É uma discussão recorrente: existe quem defenda que o estado ou a comunidade deve ter um papel no estabelecimento de padrões de qualidade de vários produtos e serviços, e existe quem defenda que o mercado sem qualquer tipo de "distorções" é a melhor forma de garantir os desejos e vontades dos consumidores, incluindo a qualidade e segurança dos produtos ou serviços.
Defendem que a imposição de padrões de qualidade é uma imposição legislativa que viola a liberdade contratual e se intromete na relação entre consumidores e produtores, e que é ineficiente, arbitrária e inútil. É aos consumidores - afirmam - que cabe dar os incentivos adequados para que sejam produzidos produtos com a qualidade e segurança adequadas.
A objecção mais óbvia a esta ideia é que os consumidores não conhecem os detalhes do processo de fabrico da maioria dos produtos, e não podem portanto avaliar certos aspectos da qualidade do produto antes da decisão de o adquirir - ou mesmo depois. Por exemplo, um consumidor que não conhece as condições sanitárias da cozinha de um restaurante não tem forma de estimar a probabilidade de apanhar uma intoxicação alimentar por comer um arroz de polvo nesse estabelecimento.
A essa objecção, os defensores de um mercado desregulado respondem com a ideia de "reputação". Alegam que no curto prazo o consumidor pode ser enganado e comer um arroz de polvo confeccionado com condições sanitárias menos que desejáveis, mas cedo a ocorrência de problemas de saúde levará a que o restaurante em causa ganhe uma reputação duvidosa, os consumidores começarão a evitá-lo, e o mercado livre levá-lo-á à falência.
A mesma ideia se aplicaria à eficiência energética dos electrodomésticos ou dos apartamentos, aos ingredientes dos alimentos processados, ou até aos currículos das escolas e universidades particulares. No curto-prazo os consumidores podem ser prejudicados pela ausência de padrões de qualidade, mas no longo prazo a sociedade desenvolve formas de conhecer melhor a qualidade dos produtos e premiá-la ou castigar a falta dela na proporção que melhor reflecte a vontade dos consumidores.
Estes argumentos sempre me pareceram pouco mais que pensamento propiciatório. Alguém tem uma fé tão profunda e injustificada no funcionamento adequado dos mercados que se torna completamente cego às suas limitações. Em particular, assume um fluxo de informação a respeito das experiências de cada consumidor com os diferentes produtos e serviços que não tem qualquer espécie de fundamentação empírica. Mas existe fundamentação empírica (ampla) para dizer o contrário: a ausência de regulamentação dos padrões de qualidade de produtos e serviços pode ter consequências perversas às quais o mercado não dá resposta. Apresento de seguida um exemplo nesse sentido.
Jakob Svensson é um dos nomes mais importantes na área da economia do desenvolvimento, e é co-autor do artigo «Low Quality, Low Returns, Low Adoption: Evidence from the Market for Fertilizer and Hybrid Seed in Uganda», que apresentou recentemente. Na apresentação começou por falar sobre os problemas associados à produção de comida na África Subsariana: cada agricultor produz cerca de um terço daquilo que um agricultor ocidental produz. Existem várias razões para esta disparidade, mas uma delas é a quase total ausência do uso de fertilizantes, sendo que um uso "normal" poderia duplicar a produção agrícola. Saber se o uso de fertilizantes é desejável ou não é uma questão que sai do âmbito deste texto. Relevante para esta discussão é a razão pela qual os fertilizantes eram pouco utilizados: a generalidade dos fertilizantes vendidos acabava por ser adulterada: alguém adicionava areia, ou outros produtos, e diminuía a concentração de fertilizante (sem alterar a concentração exposta na embalagem), diminuindo a sua eficácia em consequência.
É possível identificar uma relação estatística entre a qualidade do produto (neste caso, a concentração do produto «original») e a abundância das colheitas. No entanto, a relação não é directa - vários outros factores influenciam a abundância da colheita, existindo algum grau de «ruído».
Os autores do artigo idealizaram um modelo onde cada agricultor observa a sua produção e procura tirar conclusões a respeito da qualidade do produto adquirido. Se o produto estivesse excessivamente diluído, os agricultores facilmente identificariam a inutilidade do mesmo, e deixariam de o utilizar. No entanto, a partir de um determinado limiar, é-lhes muito difícil tirar conclusões a respeito da qualidade do produto: é impossível aferir se a produção foi ligeiramente superior/inferior à média porque o produto é ligeiramente superior/inferior à média, ou se foi outra a causa da disparidade na produção. O limiar de diluição previsto teoricamente coincidia perfeitamente com o dos dados empíricos.
Assim, existe diluição suficiente para que alguns agricultores continuem a usar fertilizantes, mas em quantidades muito inferiores às que seriam adquiridas se não existissem dúvidas quanto à qualidade do produto. Note-se que todos os envolvidos na cadeia de produção dos fertilizantes, se tomados em conjunto, ficam a perder com estas práticas: vendem muito menos do que venderiam se não adulterassem o produto. No entanto, vários elementos da cadeia de produção individualmente considerados têm vantagem em abusar destas práticas - os ganhos ou perdas «reputacionais» da qualidade do produto são divididos por todos os produtores, mas os benefícios da diluição ficam com quem a pratica.
Em tese, a reputação poderia afectar cada revendedor ou cada elemento da cadeia de produção responsável pela diluição, e o mercado poderia funcionar devidamente ao fim de um tempo de adaptação. Se cada agricultor tivesse acesso às experiências de todos os outros (saber ao certo o que compraram e que resultados tiveram, e analisar estatisticamente essa muito maior quantidade de informação), o modelo delineado até prevê um mercado funcional. Mas na prática não é isso que se sucede: os agricultores não andam aí a partilhar estatísticas (nem os consumidores em geral), e assim o mercado não garante padrões de qualidade razoáveis.
Aquilo que se observa coincide exactamente com aquilo que se preveria matematicamente como consequência de um mercado desregulado.
É evidente que os mercados desregulamentados têm inúmeros problemas além da impossibilidade de garantir padrões de qualidade mínimos em várias situações. Este texto não abordou questões relativas às desigualdades da riqueza e rendimentos e os efeitos sociais perversos quando elas são excessivas, aos direitos dos trabalhadores, e várias outras questões importantes.
Este texto ficou-se nesta questão dos padrões de qualidade apenas porque ela constitui mais uma prova inequívoca da falta de fundamento da fé na capacidade auto-regulatória dos mercados.
Post também publicado no Espaço Àgora.
Defendem que a imposição de padrões de qualidade é uma imposição legislativa que viola a liberdade contratual e se intromete na relação entre consumidores e produtores, e que é ineficiente, arbitrária e inútil. É aos consumidores - afirmam - que cabe dar os incentivos adequados para que sejam produzidos produtos com a qualidade e segurança adequadas.
A objecção mais óbvia a esta ideia é que os consumidores não conhecem os detalhes do processo de fabrico da maioria dos produtos, e não podem portanto avaliar certos aspectos da qualidade do produto antes da decisão de o adquirir - ou mesmo depois. Por exemplo, um consumidor que não conhece as condições sanitárias da cozinha de um restaurante não tem forma de estimar a probabilidade de apanhar uma intoxicação alimentar por comer um arroz de polvo nesse estabelecimento.
A essa objecção, os defensores de um mercado desregulado respondem com a ideia de "reputação". Alegam que no curto prazo o consumidor pode ser enganado e comer um arroz de polvo confeccionado com condições sanitárias menos que desejáveis, mas cedo a ocorrência de problemas de saúde levará a que o restaurante em causa ganhe uma reputação duvidosa, os consumidores começarão a evitá-lo, e o mercado livre levá-lo-á à falência.
A mesma ideia se aplicaria à eficiência energética dos electrodomésticos ou dos apartamentos, aos ingredientes dos alimentos processados, ou até aos currículos das escolas e universidades particulares. No curto-prazo os consumidores podem ser prejudicados pela ausência de padrões de qualidade, mas no longo prazo a sociedade desenvolve formas de conhecer melhor a qualidade dos produtos e premiá-la ou castigar a falta dela na proporção que melhor reflecte a vontade dos consumidores.
Estes argumentos sempre me pareceram pouco mais que pensamento propiciatório. Alguém tem uma fé tão profunda e injustificada no funcionamento adequado dos mercados que se torna completamente cego às suas limitações. Em particular, assume um fluxo de informação a respeito das experiências de cada consumidor com os diferentes produtos e serviços que não tem qualquer espécie de fundamentação empírica. Mas existe fundamentação empírica (ampla) para dizer o contrário: a ausência de regulamentação dos padrões de qualidade de produtos e serviços pode ter consequências perversas às quais o mercado não dá resposta. Apresento de seguida um exemplo nesse sentido.
Jakob Svensson é um dos nomes mais importantes na área da economia do desenvolvimento, e é co-autor do artigo «Low Quality, Low Returns, Low Adoption: Evidence from the Market for Fertilizer and Hybrid Seed in Uganda», que apresentou recentemente. Na apresentação começou por falar sobre os problemas associados à produção de comida na África Subsariana: cada agricultor produz cerca de um terço daquilo que um agricultor ocidental produz. Existem várias razões para esta disparidade, mas uma delas é a quase total ausência do uso de fertilizantes, sendo que um uso "normal" poderia duplicar a produção agrícola. Saber se o uso de fertilizantes é desejável ou não é uma questão que sai do âmbito deste texto. Relevante para esta discussão é a razão pela qual os fertilizantes eram pouco utilizados: a generalidade dos fertilizantes vendidos acabava por ser adulterada: alguém adicionava areia, ou outros produtos, e diminuía a concentração de fertilizante (sem alterar a concentração exposta na embalagem), diminuindo a sua eficácia em consequência.
É possível identificar uma relação estatística entre a qualidade do produto (neste caso, a concentração do produto «original») e a abundância das colheitas. No entanto, a relação não é directa - vários outros factores influenciam a abundância da colheita, existindo algum grau de «ruído».
Os autores do artigo idealizaram um modelo onde cada agricultor observa a sua produção e procura tirar conclusões a respeito da qualidade do produto adquirido. Se o produto estivesse excessivamente diluído, os agricultores facilmente identificariam a inutilidade do mesmo, e deixariam de o utilizar. No entanto, a partir de um determinado limiar, é-lhes muito difícil tirar conclusões a respeito da qualidade do produto: é impossível aferir se a produção foi ligeiramente superior/inferior à média porque o produto é ligeiramente superior/inferior à média, ou se foi outra a causa da disparidade na produção. O limiar de diluição previsto teoricamente coincidia perfeitamente com o dos dados empíricos.
Assim, existe diluição suficiente para que alguns agricultores continuem a usar fertilizantes, mas em quantidades muito inferiores às que seriam adquiridas se não existissem dúvidas quanto à qualidade do produto. Note-se que todos os envolvidos na cadeia de produção dos fertilizantes, se tomados em conjunto, ficam a perder com estas práticas: vendem muito menos do que venderiam se não adulterassem o produto. No entanto, vários elementos da cadeia de produção individualmente considerados têm vantagem em abusar destas práticas - os ganhos ou perdas «reputacionais» da qualidade do produto são divididos por todos os produtores, mas os benefícios da diluição ficam com quem a pratica.
Em tese, a reputação poderia afectar cada revendedor ou cada elemento da cadeia de produção responsável pela diluição, e o mercado poderia funcionar devidamente ao fim de um tempo de adaptação. Se cada agricultor tivesse acesso às experiências de todos os outros (saber ao certo o que compraram e que resultados tiveram, e analisar estatisticamente essa muito maior quantidade de informação), o modelo delineado até prevê um mercado funcional. Mas na prática não é isso que se sucede: os agricultores não andam aí a partilhar estatísticas (nem os consumidores em geral), e assim o mercado não garante padrões de qualidade razoáveis.
Aquilo que se observa coincide exactamente com aquilo que se preveria matematicamente como consequência de um mercado desregulado.
É evidente que os mercados desregulamentados têm inúmeros problemas além da impossibilidade de garantir padrões de qualidade mínimos em várias situações. Este texto não abordou questões relativas às desigualdades da riqueza e rendimentos e os efeitos sociais perversos quando elas são excessivas, aos direitos dos trabalhadores, e várias outras questões importantes.
Este texto ficou-se nesta questão dos padrões de qualidade apenas porque ela constitui mais uma prova inequívoca da falta de fundamento da fé na capacidade auto-regulatória dos mercados.
Post também publicado no Espaço Àgora.
5 comentários :
Obrigado pelo aviso :)
Questiono: e então isto que acontece em África, porque é que não acontece na Europa? Será que na Europa o Estado anda a verificar se os fertilizantes não são adulterados?
Na Europa as instituições funcionam melhor. Eu não sei qual o grau de fiscalização que existe em relação à indústria de produção de fertilizantes (inspecções, etc.), mas imagino que se um latifundiário ou mesmo um médio agricultor suspeitasse que tinha sido enganado, faria meia dúzia de análises e depois procuraria ser indemnizado, e eventualmente apurar-se-ia quem na cadeia de produção é que adulterou o produto.
Ou seja: a diferença fundamental não está nas leis (imagino que nos países africanos estudados também existam leis que proíbam a venda de um produto que anuncia uma concentração completamente diferente da concentração real), mas no facto de existirem instituições capazes de as fazer cumprir (e apesar de tudo parece que na Europa há).
Mas esta incapacidade de fazer cumprir leis relativas aos padrões de qualidade (i.e. que o fabricante seja obrigado a anunciar na embalagem uma concentração que corresponda há concentração real) permite ter uma noção de como seria uma sociedade onde essa lei não existisse. Os mecanismos de mercado que supostamente tornariam tais leis dispensáveis simplesmente não funcionam.
A ideia de que o Estado não deve interferir com contratos entre privados parte da falácia da simetria entre as partes contratantes. No caso acima, o problema é que a informação não flui de forma perfeita, aliás em mercados como o africano provavelmente não flui de todo. Outro exemplo egrégio é o do mercado laboral. Curiosamente, os 'Liberais' defendem na prática medidas de repressão contra os sindicatos, seja através da perseguição aos trabalhadores sindicalizados, seja mesmo por meio de lobbying junto dos Governos para que se alterem as Leis e as tornem mais amigas da contratação e do 'Direito ao Trabalho' (novilíngua pura). Infelizmente, pessoas como o Luís Lavoura parecem-se com os Comunistas num aspeto, é que não levam em conta a natureza humana e a tendência natural dos seres humanos de abusarem da sua posição de Poder e torcerem as regras. As pessoas, Luís, não precisam de Moral, precisam é de Polícia...
Jaime Santos, cuidado que o Luis Lavoura não disse que partilhava da opinião descrita no texto segundo a qual os padrões de qualidade são dispensáveis. Suponho, sem certezas, que estava apenas curioso para saber mais sobre o assunto.
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