quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Revista de blogues (28/2/2007)

  1. «É possível a vida humana sem Estado, a sociedade sem Estado. Nesta, existe a liberdade do mais forte – por exemplo, a liberdade para cometer homicídio. Tal sociedade e tal liberdade, contudo, nada têm a ver com o Liberalismo. O Liberalismo, pelo contrário, representa a evolução da organização social na dependência de um Estado. O Liberalismo representa uma forma elaborada e historicamente evoluída do estatismo. Não existe Liberalismo sem estatismo, sem a existência de Estado. Sem Estado, não existe o Liberalismo, mas poderá existir uma vida "solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta". A liberdade individual, entendida como a liberdade da generalidade dos indivíduos, no contexto de uma dada civilização, não é incompatível com a existência de um Estado. Muito pelo contrário, a existência de um Estado é uma condição sine qua non para a liberdade individual (mas certamente não é condição suficiente).» («O Estado, condição sine qua non do Liberalismo», no Blasfémias.)
  2. «Tem sido de todo interessante o debate autofágico em curso em blogues liberais. Aquele que em tempos anunciaram como "o maior defensor da liberdade em Portugal nos últimos 20 anos" (sic), Pedro Arroja, afinal resume o seu "liberalismo" a duas teses peregrinas: a de que a instituição mais liberal de sempre terá sido a Igreja Católica, e a de que Salazar era liberal. (...) Por outro lado, é significativo que senhores como Arroja ou André Azevedo Alves se sintam hoje tão à vontade para defender a ICAR e o salazarismo com a maior das desfaçatezes. Deve lembrar aos mais distraídos que a Democracia não é um facto, antes uma circunstância, e que o nosso esquecimento e alheamento são o terreno dos novos salazares, desta vez, suprema das ironias, mascarados de liberais.» («O liberal-salazarismo», no 2+2=5.)

Referendar

No Diário de Notícias de hoje, uma sondagem diz-nos que «os portugueses» querem mais referendos (65%), particularmente se forem sobre a «Constituição Europeia» (71%). Muito bem. Sou contra referendos sobre direitos fundamentais ou alíneas do código penal. Sou a favor de referendos sobre tratados internacionais. Dois exemplos: a nossa presença na OTAN e os passos sucessivos da União Europeia deveriam ter sido referendados.

Religião

Uma das consequências mais terríveis da educação religiosa é aumentar a tolerância das pessoas às coisas ilógicas e disparatadas.

Hoje um amigo meu, inteligente, culto e viajado, dizia-me que tinha ouvido uma conferência de um senhor – por acaso não cientista – que dizia que isto do aquecimento global era um exagero da esquerda, e que devíamos ter cuidado para não nos preocuparmos demais com o clima e esquecermos a pobreza do mundo.


Eu, que não me lembro quando foi a última vez que as companhias petrolíferas e a indústria automóvel se preocuparam com a pobreza do mundo, não tenho muito medo que a questão do aquecimento global os venha a distrair e acho delicioso que seja a extrema direita a trazer o problema da miséria e da desigualdade para a discussão.

Mas assutou-me ouvir o meu amigo a repetir disparates sobre o futuro.

E depois lembrei-me: ele é um católico devoto. De acreditar que a Nossa Senhora subiu a uma árvore em Fátima para dizer mal da Rússia a três pastorinhos analfabetos até acreditar que a indústria petrolífera tem medo que as preocupações ambientais distraiam o capitalismo selvagem dos problemas da miséria em que vive o Terceiro Mundo...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Bento Domingues, um padre grosseirão

Num artigo saído no Público no dia 24 de Dezembro de 2006, o cidadão Bento Domingues tratou os laicistas de «estúpidos sem fronteiras», «importante colecção de cretinos», «quadrilha de idiotas», e falou também em «manifesta tolice» e «burrice mais aguda».

Se o sr. Domingues tivesse escrito que os africanos são «cretinos», seria racista. Se tivesse designado os judeus por «quadrilha de idiotas», seria anti-semita. Se tivesse chamado «estúpidos» aos brasileiros ou aos chineses, seria xenófobo. Se o Público tivesse editado um artigo aludindo à «burrice» católica, dez bispos gritariam «a ICAR está a ser perseguida». Se o alvo fossem os muçulmanos, haveria uma crise internacional. Se um militante do PS (ou de outro partido) tratasse, nos jornais, os do PSD (ou de outro partido) de «estúpidos», «cretinos» e «idiotas», seria excluído do debate público. No entanto, este género de linguagem ordinária é permitido a um grupo específico de portugueses, os sacerdotes católicos. Haverá justificação para se ser eticamente menos exigente com estes senhores? Eu penso que não.

O artigo referido veio na sequência de uma célebre campanha do jornal Público, durante a qual o militante clerical António Marujo tentou convencer os leitores de que iam laicistas a casa das pessoas impedi-las de fazer presépios ou de sairem para a «missa do galo». A campanha era montada a partir de falsidades e meias-verdades, e duvido que Frei Gambozino Domingues não o soubesse. Foi grosseiro gratuitamente.

Por um misto de paternalismo e comiseração por quem ganha a vida a vender uma banha da cobra chamada «ressurreição», a contar patranhas sobre as leis da natureza e sobre acontecimentos históricos, e a meter-se na vida dos outros, muitas pessoas tendem a ter padrões éticos mais baixos para os sacerdotes católicos. É um erro. Qualquer padre pode compreender que a «ressurreição» é treta, e que não é por querer agradar a divindades abstractas que se deve ajudar as pessoas concretas. Resta acrescentar que certos ingénuos e ingénuas acham Frei Gambozino «tolerante». Eu não percebo se os insultos que profere são toleráveis para essas pessoas. Para mim, não são.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

domingo, 25 de fevereiro de 2007

O crescimento económico no período democrático

No Vento Sueste, o Miguel Madeira publicou este quadro para o crescimento económico de alguns países europeus desde 1974:

1974-2001 2002-2007 1974-2007
Irlanda 4,65% 5,25% 4,76%
Luxemburgo 4,52% 3,60% 4,36%
Espanha 2,64% 3,10% 2,72%
Grécia 2,38% 4,03% 2,67%
Portugal 2,97% 0,66% 2,56%
Bélgica 2,58% 1,85% 2,45%
Paises Baixos 2,53% 1,61% 2,37%
França 2,31% 1,68% 2,20%
Reino Unido 2,08% 2,57% 2,17%
Itália 2,36% 0,70% 2,07%
Dinamarca 1,93% 1,88% 1,92%
Alemanha 2,14% 0,86% 1,91%

Realmente a democracia portuguesa tem sido uma desgraça...

Revista de blogues de esquerda (25/2/2007)

  1. «(...) não pude deixar de me lembrar do supra referido ensaio de Arendt baseado no Anti-semitismo quando tomei conhecimento do escândalo denunciado pelo correspondente do diário francês Libération em Bruxelas. Sucede que Maciej Giertych, deputado europeu eleito pelo (e membro directivo do) Partido das Famílias Polacas (como já variadíssmas vezes foi aqui referido no Devaneios, trata-se de um partido de extrema direita em pleno Governo da Polónia) resolveu lançar, escandalosamente apoiado com subvenções do Parlamento Europeu, um livro onde faz, sem pudores, a apologia do Anti semitismo. Semelhante professor universitário (???) das hostes mais extremistas do poder polaco fala-nos da impossibilidade de cohabitarem a "civilização europeia e a judaica" em plena Europa. Explica-nos detalhadamente como os judeus preferem eles mesmos viver em ghettos ("Hitler apenas os forçou"), regendo-se pelas suas próprias regras e assegurando a devida distância "de todos nós". Como se não bastasse, Maciej Giertych assegura-nos ainda que "embora não sendo uma raça diferente, o desejo de viverem separados nas suas próprias comunidades tornou-os biologicamente diferentes".» («anti-semitismo subvencionado», no Devaneios Desintéricos.)
  2. «No Diário de Notícias de domingo, é-nos apresentada uma série de licenciados no desemprego ou que vivem de biscates. (...) Olhando para o perfil dos licenciados em questão, vê-se que todos eles têm algo em comum. O quê? Não o terem estudado numa universidade privada: a maioria dos seleccionados até estudou no sector público. (...) O que têm todos em comum? Muito simples: são “de letras” no secundário. Não estudaram matemática a partir do 10º ano. E agora deu nisto que se vê. É essa a característica básica do desempregado licenciado. Anos e anos de tolerância com o desinteresse e as más notas pela matemática deram nisto. Mais do que um “Plano Nacional de Leitura”, do que Portugal precisa urgentemente é de um “Plano Nacional de Matemática”. Que poderia começar pela obrigatoriedade da frequência desta disciplina até ao 12º ano, qualquer que fosse o “agrupamento” de opção escolhido.» («Quando as letras não pagam as expectativas», n´o Avesso do Avesso.)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Pedro Arroja

Este tipo de comentários incendiários tem como objectivo único reter a nossa atenção. Não precisam de ser coerentes, nem racionais, nem honestos. São o que Daniel Dennett chama “jogar ténis sem rede”. Como não há regras não é preciso acertar sequer na bola.

E os media precisam de cada vez mais pessoas assim – como o Pedro Arroja ou o Alberto João Jardim, que Eduardo Prado Coelho definiu como uma mistura do João Baião com o Jean Marie le Pen – para manter a nossa atenção.

Os jornais e as televisões são cada vez mais um deserto de ideias e os publicistas sabem que a nossa atenção é cada vez mais curta. O resultado são os Pedros Arrojas e os homens das Neves, que ao menos ainda são capazes de nos indignar.

Mas eu acho que nos só nos indignamos se os lermos como se fossem comentários sérios. Quando a Anne Coulter aqui decidiu revelar ao mundo de o presidente Clinton era gay o pessoal desatou a rir, e houve um comediante que emitiu um “comunicado oficial” do gabinete de Clinton a dizer que ele lhe tinha de facto dito numa festa que era homossexual, mas só porque ela se estava a atirar a ele ferozmente e ele achava que o rabo dela era só pele e ossos.

O Dr. Arroja merece a nossa atenção, mas não acho que lhe devamos falar a sério das câmaras corporativas e dos directores gerais lapuzes e autoritários, broncos e horteiros, que promoviam a ideia de um país sem sapatos, sem estradas, com gorilas nas universidades, e uma classe média campónia, com uma capoeira nas trazeiras (com coelhos e galinhas).

Talvez lhe devamos em vez disso agradecer por nos relembrar, numa altura em que se considera Salazar o melhor português dos últimos 1000 anos, que de facto a actividade das mercearias de bairro não era lá muito regulamentada... e que por isso Portugal era o único país da Europa onde ainda se morria de Cólera nos anos setenta.

Revista de blogues de direita (23/2/2007)

  1. «No Blasfémias, o Pedro Arroja continua a escrever sobre o Estado Novo. Em tempos, teve oportunidade de dizer que, no que tocava à esfera dos interesses privados a que pertence a actividade económica, o Portugal de Salazar era uma sociedade liberal. Agora, diz que o Estado Novo ofereceu uma pequenez do Estado em termos económicos, deixando uma ampla margem de liberdade à iniciativa privada. É questão para pasmar, como pasma Helena Matos, que se discuta com tanto afã uma espécie de reabilitação liberal, ainda que restrita à esfera económica, do Estado Novo. Que houve sucesso económico, os números aí estão para o demonstrar. Mas importa não esquecer em que assentou tal sucesso e à conta de quê ele se solidificou. Esquecê-lo, seria equiparar o liberalismo ao eficientismo. Se resultar é bom e liberal, se falhar é mau e outra coisa qualquer. Pode uma economia verdadeiramente liberal conviver com os monopólios criados e forçados por lei? Com os benefícios estaduais a um conjunto privilegiado de banqueiros e industriais? Com trocas económicas entre indivíduos que não são livres? Com produtos proibidos porque não e outros impostos porque sim?» («Estado Novo (i)liberal», no Arte da Fuga.).
  2. «Presumo que a maioria dos católicos, nos quais incluo o André Azevedo Alves (perdoe-me, se não for o caso), acredita que existiu contacto entre os pastorinhos e a mãe de Jesus Cristo. Assim de repente, em Portugal, só me lembro, além deste, do caso de D. Afonso Henriques que teria tido uma espécie de visão ou rápida conversa (desculpe a imprecisão) com o próprio Jesus. Quantas vezes, nos últimos séculos, deu esta Senhora a honra de aparecer a meros mortais católicos ou não espalhados pelo mundo? Poucas, muito poucas. Mas, a honra concedida não acaba por aqui e a previsão da ingratidão também foi feita: o Anjo (que se auto denomina Anjo Portugal, enfatize-se a honra) ensina novas orações onde se refere expressamente a “homens ingratos”. Chame-me infantil (já perdi a conta aos simpáticos nomes com que me vem obsequiando) mas, pensava, na minha patética ignorância que uma honra destas deveria ter outro apreço, pelos vistos estou enganado.» («Atirem-me água benta II», no 31 da Armada).

O marxismo não é anti-religioso

As resistências de alguma esquerda a criticar o islão político foram brevemente afloradas nos comentários a um artigo recente. (Mais sobre isso nos próximos dias.)
Há um equívoco de base: Marx não era anti-religioso (e nem sequer anticlerical); não concebia, de forma alguma, a crítica da religião como um fim em si mesmo, e, se a admitia, subordinava-a à luta socialista. Reduzir a visão marxista da religião ao bitaite do «ópio do povo» é superficial, conforme já expliquei. (Postular uma origem do laicismo no bitaite cristão sobre «César» e «Deus» é ainda mais superficial, mas isso fica para outra ocasião...)
Num artigo publicado na revista trotsquista Combate, o marxista Michael Löwy apresenta um curto historial do pensamento marxista sobre a religião. Vale a pena a leitura. Começa por afirmar que «o ponto de vista de Marx, em 1844, deriva mais do neo‑hegelianismo de esquerda, que vê na religião a alienação da essência humana, do que da filosofia das Luzes, que a denuncia simplesmente como uma conspiração clerical» (o que está correcto; o anticlericalismo dos enciclopedistas e de alguns socialistas não marxistas era, e é, olhado com paternalismo e/ou incómodo por muitos marxistas).
Mais à frente, Löwy avisa que «Engels mostrou um interesse bem mais sustentado que Marx pelos fenómenos religiosos e o seu papel histórico» e conclui que «Engels revelou o potencial contestatário da religião e abriu o caminho para uma nova abordagem das relações entre religião e sociedade, distinta ao mesmo tempo da filosofia das Luzes e do neo‑hegelianismo alemão». E aqui, aparece um tema que será recorrente em muitos marxismos: o potencial «revolucionário» e «socialista» do cristianismo.
Também interessante é a comparação de Löwy da «fé religiosa com a fé marxista: ambas partilham da recusa do individualismo (racional ou empírico) e a crença em valores trans‑individuais: Deus para a religião; a comunidade humana para o socialismo». É evidente que concordo, e por isso rejeito ambos. Entre um colectivismo transcendental controlado pelo clero, e um colectivismo terreno controlado pelo Partido, as diferenças teóricas são irrisórias. Ambos suprimem o indivíduo e a sua liberdade.
O artigo não toca nas relações entre os marxistas actuais e o islamismo. Limita-se a motivar uma simpatia de princípio pela «teologia da libertação», e vê um único problema na colaboração entre socialistas e clericais: a atitude em relação às mulheres. (É impossível justificar qualquer política de igualdade entre sexos a partir das religiões abraâmicas.)
Conclusão: a dominação ideológica do marxismo sobre as esquerdas europeias, durante três gerações completas, levou a que o laicismo (e a própria tradição iluminista) parecesse a muitos, no início deste século, uma relíquia. O Islão e um novo patamar de secularização na Europa ocidental estão a reabilitar a laicidade enquanto princípio estruturante. Talvez não fosse má ideia reabilitar também o socialismo individualista e libertário...

Os embaraços do anonimato

Diz o Dorean Paxorales no Verdade ou Consequência:

  • «No Esquerda Republicana, estivemos muito tempo engavetados na lista "Blogues de esquerda entre o moderado e o radical" (...) Hoje, quando dei por isso, o Verdade ou Consequência tinha deixado a companhia de tão nobres sítios e passado às margens do Mar salgado, Revista Atlântico, A arte da fuga, ..., i.e., descrita ali como "Direita democrática". Queria dizer ao Ricardo Alves aqui em público que, embora adore ver-me ao lado das bravas gentes talassas (...), o pleno foi mesmo atingido com essa prova de indefinição que acabou por nos dar. Com apenas um ano de existência a missão mostra-se cumprida nesse departamento, diria eu: se não é possível fugir a rótulos, que eles mudem ao sabor das discussões ou dos interlocutores. Não sendo essencial, pelo menos dá um gozo tremendo.»

Meu caro amigo, a razão para o encafuamento da tua digna choupana na esquerda indefinida deve-se a um equívoco pessoal escandaloso que me vejo forçado a confessar em público: a primeira vez que li o teu blogue, creio que levado por um comentário teu deixado numa caixinha aqui da casa, achei-lhe alguma originalidade, mas pareceu-me, desculpa lá, de «esquerda». Qual não foi o meu espanto quando, meses depois, uma pessoa que aqui escreve me garante que o Dorean Paxorales é...s tu. Enfim, tudo isto só foi possível porque a) não usas o nome que os teus progenitores te deram; b) as tuas ideias políticas já não são o que eram.

(Os leitores habituais que façam a fineza de desculpar o tom intimista desta posta. E aproveitai para ler a excelente análise que o Dorean faz da blogo-esfera.)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Victor Hugo: «Je veux l´Église chez elle et l´État chez lui»

«Messieurs, toute question a son idéal. Pour moi, l'idéal de cette question de l'enseignement, le voici : l'instruction gratuite et obligatoire. (Très bien ! très bien!) Obligatoire au premier degré, gratuite à tous les degrés. (Applaudissements à gauche.) L'instruction primaire obligatoire, c'est le droit de l'enfant (mouvement) qui, ne vous trompez pas est plus sacré encore que le droit du père et qui se confond avec le droit de l'État.
(...)

###
Les portes de la science toutes grandes ouvertes à toutes les intelligences ; partout où il y a un champ, partout où il y a un esprit, qu'il y ait un livre. Pas une commune sans une école, pas une ville sans un collège, pas un chef-lieu sans une faculté. (Bravos prolongés.)
(...)
Voilà comme je comprendrais l'éducation publique nationale. Messieurs, à côté de cette magnifique instruction gratuite, sollicitant les esprits de tout ordre, offerte par l'État, donnant à tous, pour rien, les meilleurs maîtres et les meilleures méthodes, modèle de science, et de discipline, normale, française, chrétienne, libérale, qui élèverait, sans nul doute, le génie national à sa plus haute somme d'intensité, je placerais sans hésiter la liberté d'enseignement, la liberté d'enseignement pour les instituteurs privés, la liberté d'enseignement pour les corporations religieuses ; la liberté d'enseignement pleine, entière, absolue, soumise aux lois générales comme toutes les autres libertés, et je n'aurais pas besoin de lui donner le pouvoir inquiet de l'État pour surveillant, parce que je lui donnerais l'enseignement gratuit de l'État pour contrepoids. (Bravo ! bravo !).
(...)
A ce point de vue restreint, mais pratique, de la situation actuelle je veux, je le déclare, la liberté de l'enseignement ; mais je veux la surveillance de l'État, et comme je veux cette surveillance effective, je veux l'État laïque, purement laïque, exclusivement laïque. L'honorable M. Guizot l'a dit avant moi, en matière d'enseignement, l'État n'est pas et, ne peut pas être autre chose que laïque.
(...)
0n nous dit : Vous excluez le clergé du conseil de surveillance de l'État ; vous voulez donc proscrire l'enseignement religieux ?
(...)
Jusqu'au jour, que j'appelle de tous mes vœux, où la liberté complète d'enseignement pourra être proclamée, et en commençant je vous ai dit à quelles conditions, jusqu'à ce jour-là, je veux l'enseignement de l'Église en dedans de l'Église et non dehors. Surtout je considère comme une dérision de faire surveiller, au nom de l'État, par le clergé l'enseignement du clergé. En un mot, je veux, je le répète, ce que voulaient nos pères, l'Église chez elle et l'État chez lui. (Très bien !)
(...)
Je m'adresse, non certes, au vénérable évêque de Langres, non à quelque personne que ce soit dans cette enceinte, mais au parti qui a, sinon rédigé du moins inspiré le projet de loi, à ce parti à la fois éteint et ardent, au parti clérical. Je ne sais pas s'il est dans le gouvernement, je ne sais pas s'il est dans l'Assemblée (mouvement) ; mais je le sens un lieu partout. (Nouveau mouvement.) Il a l'oreille fine, il m'entendra. (On rit.) Je m'adresse donc au parti clérical, et je lui dis : Cette loi est votre loi. Tenez, franchement, je me défie de vous. Instruire, c'est construire. (Sensation.) Je me défie de ce que vous construisez. (Très-bien ! très-bien !)
(...)
Votre loi est une loi qui a un masque. (Bravo!)
Elle dit une chose et elle en ferait une autre. C'est une pensée d'asservissement qui prend les allures de la liberté. C'est une confiscation intitulée donation. Je n'en veux pas. (Applaudissements à gauche.)
C'est votre habitude. Quand vous forgez une chaîne, vous dites : Voici une liberté ! quand vous faites une proscription, vous criez : Voilà une amnistie ! (Nouveaux applaudissements.)
(...)
Ah ! nous vous connaissons ! nous connaissons le parti clérical. C'est un vieux parti qui a des états de services. (On rit.) C'est lui qui monte la garde à la porte de l'orthodoxie. (On rit.) C'est lui qui a trouvé pour la vérité ces deux étais merveilleux, 1'ignorance et l'erreur. C'est lui qui fait défense à la science et au génie d'aller au-delà du missel et qui veut cloîtrer la pensée dans le dogme. Tous les pas qu'a faits l'intelligence de l'Europe, elle les a faits malgré lui. Son histoire est écrite dans l'histoire du progrès humain, mais elle est écrite au verso. (Sensation.) Il s'est opposé à tout. (On rit.)
(...)
Et vous voulez être les maîtres de l'enseignement ! Et il n'y a pas un poète, pas un écrivain, pas un philosophe, pas un penseur que vous acceptiez ! Et tout ce qui a été écrit, trouvé, rêvé, déduit, illuminé, imaginé, inventé par les génies, le trésor de la civilisation, l'héritage séculaire des générations, le patrimoine commun des intelligences, vous le rejetez ! Si le cerveau de l'humanité était là devant vos yeux à votre discrétion, ouvert comme la page d'un livre, vous y feriez des ratures (Oui ! oui !) convenez-en ! (Mouvement prolongé.)
(...)
C'est vrai, le parti clérical est habile ; mais cela ne l'empêche pas d'être naïf. (Hilarité.) Quoi ! il redoute le socialisme ! Quoi ! il voit monter le flot, à ce qu'il dit, et il lui oppose, à ce flot qui monte, je ne sais quel obstacle à claire-voie ! Il voit monter le flot, et il s'imagine que la société sera sauvée parce qu'il aura combiné, pour la défendre, les hypocrisies sociales avec les résistances matérielles, et qu'il aura mis un jésuite partout où il n'y a pas un gendarme ! (Rires et applaudissements.) Quelle pitié !
Je le répète, qu'il y prenne garde, le dix-neuvième siècle lui est contraire ; qu'il ne s'obstine pas, qu'il renonce à maîtriser cette grande époque pleine d'instincts profonds et nouveaux, sinon il ne réussira qu'à la courroucer, il développera imprudemment le côté redoutable de notre temps, et il fera surgir des éventualités terribles. Oui, avec ce système qui fait sortir, j'y insiste, l'éducation de la sacristie et le gouvernement du confessionnal !...
(...)
Quoi ! c'est dans ce siècle, dans ce grand siècle des nouveautés, des événements, des découvertes, des conquêtes, que vous rêvez l'immobilité ! (Très-bien !) C'est dans le siècle de l'espérance que vous proclamez le désespoir ! (Bravo !) Quoi ! vous jetez à terre, comme des hommes de peine fatigués, la gloire, la pensée, l'intelligence, le progrès, l'avenir, et vous dites : c'est assez ! n'allons pas plus loin ; arrêtons-nous ! (Dénégations à droite.) Mais vous ne voyez donc pas que tout va, vient, se meut, s'accroît, se transforme et se renouvelle autour de vous, au-dessus de vous, au-dessous de vous ! (Mouvement.)
Ah ! vous voulez vous arrêter et nous arrêter ! Eh bien ! je vous le répète avec une profonde douleur, moi qui hais les catastrophes et les écroulements, je vous avertis la mort dans l'âme (on rit à droite), vous ne voulez pas du progrès ? vous aurez les révolutions ! (Profonde agitation.) Aux hommes assez insensés pour dire : l'humanité ne marchera pas, Dieu répond par la terre qui tremble ! (Longs applaudissements à gauche.)
»

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Leituras recomendadas (21/2/2007)

  1. «The report says that a woman driving by the Atlantic Theater, somewhere in Florida, saw the marquis announcing the play “The Vagina Monologues” and got so upset that she called the manager of the establishment and ask him to take the offensive word off public view. When asked why she was so upset about it, the pious idiot said that she was driving with her niece, and was embarrassed when the girl asked her “what's a vagina?” The management of the theater, of course, immediately obliged and changed the title of the play (presumably without asking the author or the company performing it) to the witless “The Hoohaa Monologues.” Now, first of all, I'm offended by the word “Hoohaa,” and moreover my religion (which you cannot question, because it's a matter of faith) requires the word “VAGINA” to be written in public as often and in as big characters as possible (together, of course, with the word PENIS, because my religion is gender neutral). Naturally, I expect the management of the frickin' Atlantic Theater to oblige me immediately.» («The VAGINA Monologues, Florida-style», no Rationally Speaking.)
  2. «E uma ronda rápida pelos blogs católicos mais conservadores confirma terem sido os motores do NÃO essencialmente grupos ligados ao Opus Dei e Comunhão e Libertação - os tais grupos «iluminados pelos ensinamentos de D. Luigi Giussani ou S. JoseMaria Escrivá» referidos por um dos comentadores do Fiat Lux. (...) Especialmente sensibilizante para uma libertária de esquerda é a preocupação demonstrada pelo conservador católico de direita (um pleonasmo, eu sei, mas hoje sinto-me dada a figuras de estilo) com a sobrevivência da esquerda, já que de acordo com o fazedor de opinião católica, o aborto «assolará sobretudo as classes mais pobres» e como tal «minará a base eleitoral dos partidos de Esquerda». Pessoalmente dispenso as preocupações do cavaleiro da pérola redonda com o futuro da minha área política mas de qualquer forma não deixo de notar que um aumento exponencial com a pobreza só se regista para a religião.» («Momento Zen de segunda-feira», no Random Precision.)

Sam Harris vs Andrew Sullivan

O ateu Sam Harris e o católico Andrew Sullivan têm mantido um debate epistolar na belief.net. O debate começou no dia 16 de Janeiro, e tem continuado. Na última posta, Sam Harris escreve, entre outras coisas, sobre milagres e a (não) historicidade de «Cristo».

  • «In any case, the extra-Biblical evidence of Jesus' life is not as compelling as you seem to suggest. As you know, there is no contemporaneous description of the ministry of Jesus in the Bible or anywhere else. And even if the historical record offered multiple, first-hand accounts of his miracles, this would not constitute sufficient support for the basic claims of Christianity. First-hand reports of miracles are a dime a dozen, even in the 21st century. Many spiritual seekers in India testify to miracles performed by their gurus on a daily basis. These miracles are every bit as outlandish as the miracles attributed to Jesus. I have met literally hundreds of western educated men and women who are convinced that their favorite yogi has magic powers. I remain open to evidence of such powers (and my openness has exposed me to a fair amount of abuse in the atheist community). But as far as I can tell, all of these stories are promulgated by people who desperately want to believe them; all (to my knowledge) lack the kind of corroborating evidence one should require to actually believe that Nature's laws have been abrogated in this way; and most people who report these events demonstrate an utter disinclination to look for non-miraculous explanations. In any case, stories about mystics (and charlatans) walking on water, raising the dead, flying without the aid of technology, materializing objects, reading minds, foretelling the future are being told now. Indeed, all of these powers have been attributed to the South Indian guru Sathya Sai Baba by an uncountable number of eyewitnesses-and the man claims to have been born of a virgin to boot! He has literally millions of followers, many of them educated westerners. You can watch some of his "miracles" on YouTube, performed before credulous throngs of spiritually hungry souls. Prepare to be underwhelmed. And yet, you are suggesting that tales of similar events emerging from the pre-scientific religious milieu of the 1st century Roman Empire (decades after their supposed occurrence) are especially credible.»

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

A ICAR foi derrotada ou não?

No Público de Domingo, o militante clerical António Marujo ocupou duas páginas com um artigo de título «O voto católico não existiu no referendo sobre o aborto». De substancial, estavam lá dentro umas opiniões avulsas de um sociólogo da Católica e de uma senhora daquelas que diz que não é católica para logo a seguir dizer tudo o que a ICAR quer ouvir (ambos, como é óbvio, no mesmo sentido: dizer que não, que a ICAR não teve nada que ver com a campanha do referendo e os resultados do «não»). Não há nada que espantar: António Marujo é o mesmo jornalista que tentou, em Dezembro, convencer os leitores do Público de que o objectivo dos laicistas era ir a casa das pessoas partir presépios à martelada.
Felizmente, existe César das Neves. No Diário de Notícias de ontem, disse a verdade:
Por uma vez, estou de acordo com João César das Neves.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Leituras recomendadas (17/2/2007)

  1. «Na segunda-feira a seguir ao referendo, não. Mas logo na terça-feira seguinte os telefones começaram de novo a tocar. Esgotado o tema do aborto, e passado à História o referendo e as intermináveis justificações para o «Sim» e para o «Não», de repente voltei de novo a ser entrevistado para televisões, jornais e revistas. Todos preparam agora novas reportagens de fundo sobre, disseram-me, o novo «tema fracturante» da sociedade portuguesa que aí vem: o casamento homossexual! Sim, o juiz da primeira instância bateu todos os recordes dos tribunais portugueses e indeferiu o primeiro recurso em cerca de três semanas. Sim, o processo aguarda decisão do Tribunal da Relação há mais de onze meses. Sim, nas sua alegações o iluminado Procurador do Ministério Público defendeu que o Estado deve providenciar que os portugueses só procriem dentro do casamento e que os homossexuais estão impedidos de constituir família. Sim, se a Relação indeferir, recorro para o Supremo Tribunal de Justiça e daqui para o Tribunal Constitucional. Sim, tenho mais esperança numa solução política e legislativa do que numa solução judicial.» («Os temas fracturantes», no Random Precision.)
  2. «O multiculturalismo parte de uma premissa que, na sua aparência, é nobre, a saber, a ideia de que todas as culturas devem ser respeitadas nas suas especificidades, e que nenhuma cultura se deve impor a outra. Decorre desta ideia politicamente correcta que nós, cidadãos de países livres, não devemos impor a nossa cultura aos outros. O corolário desta ideia, tão boa na sua aparência, é que as pessoas que não pertencem à cultura ocidental não deverão ter acesso aos ideiais da liberdade e da igualdade, dado que estes poderão por em causa os próprios fundamentos das suas culturas de origem. De facto, o multiculturalismo não olha para as pessoas como indivíduos dotados de livre arbítrio, mas sim como meros membros deste ou daquele grupo cultural. Daí eu considerar que o multiculturalismo mais não é do que uma prisão onde as pessoas são condenadas a submeterem-se ao estereótipos dominantes do que é a sua cultura de origem.» («O que é o multiculturalismo?», no Armadilha para Ursos Conformistas.)

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

A treta do costume

No Público de quarta-feira, o historiador Rui Ramos repete uma treta em que muita gente acredita:
  • «As direitas apareceram sempre, no imaginário esquerdista, como uma espécie de índios americanos, condenados a desaparecer perante as iluminadas caravanas de pioneiros da esquerda. Foi assim que Afonso Costa, em 1910, se convenceu de que podia acabar com o catolicismo em “duas gerações”. O que aconteceu a seguir é conhecido.» (O artigo é reproduzido no blogue da revista criacionista Atlântico.)

A verdade é que Afonso Costa não parecia convencido de querer acabar fosse com o que fosse em duas gerações. Na realidade, nunca proferiu a frase que lhe atribuemextinguir o catolicismo em duas gerações»). A frase efectivamente proferida foi:

  • «Com o seu aspecto mercantil e degradante, consequência da influência dos jesuítas, aspecto a que emprestaram o seu selo as congregações e a Companhia de Jesus, a continuar esta situação em breve a religião católica entre nós se extinguiria.»

E, perante a acusação, Afonso Costa desmentiu, num discurso em Santarém, que tivesse proferido a frase que a propaganda clerical ainda hoje lhe atribui:

  • «Os reacionários, à falta de argumentos, atribuíram-me a intenção de, servindo-me da Lei da Separação, querer acabar com a religião católica entre nós ao fim de duas ou três gerações! (...) A verdade não é que a República queira mal à religião católica ou outra, mas que aquela entrou numa fase de decadência, em Portugal e na Europa, por culpa dos seus servidores. Isto escrevi eu já em 1895 no meu livro «A Igreja e a Questão Social». A Lei da Separação, em vez de ferir a religião católica, pretende que ela viva à margem da agitação política e procure ressurgir, pura e respeitável, pela fé e bondade dos seus sacerdotes

Vincular ou não vincular

A abstenção no referendo de Domingo foi de 56,4%. A «abstenção técnica» (eleitores que morreram ou mudaram de freguesia) pode ser superior a 5%. Portanto, não é impossível que o referendo de Domingo tivesse sido vinculativo se os cadernos eleitorais estivessem actualizados. (Se é que isto interessa...)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Pascal Bruckner: «Enlightenment fundamentalism or racism of the anti-racists?»

«(...)
Modernity has been self-critical and suspicious of its own ideals for a long time now, denouncing the sacralisation of an insane reason that was blind to its own zeal. In a word, it acquired a certain wisdom and an understanding of its limits. The Enlightenment, in turn, showed itself capable of reviewing its mistakes. Denouncing the excesses of the Enlightenment in the concepts that it forged means being true to its spirit. These concepts are part and parcel of the contemporary make up, to the point that even religious fanatics make use of them to promote their cause. Whether we like it or not, we are the sons of this controversial century, compelled to damn our fathers in the language they bequeathed to us. And since the Enlightenment triumphed even over its worst enemies, there is no doubt that it will also strike down the Islamist hydra, provided it believes in itself and abstains from condemning the rare reformers of Islam to the darkness of reprobation. (...)

###
Anyone with a mind to contend timidly that liberty is indivisible, that the life of a human being has the same value everywhere, that amputating a thief's hand or stoning an adulteress is intolerable everywhere, is duly arraigned in the name of the necessary equality of cultures. As a result, we can turn a blind eye to how others live and suffer once they've been parked in the ghetto of their particularity. Enthusing about their inviolable differentness alleviates us from having to worry about their condition. However it is one thing to recognise the convictions and rites of fellow citizens of different origins, and another to give one's blessing to hostile insular communities that throw up ramparts between themselves and the rest of society. How can we bless this difference if it excludes humanity instead of welcoming it? This is the paradox of multiculturalism: it accords the same treatment to all communities, but not to the people who form them, denying them the freedom to liberate themselves from their own traditions. Instead: recognition of the group, oppression of the individual. The past is valued over the wills of those who wish to leave custom and the family behind and - for example - love in the manner they see fit.
(...)
The Enlightenment belongs to the entire human race, not just to a few privileged individuals in Europe or North America who have taken it upon themselves to kick it to bits like spoiled brats, to prevent others from having a go. Anglo-Saxon multiculturalism is perhaps nothing other than a legal apartheid, accompanied - as is so often the case - by the saccarine cajolery of the rich who explain to the poor that money doesn't guarantee happiness. We bear the burdens of liberty, of self-invention, of sexual equality; you have the joys of archaism, of abuse as ancestral custom, of sacred prescriptions, forced marriage, the headscarf and polygamy. The members of these minorities are put under a preservation order, protected from the fanaticism of the Enlightenment and the "calamities" of progress. Those termed "Muslims" (North Africans, Pakistanis, Africans) are prohibited from not believing, or from believing periodically, from not giving a damn about God, from creating a life for themselves far away from the Koran and the rites of the tribe.
Multiculturalism is a racism of the anti-racists: it chains people to their roots. Thus Job Cohen, mayor of Amsterdam and one of the mainstays of the Dutch state, demands that one accept "the conscious discrimination of women by certain groups of orthodox Muslims" on the basis that we need a "new glue" to "hold society together." In the name of social cohesion, we are invited to give our roaring applause for the intolerance that these groups show for our laws. The coexistence of hermetic little societies is cherished, each of which follows a different norm. If we abandon a collective criterion for discriminating between just and unjust, we sabotage the very idea of national community. A French, British or Dutch citizen will be prosecuted for beating his wife, for example. But should the crime go unpunished if it turns out that the perpetrator is a Sunni or Shiite? Should his faith give him the right to transgress the law of the land? This is the glorification in others of what we have always beaten ourselves up about: outrageous protectionism, cultural narcissism and inveterate ethnocentrism!
(...)
Yesterday the Cold War was caught up in a global combat against communism, where the confrontation of ideas, the cultural struggle in cinema, music and literature played a key role. Today we observe with consternation as the British government and its circle of Muslim "advisers" flirts with the credo: better fundamentalism than terrorism - unable to see that the two go hand in hand, and that given a chance, fundamentalism will forever prevent the Muslims of Europe from engaging in reform.
Yet fostering an enlightened European Islam is capital: Europe may become a model, a shining example for reform which will hopefully take place along the lines of Vatican II, opening the way to self-criticism and soul-searching. However we must be sure not to speak to the wrong audience, styling the fundamentalists as friends of tolerance, while in fact they practise dissimulation and use the left or the intelligentsia to make their moves for them, sparing themselves the challenge of secularism.
It is time to extend our solidarity to all the rebels of the Islamic world, non-believers, atheist libertines, dissenters, sentinels of liberty, as we supported Eastern European dissidents in former times. Europe should encourage these diverse voices and give them financial, moral and political support. Today there is no cause more sacred, more serious, or more pressing for the harmony of future generations.
(...)»
(Pascal Bruckner; vale a pena ler na íntegra, embora seja um artigo extenso. É, essencialmente, uma defesa de Hirsi Ali contra Ian Buruma e Timothy Garton Ash. Todos os linques da polémica aqui.)

Roy Brown: «Secularism under Siege»

«As was widely expected, German Chancellor Angela Merkel is using the current six-month German presidency of the European Union to revive the project for a European constitution -- with God included. Merkel expressed her support for a "God clause" in the constitution following her visit in August to Pope Benedict XVI. She said, "We need a European identity in the form of a constitutional treaty and I think it should be connected to Christianity and God, as Christianity has forged Europe in a decisive way."

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Central to Chancellor Merkel's project is the "Berlin Declaration," a statement of principles to be fed into the creation of a new European constitution. All EU heads of government have been asked to nominate a "trusted advisor" to contribute to the draft, but members of the European Parliament have been warned not to get involved.
The danger here is obvious. Any treaty that confuses the undoubted role of the Churches in European history with its frequently negative role in the creation of modern European civilization is likely to be hugely divisive in the context of modern Europe.
Pressure already exists in many states for different laws for minorities, based on their differing values. A sectarian Constitution that highlights Europe's supposed Judeo-Christian heritage can only serve to exacerbate cultural differences.
Demands among Europe's minorities already range from codifying cultural differences into family law, to an outright acceptance of Sharia law for Muslims. A recent survey showed that some 30 percent of British Muslims would prefer to live under Sharia Law. Among young Muslims the percentage was even higher.
Various prelates of the Church of England have also recently seen fit to attack secularism, seemingly unable to distinguish between state neutrality and hostility to religion, and failing to recognize that the secular state is the only guarantee of religious freedom for all.
(...)»
(Roy Brown, que é o ex-presidente da International Humanist and Ethical Union, no Institute for Humanist Studies.)

Finalmente um livro sobre ateísmo!


O livro «O Peter Pan não existe - Reflexões de um Ateu», da autoria de Onofre Varela, será lançado no dia 22 de Fevereiro, às 18h30m, na sede da Editorial Caminho (Av. Almirante Gago Coutinho, 121, em Lisboa).
O Onofre Varela participou, com os colaboradores portugueses do Diário Ateísta, nos Encontros Nacionais de Ateus de Dezembro de 2003 (em Coimbra) e de Setembro de 2004 (em Lisboa). O sítio original do «ateismo.net», actualmente suspenso, incluía alguns textos seus. Fez uma carreira de cartunista, o que explica a magnífica capa que se pode apreciar ao lado.
Num momento em que se publicam vários volumes sobre ateísmo no mundo anglo-saxónico e francófono (nenhum dos quais mereceu a atenção das editoras portuguesas, sabe-se lá porquê...), o livro do Onofre Varela vem suprir uma lacuna na nossa paisagem cultural. (Se não me falha a memória, é o primeiro livro português especificamente sobre ateísmo desde a morte de Tomás da Fonseca, em 1968...)
A apresentação do livro em Lisboa estará a cargo de um tal Ricardo Alves. Estais convidados.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Um país, dois pólos

Em 1930, o distrito com maior percentagem de casamentos civis era Beja, com 90%. O distrito com menor percentagem era Vila Real, com 3%. Três quartos de século depois, o distrito onde uma maior percentagem votou contra as indicações da hierarquia da ICAR foi Beja (84%), e o distrito do continente onde o «não» teve maior percentagem foi Vila Real (62%). Coincidência? Talvez não.

Quem conhece os indicadores de comportamento social dos portugueses (casamentos civis, filhos fora do casamento, presença nas missas, uniões de facto) sabe que existem, pelo menos desde o advento da República, dois pólos: o pólo do catolicismo, tipicamente situado ou em Braga ou em Vila Real (distritos ultrapassados ou igualados pela Madeira e pelos Açores em alguns indicadores), e o pólo da secularização, geralmente situado em Beja ou em Setúbal. Esta polarização tem atravessado as mudanças de regime e as convulsões sociais, mas pode ter os dias contados: num referendo em que o «sim» à legalização da IVG, comparado com 1998, subiu 11% a nível nacional, a subida máxima foi em Braga (+19%), enquanto em Vila Real foi de +14%. Em Beja, a subida percentual foi inferior à média nacional (+7%), e em Setúbal foi mínima (+0,1%). De um modo geral, os distritos onde o «sim» ganhara em 1998 subiram abaixo da média nacional de +11%, e os distritos onde o «não» ganhara em 1998 subiram acima da média nacional. As circunscrições que ficaram mais próximas da média nacional de 11% de incremento para o «sim» foram a Madeira, Leiria, Coimbra e o Porto. As maiores subidas percentuais do «sim» (Braga, Guarda, Bragança, Castelo Branco, Viseu, Viana do Castelo, Vila Real...) vieram de território habitualmente considerado «conservador»...

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

Até em Braga!

O «sim» à legalização da IVG até em Braga ganhou. Não no concelho de Braga, onde o «sim» perdeu (48%-52%), mas nas freguesias urbanas, onde o «sim» ganhou (53%-47%).

A Braga que é a suposta capital do conservadorismo português, a Braga dos santuários do Bom Jesus e do Sameiro, dos arcebispos e do cónego Melo, das congregações de freiras e das lojas de roupa para padres na rua principal, nunca mais será a mesma. Pelo menos, para mim.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Sabiam?

Sabiam que a Marktest publicou este excelente livro que recolhe as crónicas e outros escritos do «nosso» Carlos Esperança?

Para alguém da minha geração, para além do prazer de apreciar a escrita do Carlos Esperança, e as suas estórias bem contadas, este livro permite conhecer um pouco do mundo, (para mim) distante e quase incompreensível, que era a Beira Interior no terceiro quartel do século passado, entre a catequese terrorista da ICAR, a pobreza e o futebol, as procissões e a «Índia portuguesa», os padres informadores da PIDE, os contrabandistas e as aulas do liceu, e depois o Martinho da Arcada antes da guerra colonial, as praias da Caparica nos anos 60 e finalmente o 25 de Abril. Compreender o que foi tudo isto não é óbvio para quem só tem memória da democracia.

A partir de 1974, dão-se umas alfinetadas valentes numas figuras que sobraram do antigamente e que parecem não sabê-lo (como os seguidores de Josemaría Escrivá e o pai do Dinis de Santa Maria), e, após o 11 de Setembro, surge a preocupação com o islamismo e outros clericalismos, e a sua vacina: a laicidade.

Tudo numa prosa de fazer inveja, e com o humor do Carlos.

(É pena que não esteja nas livrarias.)


[Publicado originalmente no Diário Ateísta.]

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Terramoto: o Estado a ajustar-se a uma sociedade em mudança

A laicidade avança quando os debates sobre as leis do Estado são racionais e pragmáticos, e não teológicos e dogmáticos. Quando os crentes aceitam raciocinar sobre a res publica pondo de lado os argumentos do clero que lhes exige obediência, e preocupando-se em primeiro lugar com a comunidade política que existe tanto para eles como para os ateus, a fé passa finalmente a ser um assunto privado e não político. Deu-se um passo importante nesse sentido na campanha para o referendo de ontem (muito mais do que em 1998, alguns católicos leigos assumiram abertamente o seu voto pela despenalização; o único sacerdote católico que o fez claramente foi o Mário de Oliveira).

A ICAR, principalmente a hierarquia e a sua ala mais reaccionária, sofreram a sua maior derrota desde o 25 de Abril. Tinham-se empenhado muito mais do que em 1998, quando partiram do princípio de que o «sim» ganharia e tentaram desvalorizar o referendo fazendo um apelo misto ao «não» e à abstenção. Desta vez envolveram-se a fundo, desde a CEP até aos movimentos de leigos, o que ajuda a explicar que o «não» tenha obtido mais 200 mil votos do que em 1998. No entanto, as maiores subidas percentuais do «sim» deram-se nas regiões mais conservadoras.

Os políticos derrotados neste referendo chamam-se António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Em 1998, após o Parlamento votar favoravelmente a despenalização, reuniram-se em privado, talvez tenham orado, e decidiram criar um obstáculo à legalização da IVG. Lideravam os dois maiores partidos nacionais e pensaram sobretudo no interesse da igreja a que pertenciam. Por responsabilidade deles, as mulheres que abortaram na última década fizeram-no na clandestinidade.

O Estado começa agora a acertar o passo com uma sociedade que desde o 25 de Abril se tem secularizado rapidamente (de 1973 até 2005, os casamentos civis passaram de 18% para 45%; os nascimentos fora do casamento, de 7% para 31%; os divórcios, de 1 por cada 100 casamentos para 47 por cada 100 casamentos; os católicos praticantes passaram de 2,44 milhões em 1977 para 1,93 milhões em 2001). Se o «sim» tivesse ganho em 1998, os debates posteriores sobre a Lei da Liberdade Religiosa de 2001 e a Concordata de 2004 teriam sido diferentes.

Perderam os que acreditam que o problema do aborto clandestino se resolve fechando os olhos à realidade e fazendo sermões às mulheres. Ganharam os que preferem enfrentar os problemas, por difíceis que sejam. Ficou mais claro, para os católicos praticantes ou para os católicos culturais, qual é a diferença entre um crime e um pecado, entre uma lei do Estado e uma questão pessoal com a própria religião. Nesse sentido, ganhámos todos.

[Publicado originalmente no Diário Ateísta.]

Terramoto

Não foi só ontem, nas urnas e nas cabeças. Hoje, no mundo geofísico, as placas tectónicas também se ajustaram.

A vitória em números

Sim 2007: 2 238 053 (Sim 1998: 1 265 520)
Não 2007: 1 539 078 (Não 1998: 1 333 022)
Conclusão: o «sim» teve um acréscimo de quase um milhão de votos relativamente a 1998 (972 533); o «não», mesmo perdedor, teve um acréscimo de 200 mil (exactamente 206 056).
Os novos votos do «sim» vêm de Lisboa (230 mil), Porto (160 mil), Setúbal (90 mil), Braga (78 mil), Aveiro (57 mil), e de todas as outras circunscrições, com o acréscimo mínimo nos Açores (menos de 9 mil). O «sim» ganhou em três distritos onde perdera em 1998: Castelo Branco, Leiria e Porto.
Quanto ao «não», há circunscrições onde perde votos relativamente a 1998: Vila Real (-3 395); Guarda (-3 329); Açores (-1 589); Bragança (-1 031); Viana do Castelo (-134). Aumenta o número de votos em todas as outras.
O «sim» aumenta de percentagem em todas as circunscrições, com ganhos quase insignificantes no Sul (0.1% em Setúbal, por exemplo), e aumentos maiores em distritos como Braga (o «sim» passou de 23% para 41%), Guarda (30% para 47%), Castelo Branco (47% para 62%), Viseu (24% para 39%), Bragança (26% para 41%), Vila Real (24% para 38%), Viana do Castelo (26% para 40%) e nos Açores (17% para 31%).
Tudo considerado, é nitidamente nos distritos mais conservadores que a reviravolta foi mais espectacular.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

O processo contra «Charlie Hebdo»

charlie_hebdo_mahomet
O jornal satírico francês «Charlie Hebdo» está em tribunal por «insulto público a um grupo de pessoas por causa da sua religião» (o Carlos já escreveu sobre isto no Diário Ateísta). Existem alguns blogues com vídeos dos corredores do tribunal aqui e aqui. A magnífica capa aqui por cima é uma das caricaturas incriminadas. As outras são as «dinamarquesas».

Leituras recomendadas (9/2/2007)

  1. «A proposta submetida a aprovação no referendo de despenalização do aborto implica três coisas: (i) a descriminalização do aborto voluntário até às 10 semanas, pois num Estado de direito democrático não pode haver despenalização sem que o acto a despenalizar deixe de ser considerado crime; (ii) a legalização do aborto nesses limites, devendo a interrupção da gravidez ser praticada, para ser lícita, num estabelecimento de saúde legalmente reconhecido; (iii) a regulação dos actos de interrupção da gravidez, tanto a nível da ponderação da decisão da mulher (aconselhamento, etc.) como a nível da organização dos serviços de saúde. Isto é o contrário de uma alegada "liberalização", no sentido corrente da expressão, a qual só existiria se se ficasse pela descriminalização, como sucedeu, por exemplo, com a prostituição, que foi despenalizada mas não foi legalizada nem regulada. O que é uma espécie de liberalização é, sim, a "semidespenalização" (sem descriminalização) que alguns adversários da despenalização propriamente dita vieram apresentar precipitadamente à beira do referendo. Na verdade, uma tal proposta não passa de uma liberalização do aborto clandestino.» («Despenalização com legalização e regulação não é liberalização», no Causa Nossa.)
  2. «Os receptores nervosos começam a formar-se logo entre as 8 e as 15 semanas, mas são como tomadas sem corrente num edifício em construção; a electricidade só é ligada quando passa ser habitado. Ou seja, depois das 24 semanas. Muito provavelmente só às 30, quando a EEG mostra que o feto já consegue estar "acordado". (...) A evidência científica actual é a de que a dor implica percepção e consciência do estímulo doloroso. A dor é uma experiência emocional e psicológica, resultado de activação cortical. A reacção a estímulos externos, às 8 semanas, é um reflexo primitivo, que pode existir com estímulos não dolorosos. Como a nossa perna salta quando o martelo bate no joelho. É resultado de um curto-circuito entre receptores e músculos, através da medula espinal, sem passar pelo cérebro. Sem vontade e sem consciência. Sem dor. O feto de 10 semanas não tem dor, não tem vontade, não tem vigília, não tem consciência. As primeiras ligações ao córtex cerebral em formação, acontecem entre as 23 e as 30 semanas. Mas anatomia é diferente de função. A evidência mais precoce de actividade cortical é entre as 29 e as 30 semanas.» («Ciência, convicções, fraude e a dor fetal», no blogue dos Médicos Pela Escolha.)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

«Nasce-se» numa religião?

Os únicos liberais que

Apesar do título deste blogue, a divisão entre «esquerda» e «direita» não é para mim tão fundamental como outras separações: entre laicistas e clericais, ou entre democratas e autoritários, ou ainda entre individualistas e colectivistas. Há correntes de «esquerda» (e de «direita», já agora) nos dois pólos de qualquer das dicotomias que estabeleci mais atrás. A «esquerda» e a «direita» são oposições circunstanciais inevitáveis na luta pelo poder que se gera em sociedades democráticas (e o circunstancial dura muito tempo, para quem não reparou).
Neste blogue tenho atacado com alguma veemência os liberais, nomeadamente os d´O Insurgente e do Blasfémias. Faço-o porque me parecem clericais alguns, autoritários muitos, e de qualquer forma hostis àquilo que foi a verdadeira tradição liberal em Portugal. O referendo sobre a despenalização da IVG veio mostrar, com muita clareza, quem são os únicos liberais para quem a liberdade individual não é um valor vão: os do Movimento Liberal Social, o Carlos Abreu Amorim e o Tiago Mendes.

Debates sobre a despenalização da IVG

Estarei hoje, às 21 horas, na Rádio Nova Antena (Odivelas), para um debate sobre a despenalização da interrupção voluntária de gravidez (podem ouvir em FM 92.0 na região de Lisboa, e 101.3 no Alentejo; ou na internete). E amanhã, às 10 horas, na escola Vitorino Nemésio (Chelas, Lisboa), para outro debate sobre o mesmo tema. Em ambos os debates represento a plataforma «Eu voto sim!».

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Leituras recomendadas (7/2/2007)

  1. «Esta proposta de alegada “despenalização” (como eles têm o despudor de dizer...) só aumenta a confusão sobre o que desejam os partidários do não, pois há propostas e sugestões de toda a ordem e feitio: há quem pretenda alterar a pena prevista para o aborto, em vez da pena de prisão, tendo uns falado em trabalho comunitário, outros em simples multa; há quem pretenda manter a pena mas dispensar a punição, seja por via de uma “suspensão” do processo penal, seja por via de uma cláusula automática de desculpabilização. E há obviamente quem não concorde com nenhuma destas “cedências” e defenda que o lugar das criminosas que “matam os filhos” é mesmo a prisão. Nessa enorme confusão há porém uma coisa que todos eles mantêm: a condenação do aborto como crime no Código Penal e das mulheres como criminosas. (...) O que está em causa no referendo é dizer sim ou não à despenalização limitada e condicionada do aborto. Como é próprio de todos os referendos, a pergunta é dicotómica.» («Os contra-sensos do não», Vital Moreira no blogue do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim.)
  2. «O segundo “show” televisivo dos prós e contras foi uma espécie de desforra oferecida aos “contras”. Mas os “contras” bem se podem queixar de si próprios. Se na primeira mão tinha havido, entre vários outros, um golo metido na própria baliza por um “contra”, na segunda oportunidade que a televisão lhes concedeu os auto-golos voltaram a repetir-se. (...) A ciência não é a procura da verdade, mas antes a procura do erro. Errar é humano e a ciência é a busca também humana do erro. A primeira condição para se ser cientista é estar pronto a admitir o erro, que normalmente se apura através da avaliação dos pares: no caso, é fácil verificar que não há consenso nenhum na comunidade científica de que um feto nas primeiras dez semanas sinta dor (a mulher sim, essa sim está provado que sente!).» («Cientistas pelo Sim - Uma nova Arquimedes», Carlos Fiolhais no Sim no Referendo.)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Apontamentos acerca do meu SIM

Um espermatozóide está quase a alcançar o óvulo. Neste momento, dão-vos esta escolha: querem que ele fecunde ou preferem evitar que isso aconteça?

Se responderem que preferem evitar que isso aconteça, estão a matar alguém?

Se acreditam no argumento do «ser potencial» terão de responder que sim. Terão de responder que o futuro previsível de uma solução é que uma criança nasça, e no outro caso isso não se sucederá.

Mas aí, sejam coerentes: lembrem-se que o futuro «previsível» de uma mulher ir para freira é que não terá filhos, o que corresponde à morte dos filhos que previsivelmente teria se tivesse optado por outro futuro. Lembrem-se que o planeamento familiar mata imensos seres que previsivelmente nasceriam caso não se tivesse acesso aos métodos contraceptivos.
Sejam contra o preservativo e a pílula como a igreja, mas sejam também contra a castidade e abominem a abstinência. Lembrem-se que as mulheres que optaram por ter menos de 10 filhos provavelmente estão a matar seres humanos potenciais, e vejam sempre como eticamente incorrecto que as pessoas não se esforcem para ter o máximo número de filhos que podem. Construam um mundo superpovoado e cheio de incubadoras - as mulheres.

Sei que qualquer pessoa decente e civilizada sente repulsa por esta visão, e mesmo os defensores do não que usam o argumento do «ser potencial» não acreditam nisto.

Eles acreditam que existe uma diferença entre o momento antes do espermatozóide fecundar o óvulo, e depois.

A partir daí, acreditam que já existe um ser humano. A grande diferença, dizem, é o ADN.

Deixem-me dizer-vos: o ADN não define um ser humano.
Deixem-me repetir-vos: o ADN não define um ser humano.

O ser humano não está no ADN. O nosso «eu» não está no ADN.


Existe um argumento simples e ilustrativo: os gémeos verdadeiros têm o mesmo ADN.
São a mesma pessoa? Não.



Não existe uma pessoa sem cérebro.
Peço ao leitor que faça a seguinte experiência imaginária: o leitor está num hospital apetrechado com tecnologia do século XXX, um órgão vital seu está em perigo, se não for substituído, o seu corpo vai morrer. Ao seu lado está outro indivíduo - chamemos-lhe Augusto. Foi envenedado, e embora no hospital possam salvar um órgão deste paciente, o corpo do Augusto está condenado a perecer. Assim sendo, a equipa do hospital opta por trocar o orgão do leitor em perigo pelo orgão do Augusto que podem salvar.

Se trocarem o coração, apenas vai existir um sobrevivente: o leitor.
A mesma coisa para os pulmões, os rins, o fígado, quase qualquer órgão.

Mas se trocarem o cérebro, não é o leitor quem sobrevive. É o Augusto que fica com um novo corpo.

A pessoa está no cérebro, e o embrião não tem qualquer neurónio formado. Não tem actividade cerebral.

Não, o embrião não é uma pessoa.



E se para mim me parece cruel e desumano obrigar uma mulher a suportar uma gravidez que não deseja, eu não posso aceitar o argumento de que isso é feito para salvar alguém: ninguém está a ser salvo, só um mito e uma ilusão.

«Não ao aborto»

O pior dos slogans possíveis: «não ao aborto». É um bocado como dizer «não à chuva», «não às marés» ou «não aos acidentes de viação». Só pode mesmo vir de cabecinhas que vivem no mundo perfeito das utopias.

Da falta de civismo

Existe pelo menos uma zona de Lisboa onde a maioria dos cartazes do «sim» estão vandalizados: Praça de Londres e Alameda.

Símbolos religiosos em secções de voto: o que fazer e como fazer

Como é sabido, existem muitas secções de voto em Portugal com símbolos religiosos visíveis (crucifixos, estatuetas de santos, outras imagens religiosas...). Como também é do conhecimento geral e o Diário Ateísta tem documentado, a ICAR tem feito uma campanha de tipo político a favor de uma das posições a votação no referendo. Assim sendo, é inadmissível que existam dentro das secções de voto, ou na sua proximidade, símbolos identificativos de uma das posições assumidas perante o referendo, pois foi nisso que se tornaram os símbolos da ICAR: símbolos do «não».

A Associação República e Laicidade disponibiliza um formulário para que cada cidadão que o desejar possa apresentar o seu protesto junto da sua secção de voto. Conforme alguns estudos académicos indicam, os símbolos presentes nas secções de voto podem influenciar significativamente as decisões tomadas pelos eleitores. Cabe aos cidadãos defenderem a legalidade e a lisura do acto referendário. (Cada protesto pode ser apresentado em duplicado: uma cópia para o presidente da assembleia de voto e outra para o cidadão que protesta. A Associação República e Laicidade agradece que se envie uma comunicação de cada protesto para mailto:republaicidade@yahoo.com.)
(Publicado originalmente no Diário Ateísta.)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Leituras recomendadas (5/2/2007)

  1. «Se a Teologia e o Magistério entendem que a IVG é um pecado grave, é-o apenas para os católicos, que terão a sanção da sua igreja, isto é, serão excluídos da comunidade de crentes (excomungados) até que alguém, neste caso um Bispo, levante essa exclusão. Já não o é para os seguidores de outras crenças e, muito menos, para os não crentes. Ao votar SIM, não estou a obrigar nenhuma mulher a fazer uma IVG e, muito menos, a abrigar uma católica a cometer um pecado mortal. Estou, apenas, a deixar, com toda a tolerância que devemos ter para com estas questões, a decisão à consciência de cada um. Pois, abstraindo-me racionalmente da minha fé para pensar em termos de protecção de direitos por parte do Estado, não vejo, nesta questão, que direitos cumpre ao Estado defender.» («A ver se nos entendemos», no thesoundofsilence.)
  2. «A falta de um consenso social sólido sobre a dignidade penal do aborto nas primeiras semanas e as consequências que daí decorrem diferencia este crime de outros que também apresentam baixas taxas de notícia e esclarecimento. Não colhe o argumento de que, "por esse raciocínio", se devia descriminalizar, p. ex., a corrupção e o tráfico de estupefacientes. Nestes casos, a vigência social das normas é indiscutida, e a magreza de resultados deve-se apenas às dificuldades de investigação inerentes àquelas formas criminais. Vale a pena, portanto, continuar a procurar meios de investigação mais eficazes. (...) As consequências deste estado de coisas - isto é, da manutenção de uma norma penal com uma vigência social muito enfraquecida - são bastante negativas. Por um lado, a "protecção" - meramente simbólica - do feto gera outros danos sociais importantes para a saúde pública. Por outro lado, torna a aplicação da lei insuportavelmente desigual, elegendo um ou dois bodes expiatórios por ano, onde se concentram de novo as tensões sociais sobre o assunto. É nessa desigualdade comprovada, inevitável e insustentável que vejo a verdadeira injustiça. E é por isso que tenciono votar sim.» («As razões do meu sim», no Mar Salgado.)

A grande trapalhada

  • «P: Está a falar de apoio, mas defende a punição. Qual seria a punição justa? R: A sociedade devia definir uma punição. Para mim, seria suficiente chamar a mulher, fazer-lhe um discurso que a obrigasse a ponderar. Bastava que pedisse desculpa à sociedade para arrumar o assunto. Olho para a mulher como uma vítima.» (Daniel Serrão em entrevista ao Jornal de Notícias.)

Comecemos pelo fim desta trapalhada. Daniel Serrão diz que a mulher é uma «vítima». Na frase anterior, diz que a mulher, portanto a «vítima», deve pedir «desculpa à sociedade». Repita em voz alta, caro leitor: «a vítima deve pedir desculpa à sociedade». Ah, mas antes faz-se um discurso à mulher. Um sermãozito a dizer-lhe que se portou mal.

Já não há pachorra. Há que votar «sim», para ver se esta gente tão confusa e trapalhona deixa de atrapalhar a vida dos outros...

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Quando bate o coração

  • «“Os movimentos conscientes e a consciencialização do ‘eu’ só acontecem depois dos seis meses”, disse Mário Sousa, numa conferência promovida pelo movimento Médicos pela Escolha, a que assistiram dez pessoas. (...) Mário Sousa realçou que é consensual nas escolas médicas que só aos sete meses de gestação o feto tem condições de sobrevivência e, em caso de risco, “passa à frente da mãe”. (...) Para o investigador, são “involuntários” os movimentos do feto antes das dez semanas e não se pode chamar coração às batidas provocadas pela irrigação sanguínea que se sentem nos embriões logo às três semanas de gestação.» (Público)

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Hélio Schwartsman: «Santa ilusão»

«Ao contrário de 97,3% do mundo --incluindo vários ateus--, achei delicioso o último libelo do biólogo britânico Richard Dawkins contra Deus. Falo do livro "The God Delusion" (a ilusão ou o delírio de Deus; a obra ainda não foi traduzida para o português), que recebeu críticas acerbas mesmo de racionalistas militantes, como Marcelo Gleiser no caderno Mais!.

É fácil entender a revolta principalmente de religiosos com o texto de Dawkins. Os qualificativos que ele encontrou para aplicar a Altíssimo incluem: "misógino", "homófobo", "racista", "infanticida", "genocida", "filicida", "pestilento", "megalomaníaco", "sado-masoquista" e "valentão caprichosamente malévolo". O autor de fato não se vale de meias palavras para defender sua tese de que a religião é um grande engodo, um mal que deveria ser extirpado da face da terra. Só que Dawkins não se limita a afirmar essas coisas. Ele também pretende provar, com argumentos, que Deus é uma hipótese altamente improvável e totalmente desnecessária.
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(...)

O livro melhora bastante quando Dawkins volta a seu campo de atividade biológico e sugere explicações para a universalidade da religião entre humanos. Sua hipótese é a de que a fé em deuses/Deus é uma espécie de efeito colateral adverso de mecanismos cerebrais adaptativos. Teríamos uma propensão à credulidade cujo valor pode estar em fazer com que crianças obedeçam a seus pais sem levar em conta se o que eles dizem faz ou não sentido. Essa confiança incondicional pouparia os jovens rebentos de atirar-se em rios infestados de crocodilos, caminhar na encosta de precipícios e evitar outras ameaças que poderiam custar-lhes a vida caso insistissem em aprender por conta própria.

Outro ponto alto é quando ele relata experimentos psicológicos, notadamente os de Marc Hauser, que sugerem que o imperativo categórico kantiano está inscrito dentro de nós. Padrões de moralidade semelhantes aos descritos pelo filósofo prussiano --notadamente a idéia de que não devemos usar outros seres humanos apenas como meio para atingir objetivos-- fariam parte de nossa programação cerebral. Se isso é verdade, e tudo indica que é, cai por terra o argumento utilitarista de que a religião é a fonte da moralidade e é importante para manter a paz social. As pessoas não deixam de cometer crimes por temer ir para o inferno, mas porque têm um impulso biológico para acatar normas que julgam justas, em que pese a existência de certos indivíduos que sempre tenderão a burlar as regras.

A mais feroz das críticas a Dawkins, porém, não é de conteúdo ou argumentação. Censuram-lhe o próprio projeto do livro, que é o de convencer o maior número de pessoas a abraçar o ateísmo e os já ateus a "sair do armário". Viram aí uma "intolerância" em tudo igual à das religiões.

Talvez, mas acho que os críticos perdem de vista o profundo senso de humor com que "The God Delusion" foi escrito. O livro todo é uma grande provocação, mas uma provocação "à propos". Por que os textos usados nas escolas dominicais podem ter caráter doutrinário e uma defesa do ateísmo não? Por que, pergunta-se o autor, devemos aceitar a convenção social segundo as quais idéias religiosas devem ser respeitadas? Uma idéia idiota é sempre uma idéia idiota, não importando o campo semântico em que seja proferida. Por que podemos afirmar sem nenhum problema que determinada tese científica, econômica, ou jurídica é imbecil, mas, se ousamos dizer o mesmo em relação a uma "verdade religiosa", somos tachados de intolerantes e quem sabe até processados?

Se alguém nos dissesse acreditar que brotou de uma árvore e que sempre que segura sua caneta ela se transforma num coelho voador, teríamos boas razões para duvidar da sanidade desta pessoa. Por que então não tratamos como louco o católico que afirma que Jesus nasceu sem pai biológico, de uma mãe virgem e que, toda vez que se celebra uma missa, o vinho se torna sangue e um tipo esquisito de biscoito se converte no corpo do homem?

Para colocar questões mais republicanas, por que um ministro religioso, apenas por ser religioso, fica livre do serviço militar, enquanto pessoas que apenas deplorem a violência correm o risco de ter de servir ao Exército? Por que igrejas não pagam impostos e eu, que também tenho um sistema de crenças e uma ética (na minha opinião muito melhores), não faço jus à mesma regalia?

(...)»

(Hélio Schwartsman)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Debate no Sábado, dia 3 de Fevereiro

Estarei presente no dia 3 de Fevereiro, às 16 horas, num debate sobre a despenalização da IVG, em representação do movimento «Eu Voto Sim!».

Local: Igreja do Nazareno, Avenida Óscar MonteiroTorres, 44-A/B (Lisboa, junto ao Campo Pequeno).

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Estranhos conceitos

Já há muito tempo que desconfio que certos sectores da ICAR vivem num gueto mental e social. Há por ali conceitos que não têm o mesmo significado do que no mundo exterior. Atente-se no exemplo seguinte.
  • «Continuamos a reivindicar a institucionalização da Liberdade de Ensino em Portugal. A UCP continua a ser discriminada negativamente em relação às demais universidades do Estado. Os nossos alunos são obrigados a suportar duplamente os custos da sua formação (pagadores de impostos e de propinas).» (As palavras são do reitor da Universidade Católica.)

Portanto, «liberdade de ensino» é as escolas privadas receberem subsídios do Estado. Sim senhor! E depois ainda há-de chamar «assistencialistas» aos outros...

Símbolos religiosos em secções de voto


Nos EUA também há secções de voto com símbolos religiosos: pior ainda, há locais de voto que são igrejas. Felizmente, também há quem proteste. E com boas razões: segundo um estudo académico que efectuou simulações de voto, cerca de 75% das pessoas a quem foram mostradas imagens de locais de voto neutros (escolas, quartéis de bombeiros...) votaram favoravelmente a investigação científica em células estaminais, mas essa percentagem desce para aproximadamente 50% nas pessoas a quem foram mostradas imagens de locais de voto em igrejas.

Em Portugal, a Associação República e Laicidade levantou esta questão junto da Comissão Nacional de Eleições, que recomendou às câmaras municipais e juntas de freguesia que, no referendo sobre a despenalização da IVG, não coloquem mesas de voto em locais onde existam «outros símbolos» para além daqueles ligados à República.

É necessário que não sejam escolhidas como locais de voto nem igrejas nem escolas com símbolos religiosos. Só assim será assegurada a plena neutralidade das secções de voto, indispensável a que os cidadãos votem em perfeita liberdade de consciência.