quinta-feira, 18 de maio de 2006

A questão do aborto

Ontem foi mais um pró-vida à televisão – ao programa do John Stewart – insultar quem não concorda com ele, chamar assassinos a todos os que não concordam com a criminalização da interrupção voluntaria da gravidez.

O idiota de ontem chamava-se Ramesh Ponnuru. Digo idiota para dar um tom leve a este texto. Porque rodeado de fundamentalistas cristãos por todos os lados, vou perdendo a paciência para os argumentos e as atitudes deles.

Sou contra o aborto, como todas as pessoas. Seria óptimo se ninguém tivesse de recorrer ao aborto. Mas ser contra o aborto e ser a favor da criminalização do aborto são coisas muito diferentes.

Como se sabe, a criminalização do aborto não reduz o número de abortos praticado num determinado país.

A criminalização do aborto aumenta o nível da hipocrisia, coloca a vida e a saúde das mulheres em perigo, espezinha os direitos mais fundamentais das mulheres sobre o próprio corpo, intromete o nariz moralista do Estado e da Igreja na vida privada dos cidadãos, desperdiça o tempo e a energia da polícia e dos tribunais, aumenta o poder negocial dos médicos e das clínicas, desprotege impiedosamente quem necessita de um aborto, mas não reduz o número de abortos praticado num determinado país.

A violência dos argumentos dos “pró-vidas” insulta a inteligência, mas sobretudo choca pelo desprezo cruel que contém pelas pessoas que precisam de recorrer ao aborto.

A desumanização das mulheres, designadas como assassinas de bébés e outros insultos semelhantes, é estúpida e cruel, mas é sobretudo perigosa porque nos faz esquecer a humanidade das pessoas e as situações de sofrimento e de desespero que frequentemente rodeiam este tipo de tomadas de decisão.

E vindo de quem vem – lembro que nos seus 1500 anos de existência a Igreja Católica só não advoga a morte de pessoas por delito de opinião há mais ou menos 150 anos – dá que pensar. Ou devia dar.

Mas os políticos portugueses não se atrevem a perguntar aos “pró-vidas” – como se nós fossemos “pró-mortes”! – as perguntas fundamentais:

1) Porque que é que o movimento “pró-vida” é maioritariamente masculino (mesmo sem incluir os padres, bispos e cardeais todos) quando o problema da interrupção da gravidez é um problema que afecta exclusivamente as mulheres?

2) Porque é que o movimento “pró-vida” boicota sistematicamente todas as tentativas de promover a educação sexual nas escolas, quando o bom senso mais elementar – e as estatísticas! – demonstram que a pobreza e a ignorância são as causas fundamentais do aborto?

3) Porque é que os “pró-vidas” só se preocupam com “as vidas” enquanto elas estão no útero das mães e ostentam um desprezo total e absoluto pelos efeitos da pobreza nas crianças depois de elas nascerem?

4) Porque é que são os “pró-vidas” os primeiros a atirarem pedras às mães solteiras e aos casamentos civis, aos divórcios e a um sem numero de situações que facilitariam a situação das mulheres que quisessem viabilizar uma gravidez em situações ?

Os fanáticos contam sempre com a ignorância e a apatia das pessoas. Não será altura de os confrontar?

23 comentários :

Anónimo disse...

Eu pessoalmente gostaria de perguntar aos "pró-vida" quem são eles para limitar as minhas opções pessoais.

Como está escrito no post somos todos contra o aborto, e ninguém o faz de animo leve, porquê tornar este processo todo mais traumatico e doloroso para quem passa por ele?

Pedro Viana disse...

Desmascarar a maior parte dos opositores da IVG é muito fácil: se eles acham que o embrião é um ser humano porque não exigem que uma IVG tenha o mesmo tipo de punição pela Lei que um assassínio planeado?... Vão ver como eles se engasgam. Claro que haverá uma minoria de fundamentalistas, geralmente os mais vocais, que irá dizer que concorda com tal, o que só servirá para alienar a maioria das pessoas.

Ricardo Alves disse...

Não há nenhum país do mundo em que um aborto seja penalizado da mesma forma que um assassínio planeado. Nenhum.

dorean paxorales disse...

Caro Pedro,

Acho que vai encontrar alguma dificuldade em provar que um embrião humano não é um ser humano. Trata-se de um facto, não de uma opinião.

Se perguntar que objecções poderão haver em interromper o desenvolvimento desse ser humano e, consequentemente, matá-lo, essas terão de ser necessariamente de natureza moral.

Nos casos em que legitimo a IVG estou a admitir que há situações de excepção que permitem a suspensão daquela vida. O que não estou a fazer é julgar legítima a suspensão de uma não-vida. Isso seria tolice.

Não há espaço para interpretações científicas ao gosto do freguês, apenas um corredor estreito de estados de alma que nos leva ao confronto com a nossa consciência.

Não admira por isso haver tantas contradições no discurso no campo dito "pró-vida". Como também acaba por haver no dos defensores da IVG, temos que admitir.

João Vasco disse...

"Trata-se de um facto, não de uma opinião."

Isso é falso.

Eu considero que a "vida humana" começa com a consciência, não com a concepção. E esta definição, tal como outras, não é ponto assente na sociedade.
Quem acredita que começa na concepção geralmente pensa dessa forma porque acredita na alma. Eu não acredito na alma.
Acredito que a "alma" é a consciência, a qual só surge muito depois da concepção.

dorean paxorales disse...

Caro João Vasco,

Antes de mais, eu não acredito na "alma", pelo menos tal como é concebida pelo conhecimento comum. Confesso não ter entendido a definição da sua crença mas posso-lhe dizer em minha defesa que a referência aos tais estados não passou de um recurso estilístico, agora vejo, infeliz.

No entanto, conceitos como "vida" e "humano" não são passíveis de julgamento pessoal ou social: eu possuo instrumentos de prova de vida que são independentes de qualquer contexto cultural; e num sistema taxonómico coerente, um embrião de humanos será sempre humano, como um embrião de galinha será galináceo e outros serão ofídeo ou outra coisa qualquer, quer tenham consciência de si ou não, quer a opinião leiga o considere como tal ou não.

Em suma, nos humanos a vida começa com um embrião (para não entrar em picuinhices de meioses e coisas que tais). E eu aceito que há situações que justificam o termo artificial do desenvolvimento desse embrião humano.

Ao resto dos argumentos, eu chamo "dourar a pílula". Mas, tudo bem, isso já é só uma opinião.

João Vasco disse...

Um embrião humano, se a gravidez for bem sucedida, resultará sempre num ser humano.

Mas, da mesma forma que um ouvido humano não é um humano, não é por algo poder ser apelidado de "humano" que é humano. Isso seria um truque de linguagem que o exemplo do ouvido desmascara.

A pergunta "quando é começa a vida humana" não é uma pergunta que possa ser respondida factualmente: depende mesmo de crenças e de valores, pois não existe acordo universal sobre "o que é a vida humana".
Nem sobre o que é a "morte humana".

Legalmente a morte humana é considerada a morte cerebral, mesmo que o coração ainda bata, os pulmões ainda respirem, e o corpo em questão ainda possa sobreviver vários anos.
Subjcente a essa consideração está o associar da vida humana à consciência.

E eu subscrevo essa associação: sem consciência não há vida humana - na minha opinião.

Sofia disse...

Adorava ter o vosso palavreado...mas não o tenho. Quero peguntar o que fazer a todas as adolescentes que foram violadas e engravidaram, todas as mulheres portadoras de HIV que engravidaram, a todas as mulheres sem senso que engravidaram.
Não sou contra o aborto, tb não sou contra, mas compreendo que ele deverá existir enquanto existir irresponsabilidade. Mais vale uma criança não existir do que existir em pessimas condiçoes e ter e fazer vidas miseráveis.

João Vasco disse...

"Mais vale uma criança não existir do que existir em pessimas condiçoes e ter e fazer vidas miseráveis. "

Marta: concordo consigo.
Eu concordo com o artigo, também.

no name disse...

embora eu concorde com a generalidade da ideia do joão vasco, ela também tem alguns problemas. definir vida humana como o despertar da consciência apenas coloca o problema da definição noutro local: afinal de contas, quando na vida de uma criança ela se torna consciente? quando nota a existência de outras pessoas? quando começa a falar? quando entende o significado da palavra eu? e o que sucede a adultos com doenças cerebrais que lhes incapacitam algumas das propriedades anteriores?

nesse caso, a definição do dorean é mais simples do ponto de vista científico. o problema, claro está, é que os fundamentalistas anti-aborto imediatamente a podem usar para dar vazão às suas diarreias mentais. mas isso, é outra questão...

Pedro Viana disse...

Caro Dorean,

Nos seus 2 comentários mistura os conceitos de ser humano e vida (humana) o que só demonstra grande confusão na sua cabeça. Talvez para tentar disfarçar essa confusão atira com a existência de um pretenso concenso científico sobre a definição de ser humano e vida (humana). Só mostra a sua ignorância. Ou então indique-me lá artigos publicados em revistas científicas de reconhecida qualidade onde é cientificamente provado que o embrião é um ser humano!

Dar um ar 'científico' à sua crença não o leva a lado nenhum. Não há sequer uma definição (científica) do que é vida. Estar vivo requer metabolismo, requer potencial de reprodução? Então os vírus estão vivos? E as mulas? Teve azar de encontrar alguém com formação científica pela frente...

Mas, obviamente que não respondeu à questão que levantei: se acredita (e não me venha outra vez com a treta do 'facto') que um embrião é um ser humano, tal como uma criança com, digamos, 1 ano de vida, por exemplo, não acha que a punição pelo "assassínio" do primeiro devia ser igual à do assassínio do segundo? Ou essa sua crença é só da 'boca para fora'? Talvez não sinta a mesma coisa ao saber que alguém fez uma IVG porque sim, e ao saber que uma qualquer criança com 1 ano foi assassinada. Porque talvez SINTA que realmente embrião e criança não têm o mesmo 'valor'. Da próxima vez que tentar emitir opinião sobre o assunto analise primeiro o que sente. Acredite que ajuda a construir uma opinião mais bem fundamentada.

dorean paxorales disse...

João Vasco disse:

<<(...) A pergunta "quando é começa a vida humana" não é uma pergunta que possa ser respondida factualmente: depende mesmo de crenças e de valores, pois não existe acordo universal sobre "o que é a vida humana".
Nem sobre o que é a "morte humana".>>

Ouça, dou-me por vencido. E a comunidade científica julgo que também. Há mesmo respostas que só dependem das nossas crenças. Nada mais a acrescentar.

dorean paxorales disse...

Caro Pedro:

Se não percebeu que a resposta à sua pergunta inicial já foi dada em dois comentários diferentes, lamento, talvez não me tenha feito entender facilmente.

Todavia, não será de todo desaconselhável treinar a objectividade das suas leituras, senão acaba por acreditar em muita coisa que é publicada com irresponsabilidade do editor ou erro do autor, às vezes mesmo nas tais "revistas científicas de reconhecida qualidade".

Mas, se tem "preparação científica", não lhe estarei a dar novidade nenhuma, certo?

dorean paxorales disse...

Cara/o Evy,

Plenamente de acordo.

dorean paxorales disse...

Caro Ricardo (o outro) disse:

"o problema, claro está, é que os fundamentalistas anti-aborto imediatamente a podem usar para dar vazão às suas diarreias mentais. "

Nem mais. Em ambos os campos a maioria (?) tenta arranjar os argumentos científicos que justifiquem uma opinião já formada. E se esses argumentos forem favoráveis ao outro, então já não são nem argumentos nem científicos: desacreditam-se directamente para o poço das "opiniões".

João Vasco disse...

dorean paxorales:

A discussão que estou a ter consigo é uma discussão de linguagem. Não é uma discussão científica.

A pergunta "onde começa a vida humana" é uma pergunta que remete para um problema científico, e para um problema de linguagem.

Ou seja:

a) defina-se o que é a vida humana
b) estando definido, então a ciência pode dizer onde começa, se tiver capacidade para tal

O problema é que NÃO está sequer definido o que É a vida humana, portanto logicamente a ciência não pode dizer onde começa.

Eu considero que a vida humana começa na consciência. Tem alguma referência que contrarie esta afimação?

dorean paxorales disse...

Caro João Vasco,

Porque sou muito preguiçoso, em vez de escrever envio-lhe um linque abaixo que vai direccioná-lo para uma redacção que não é de uma publicação "de reconhecida qualidade tal-tal" mas de um dos livros de texto mais usados no mundo das licenciaturas em ciências da vida: "Developmental Biology", do Gilbert.
I.e., está escrito para agradar todas as sensibilidades religiosas. Não fora assim, não viria já na sua oitava edição (ai o mercado...).

Apesar destes predicados, não deixa de ser informativo: ultrapasse a descrição histórica do conceito (palha) e vá directo onde o Scott discute a sua questão, de acordo com as várias visões, metabolicista, geneticista, embriológica, et c.. Também vem lá da consciência.

Uma coisa irá certamente reparar: nunca o Homem se preocupou tanto com a sua própria ontogénese como quando foi necessário defender/atacar a prática do aborto. Eu chamo a esta tendência infeliz fixar a resposta para depois formular a pergunta que nos satisfaz melhor.

Haverá cientistas, porque também são humanos (e havia aqui tinta para correr), que ainda não acertaram agulhas quanto ao famoso "momento inicial" (o qual não é bem um "momento"...). Mas isso não significa que 'tenham todos razão e já está porque estas coisas dependem de cada um'. A essa desistência 'porreirista' - ou 'politicamente correcta', em termos actuais - eu chamo de regressão.

Fica o texto e desculpe qualquer coisinha:

http://8e.devbio.com/article.php?id=162&search=human%20life

Anónimo disse...

Caro dorean paroxales,

Acho que a possibilidade de cairmos no caos ao legalizar-se ou descriminalizar-se a prática do aborto é um medo infundado. É também um medo que vejo multiplicar-se entre os que defendem a criminalização do aborto. Uma "slippery-slope" das mais típicas que se pode encontrar na sociedade.

O que está em causa não é uma desistência ou cedência do tipo do multiculturalismo. É reconhecer que há acções de ilegitimidade duvidosa cuja penalização pode ser gravemente injusta e ineficaz, estando montada numa base puramente moralista. Procurar uma solução para a questão do aborto passa por avaliar as consequências para a dignidade humana dos envolvidos.

Bem vistas as coisas, isto é completamente irrelevante para muitos dos que pretendem criminalizar o aborto. É crime, é imoral, é óbvio, ponto. A procura da definição da vida humana por parte de quem acha que ela tem valor trancendental é uma perda de tempo... Trata-se apenas de uma pesca de argumentos para apresentar aos que, legitima ou ilegitimamente, fazem a questão "o que é a vida humana?" ao longo do debate. Acaba numa resposta dogmática e que se prende com a questão de linguagem a que o João Vasco se referiu.

Posto isto, disse o dorean que existem «respostas que só dependem das nossas crenças». E porque terei eu de aceitar as crenças de alguém que recusa terminantemente as minhas? E que se socorre de falácias e dogmas quer as definições técnicas dêem ou não resultados? É ou não é verdade que uma das partes do debate não quer sequer colocar essas perguntas?

Disse o dorean:

«Eu chamo a esta tendência infeliz fixar a resposta para depois formular a pergunta que nos satisfaz melhor.»

Curioso que são justamente os grupos pró-vida que o fazem.

dorean paxorales disse...

Francisco disse:

"Posto isto, disse o dorean que existem «respostas que só dependem das nossas crenças». E porque terei eu de aceitar as crenças de alguém que recusa terminantemente as minhas?"

A ironia desse comentário perdeu-se algures na tradução, sem dúvida... Prometo que vou tentar de futuro reprimir essa minha tendência irritante.

E Francisco ainda disse:

"E que se socorre de falácias e dogmas quer as definições técnicas dêem ou não resultados? É ou não é verdade que uma das partes do debate não quer sequer colocar essas perguntas?"

Não me socorro de nada. A minha posição quanto à questão do aborto já foi dada aqui 346 128 578 vezes e é independente das definições, das 'falácias' e dos 'dogmas' que qualquer das várias partes em conflito, presentes ou não neste debate, queira dar. Leia lá os comentários outra vez e vai ver que no essencial até estamos de acordo.

Agora, a minha posição em relação à questão 'o que é a vida [humana]?' é outra que nada tem que ver com o aborto. As únicas 'falácias' aqui foram aquelas demonstradas por quem confundiu crença comum de causa (no que se incluem também qualquer religião) com crença científica de causa. A segunda nem sempre pode (deve?) ter tradução heurística fora de contexto, por maior que seja as tentações e as pressas da linguagem.

Eu havia escrito:

«Eu chamo a esta tendência infeliz fixar a resposta para depois formular a pergunta que nos satisfaz melhor.»

E depois o Francisco disse:

"Curioso que são justamente os grupos pró-vida que o fazem."

E eu repito-me:

Ambos, meu caro, ambos. É a frase final do meu primeiro comentário. Não vou voltar a repetir-me.

Anónimo disse...

Caro dorean,

Eu não disse que o dorean se havia socorrido de falácias ou dogmas. Referia-me aos grupos pró-vida. A mim parece-me é que os pró-vida são, na grande maioria dos casos, contraditórios e intelectualmente desonestos. Não incluí o dorean nesse grupo.

Apenas quis sublinhar que procurar definições científicas nada tem de desonesto à partida. E que se formos medir a deonestidade, então os pró-vida batem os pró-escolha aos pontos.

wishiwasspecial disse...

Nunca tinha lido tanta barbarida junta...

wishiwasspecial disse...

No artigo, substituir a palavra "aborto" por qualquer outro crime ....

Anónimo disse...

E agora vai poder fazer-se um aborto só porque não se gosta do sexo do bebé!