecimento sistemático de uma comunidade religiosa é incompatível com a Constituição de 1976, e a laicidade do Estado só será concretizada se se revogar a Concordata". Só dessa forma se poderá "caminhar para a igualdade de tratamento entre comunidades religiosas e para a igualdade entre cidadãos de diferentes opções"».

        terça-feira, 11 de abril de 2023

        Se adormecemos no banho é porque a temperatura da água está boa

        Numa comunicação apresentada no Instituto "Mais Liberdade" e reproduzida na forma de ensaio no suplemento P2 do PÚBLICO de 19 de Março, João Miguel Tavares estabelece uma metáfora entre o equilíbrio no confronto das forças e ideias políticas e a temperatura ideal da água para tomar banho. Embora o autor faça dessa metáfora quase um programa político, a mesma parece-me bastante simplista e redutora. Para esta conclusão, basta considerar alguns casos onde ela é aplicada referidos no mesmo artigo. 
        Com efeito, a temperatura com a qual se atinge o conforto térmico, salvo pequenas variações, é mais ou menos a mesma para todos os seres humanos. Pode haver pessoas mais e menos friorentas ou encaloradas, mas é seguramente muito mais fácil encontrar um consenso para a temperatura da água do banho do que para uma política a seguir. Não é preciso um grande conhecimento de canalização para regular a temperatura da água do banho: com torneiras e esquentador funcionais é um problema simples. Mas governar é tudo menos simples, e uma das razões para isso é a enorme disparidade de ideias e pontos de vista, não traduzíveis numa dicotomia simplista de água fria ou quente. (É curioso que o autor classifique como redutora a dicotomia esquerda-direita, para depois acabar por resumir o seu pensamento político a uma dicotomia bem mais redutora.) Genericamente, a "metáfora do duche" parece pretender defender as virtudes do compromisso político. Essas virtudes são bem reconhecidas, mas esse compromisso tem que se estabelecer com base em convergências e pontos de vista comuns. Esses pontos de vista nunca são universais. 
         A primeira falha da metáfora está neste ponto: Tavares pretende convencer-nos de que toda a gente deve partilhar a bondade das suas ideias, como se fosse a temperatura da água do banho (daí o título: Portugal precisa de abrir a água fria, como se fosse um facto). Para nos demonstrar essa bondade e que ele próprio é um "centrista moderado" que toma banho em água morna, Tavares manifesta a sua admiração por Obama e demarca-se do pior dos EUA, o capitalismo selvagem e a total ausência de um Estado Social ou, na sua metáfora, a água gelada. Para os EUA Tavares aceita, portanto, um duche de água quente. Pela mesma lógica da metáfora, o duche de água fria deveria destinar-se a países com a água muito quente. O curioso é que os exemplos do que seria água muito quente são muito genéricos: países "de constituição de matriz marxista". Na verdade, Tavares defende que em Portugal se abra a torneira da água fria, mas não julga que a temperatura da água do banho esteja muito alta! É o próprio autor que reconhece - e acusa - o governo e a esquerda que antes o apoiava de manterem o país "adormecido", ou seja, necessariamente em conforto térmico. Não que eu concorde com este diagnóstico, pelo menos no presente, mas o que me importa aqui sublinhar é que Tavares defende que baixemos a temperatura da água do nosso banho, não por esta estar excessivamente quente, mas por achar que devemos tomar banho em água mais fria, independentemente de vivermos numa casa com aquecimento central, numa casa sem conforto térmico ou de sermos sem-abrigo. Esta opinião do autor é democrática e legítima, mas é uma opinião. Querer disfarçá-la como moderada, "de centro" e de equilíbrio é que me parece enganador e errado. 
        A justificação para esta opinião é a habitual ("não há dinheiro"), mas mais uma vez disfarçada: "a esquerda é mais cara do que a direita". Leia-se: não há dinheiro para conforto térmico para todos; há quem, tendo aquecimento central em casa, não queira mais contribuir para o aquecimento geral da água do banho. A política do governo de Passos Coelho é descrita como tendo-se limitado a aplicar o memorando da troika e não podendo ter procedido de forma diferente (mesmo tendo em conta a miséria, o desemprego e a emigração em valores recorde): nas palavras de Tavares, tudo isso foi um "duche de água fria obrigatório", preferindo assim ignorar os aspetos desse duche que apesar de tudo não eram nada obrigatórios: nomeadamente as privatizações, muito além do previsto, e os cortes nos salários e nas pensões, que a troika exigiu que fossem temporários mas que Passos quis tornar permanentes. 
        Só estes exemplos bastariam para demonstrar que, ao contrário do que Tavares vem afirmando há mais de dez anos, as políticas do governo de Passos foram uma opção ideológica (de direita), e não uma inevitabilidade. Se João Miguel Tavares não consegue ver isto, é porque provavelmente para si não há opção às políticas de direita: tais políticas são sempre uma inevitabilidade. É por isso que classifica as suas propostas como centristas e moderadas, quando de centristas e moderadas não têm nada. Tenta apresentá-las como um duche de água fria quando na verdade pretende baixar definitivamente a temperatura, independentemente do conforto térmico dos portugueses. A metáfora "Portugal precisa de abrir a torneira de água fria" traduz-se de uma forma muito mais simples, menos enganadora, como "só sairemos desta situação empobrecendo". Onde é que já ouvimos isto?

        sábado, 18 de março de 2023

        O Elefante no Meio da Sala

        A revista "A Gralha" publicou um artigo que escrevi chamado "O Elefante no Meio da Sala". Nele argumento que, no que concerne ao combate às alterações climáticas na Europa, não existe nenhuma questão tão importante como o abandono do Tratado da Carta da Energia (TCE):

        «O Tratado da Carta da Energia estabelece um sistema de justiça paralelo que coloca as empresas multinacionais numa situação de privilégio face às empresas nacionais em geral, mas também ameaça as finanças públicas, a economia e a Democracia. É um obstáculo à luta contra a pobreza energética e as rendas excessivas, sendo plausível que em Portugal tenha estado associado à demissão do secretário de Estado da Energia Jorge Seguro Sanches por ter lutado com eficácia contra estas rendas.

        Além disto, para o período entre 2018 e 2050, o TCE protege um volume de emissões que é cinco vezes superior ao volume que a UE pode emitir no mesmo período se quiser atingir o alvo de 1,5º estabelecido no Acordo de Paris. O TCE é completamente incompatível com os compromissos climáticos assumidos pela União Europeia e qualquer decisor político tem obrigação de saber que é impossível respeitá-los sem abandonar este acordo.»

        Neste momento já vários países abandonaram ou anunciaram abandonar o TCE, correspondendo a mais de 70% da população da UE, e o abandono coordenado, recomendado pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia, estão em cima da mesa. É um momento absolutamente crucial e a decisão do governo português - seja a de apoiar publicamente este processo, seja a de se opor silenciosamente - vai ter mais impacto no combate às alterações climáticas que a totalidade de todas as suas medidas no plano nacional. Se não apoiar publicamente este processo, estará a contribuir directa e consequentemente para o incumprimento do Acordo de Paris, apenas para proteger os lucros excessivos da EDP e outras empresas que tais. 



        segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

        A “lei dos sefarditas”: um erro histórico

        Há dez anos, aprovou-se por unanimidade na Assembleia da República a alteração à lei da nacionalidade conhecida como "lei dos sefarditas". Afirmou-se no debate parlamentar que se pretendia "a promoção do retorno a Portugal dos descendentes dos judeus expulsos ou perseguidos" (Simões Ribeiro, PSD), fez-se votos de que "'a planta do pé dos judeus' que têm raízes em Portugal 'aqui ache descanso'" (Maria de Belém, PS) e falou-se mesmo em "reparação histórica" por ser "muito bom podermos tê-los de volta" (Ribeiro e Castro, CDS).

        Quase uma década passada (a lei entrou em vigor em 2015), deve-se aferir se era real o desejo de "retorno" a Portugal que os deputados tomavam por generalizado nos judeus sefarditas espalhados pelo mundo. "Voltaram"?

        O número de locais de culto judaicos em Portugal manteve-se estável nestes anos: quatro sinagogas. Mas o número de residentes que se identificam como "judeus" nos censos do INE até baixou: passaram de 3061 em 2011 para 2910 em 2021. Sublinhe-se: certificados pelas sinagogas de Porto e Lisboa quase 140 mil processos de aquisição de nacionalidade, concluídos pelo Estado mais de 50 mil, a pequena comunidade de três mil judeus que realmente cá vive teve um ligeiro declínio. Todavia, bastaria que apenas 1% dos que obtiveram a nacionalidade (ou seja, uns quinhentos cidadãos) aqui viessem residir para que essa comunidade crescesse. Mas o "retorno" não aconteceu. Nem é plausível que aconteça.

        O interesse na nacionalidade portuguesa destes nossos novos compatriotas tem uma explicação prosaica: para nacionais de Israel, da Turquia ou do Brasil (respetivamente, 69%, 15% e 7,5% dos naturalizados pela "via sefardita"), um passaporte da União Europeia abre novas portas pelo mundo, sem novos deveres e por um custo individualmente razoável. Multiplicado por dezenas de milhares de processos, esse custo (250€ por certidão) ascende aos milhões de euros e enriqueceu tremendamente a sinagoga do Porto (quase 90% dos pedidos de nacionalidade, muito acima de Lisboa), uma pequena comunidade religiosa de 400 pessoas que financia filmes com orçamentos milionários.

        É triste que uma lei feita com o pensamento elevado numa "reparação" aos judeus massacrados pelas turbas quinhentistas, perseguidos pela Inquisição ou pelos nazis, caia na realidade rasteira de um negócio de venda de passaportes por intermédio de sinagogas. Um negócio que nacionaliza principalmente israelitas que nem devem saber apontar Portugal no mapa, e em menor número oligarcas russos coniventes com a autocracia de Putin, em ambos os casos pessoas que não querem partilhar o nosso destino, falar português ou sequer residir em Portugal. Mas evidencia que as leis de "reparação histórica" são uma ilusão: não se emenda o mal feito a falecidos, e é um absurdo fazê-lo 15 ou 20 gerações depois (distância à qual qualquer um de nós tem entre 30 mil e um milhão de antepassados).

        Respeitar estritamente a laicidade do Estado teria evitado a trapalhada vergonhosa em que se converteu a "lei dos sefarditas". Respeitar a laicidade não delegando tarefas estatais em comunidades religiosas, particularmente uma tarefa de especial responsabilidade como a instrução de processos de nacionalidade. E respeitar a laicidade com leis universais que não distingam cidadãos por religião, como aliás estipula o artigo 13.º da Constituição (a "lei dos sefarditas" ignora completamente os descendentes de muçulmanos ou protestantes que saíram de Portugal devido a perseguições religiosas).

        Retirar direitos a pessoas por serem de uma religião foi um erro manuelino mas típico do tempo medieval; conferir direitos a indivíduos por serem dessa mesma religião é um erro moderno, mas anacrónico, numa época em que se caminha para não distinguir cidadãos pela religião ou pela etnia.

        Não há razões válidas para o Parlamento adiar a inevitável revogação desta lei.


        (Público, 18 de Fevereiro de 2023)

        quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

        Laicidade em Portugal: perspetiva histórica e filosófica

        Palestra na Biblioteca dos Coruchéus, no dia 24 de Fevereiro de 2023.

        terça-feira, 31 de janeiro de 2023

        Igualdade de oportunidades ou igualdade de resultados? Sim!

        Há quem afirme que uma questão política crucial é saber se queremos igualdade de oportunidades ou igualdade de resultados. Dificilmente poderia discordar mais.

        Afinal, ao promover a igualdade de oportunidades vamos aumentar a igualdade de resultados; e ao promover a igualdade de resultados vamos aumentar a igualdade de oportunidades.
        Por essa razão, as sociedades com mais desigualdade de oportunidades são as com maiores desigualdades de resultados e vice-versa.
        Em todas as disputas políticas relevantes, aquela opção que aumenta a igualdade de oportunidades também aumenta a igualdade de resultados e vice-versa.

        Em teoria, pode existir uma incompatibilidade entre estes dois objectivos? Sim: numa sociedade com inteira igualdade de oportunidades que ainda assim tivesse desigualdade de resultados, esses dois objectivos estariam em oposição. Nesse contexto ou noutros muito semelhantes, esse debate seria consequente e politicamente importante.
        Mas para as sociedades em que vivemos neste planeta, essa discussão é como estar no deserto do Saara, perdidos com uma bussola e um mapa, e discutir se o mapa está orientado para o Norte magnético ou o Norte geográfico: é uma discussão inconsequente e irrelevante. Se queremos ir para Norte, ir para onde a bússola aponta é boa ideia, mais grau, menos grau.
        Quem quer lutar por mais igualdade é favorável quer à igualdade de oportunidades, quer à maior igualdade de resultados que daí resulta; ou a maior igualdade de resultados também pela maior igualdade de oportunidades que daí advém. Estar a discutir qual destas é prioritária é pouco relevante.