quarta-feira, 27 de abril de 2016

Esquerda e Europeísmo - IV

No texto anterior defendi que a forma da população recolher os benefícios da pertença a um mercado comum sem pagar o preço usual de aumento galopante das desigualdades é lutar por alargar o espaço da Democracia ao espaço desse mercado.
No caso concreto dos portugueses e europeus a resposta é clara: lutar por suprir o défice democrático da UE, fazendo da União Europeia um exemplo para o mundo. No que diz respeito ao comércio fora da UE, justifica-se uma política comum relativa às taxas aduaneiras que promova um comércio justo e sustentável.

Mas existem outras vantagens muito importantes neste processo, por oposição ao recuo ao estado-nação que o Daniel Oliveira e outros propõem. Existem três importantíssima razões acrescidas para lutar pela democratização da União Europeia, por oposição a um presumível abandono ou à manutenção do status quo.

A primeira vantagem tem a ver com a Paz, e falei sobre esse assunto em maior detalhe neste texto. Não é uma coincidência inesperada que a paz sem precedentes que se vive em grande parte do continente europeu aconteça precisamente no espaço geográfico e temporal da União Europeia. Quem viveu toda a sua vida em Paz tende a dá-la por garantida, mas um pouco de perspectiva histórica mostra os erros gravíssimos a que essa percepção equivocada nos pode conduzir.

A segunda vantagem tem a ver com o meio ambiente e a luta contra as alterações climáticas. Um conjunto desagregado de países tenderá, pelo processo da «tragédia dos comuns», a fazer muito menos que o adequado para combater as alterações climáticas e enfrentar outro tipo de desafios ambientais comuns. Portugal pode abandonar os mercados comuns, mas nunca poderá abandonar a «atmosfera comum» ou o «planeta comum». Na verdade, quanto mais agregados forem os blocos políticos, mais fácil (ou melhor dizendo, menos impossível) é a humanidade estar à altura dos desafios ambientais.
A razão é aquela que foi explicada no primeiro texto desta série: estamos perante um dilema do prisioneiro onde a acção concertada é a única saída. No caso dos problemas ambientais, abandonar o jogo não é uma opção. Se queremos proteger o clima, democratizar a UE é uma necessidade.

A terceira vantagem tem a ver com a força negocial face a multinacionais e paraísos fiscais. Quanto mais desagregados estiverem os estados, mais difícil será imporem condições e enfrentarem o poder das multi-nacionais.
Por outro lado, a importância económica dos paraísos fiscais cresce de ano para ano. Se os actuais blocos políticos dominantes com enormes défices democráticos (a UE e os EUA) não têm conseguido combater este flagelo - com tudo o que isso implica de injustiça e erosão do estado social - muito menos o conseguiriam estados isolados de muito menor dimensão.
Se o espaço de circulação do capital aumentou significativamente, o espaço de exercício da Democracia tem de acompanhar o passo.

Sem uma verdadeira democratização dos mercados comuns a Humanidade não conseguirá estar à altura dos desafios ambientais e sociais que se apresentam. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Esquerda e Europeísmo - III

Nos dois textos anteriores procurei argumentar que os mercados comuns assumem um papel análogo ao que os estados desempenhavam no século XIX: por um lado, pela dinâmica jogo-do-prisioneiro acabam por promover políticas que favorecem os mais ricos e poderosos face à população em geral, e por outro apresentam um défice democrático que dificulta ou impossibilita a solução para este problema.

Esta é a razão de fundo (embora existam muitas outras) para rejeitar acordos como o TTIP. Também é uma razão para olhar com preocupação para o défice democrático que existe na União Europeia.

No entanto, existe uma boa razão pela qual os países têm estado a agregar as suas economias em mercados comuns: eles realmente conduzem a um aumento da prosperidade. A razão económica fundamental pela qual o comercio internacional tende a promover a prosperidade dos envolvidos, com algumas excepções a título temporário (proteger uma indústria até que tenha dimensão para se impor no mercado internacional, por exemplo), já é conhecida profundamente desde o início do século XIX, mas foi ainda mais desenvolvida e aprofundada desde então, tendo uma das contribuições relevantes valido um prémio Nobel a Paul Krugman.

Isto quer dizer que existem dois pratos na balança: por um lado a pertença a mercados comuns tem o potencial de aumentar a prosperidade, por outro lado tem o potencial para aumentar as desigualdades. Se o primeiro "prato" tem um efeito poderoso e positivo sobre a qualidade de vida, o segundo tem um efeito poderoso e negativo sobre a qualidade de vida.
Assim, o debate silencioso entre quem quer manter o status quo e quem quer limitar significativamente a globalização parte deste pressuposto: não podemos ter Sol na eira e chuva no nabal. Ou prescindimos de uma fatia significativa do rendimento médio, ou aceitamos o acentuar galopante das desigualdades. Não há alternativa. E ambas as possibilidades tiram recursos vitais ao estado social.

Mas não é verdade que não exista alternativa. Existe uma, e já testada - com enorme sucesso, diga-se - na nossa história recente: alargar a Democracia ao espaço do mercado. Foi esta a solução que promoveu um aumento acentuado da qualidade de vida após a revolução industrial e durante as décadas do pós-guerra. É esta a solução mais compatível com os ideais Universalistas e transformadores da Esquerda.

Mas existem outras razões para querer batalhar pela democratização da UE.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

«Filhos da Madrugada» (Zeca Afonso)

Esquerda e Europeísmo - II

Karl Marx via o estado como uma «ferramenta da burguesia». Eu pessoalmente não sou marxista, e creio que Marx cometeu vários erros de análise na forma como olhou para a realidade do século XIX. No entanto, parece-me bastante razoável afirmar que neste ponto tinha razão: o estado dessa altura era um instrumento ao serviço dos ricos e poderosos, e as políticas públicas reflectiam essa realidade.

Face a essa situação, várias soluções poderiam ser propostas para lidar com as desigualdades esmagadoras e desumanas que a sociedade de então enfrentava:

-1) Inacção. Justificação: «Problema? Qual problema? Este grau de desigualdades reflecte a natureza humana, e interferir vai prejudicar todos.»

-2) Abolição do estado. Justificação: «Sem um estado central, a vontade maioritária da população acabará por se impor, e estas desigualdades tremendas passarão a ser algo do passado.»

-3) Transformação do estado. Historicamente esta proposta subdividiu-se em duas correntes:

i) Instaurar a «ditadura do proletariado». Justificação: «Pretende-se que este regime seja temporário, e que sirva para se proceder então à abolição do estado e criação de uma sociedade sem classes.»

ii) Democratizar o estado. Justificação: «O défice democrático da instituição «estado» é encarado como tremendo e inaceitável. Mas se a vontade popular guiar a acção dos líderes políticos, o estado poderá contribuir para diminuir as desigualdades em vez de as manter e acentuar.»


De então para cá a realidade mudou bastante. Grande parte das pessoas trabalhava, sem férias ou fins de semana, mais de 12h por dia, mal pagas e sub-nutridas. E nós sabemos qual destas abordagens melhor respondeu a este problema: a opção 3), transformar o estado foi a solução. Em particular, o ataque ao défice democrático (3-ii) foi a proposta melhor sucedida. Durante várias décadas, esta resposta contribuiu para uma acentuada redução das desigualdades e um aumento significativo da qualidade de vida de todos.

No entanto, com a evolução tecnológica, as escalas mudaram e a mobilidade do capital aumentou. A realidade económica que antes correspondia ao estado, corresponde hoje a blocos mais amplos: os mercados comuns. Um dos mais importantes é a UE e não é difícil ver algumas estruturas dirigentes a adoptar o papel que o estado tinha então: na imposição de medidas "austeritárias" ou na promoção dos interesses das multinacionais e outros grandes grupos económico-financeiros, parece que muitas vezes a UE está ao serviço do «grande capital». Isto traz-nos de volta à mesma encruzilhada.

A opção do PS é análoga à opção 1), uma resposta passiva que parece nem sequer reconhecer o problema. A resposta da CDU, BE e outros como Daniel Oliveira, é análoga à opção 2), uma resposta consistente mas disfuncional. No entanto, é a resposta 3 ii) que tem maior potencialidade para resultar na promoção de uma maior qualidade de vida para todos.

domingo, 24 de abril de 2016

Esquerda e Europeísmo - I

Num texto chamado «O Retrato de Dorian Grey», Daniel Oliveira faz a seguinte observação: « social-democracia só sobreviverá se conseguirmos recuperar alguns espaços nacionais de poder em que as democracias se sustentam. Mas Assis não é o único que ainda vive no doce embalo das memórias do século XX. Vemos bancos falirem e não compreendemos como podem falhar tão clamorosamente as instituições de regulação nacionais que aperfeiçoámos durante décadas. Vemos a desigualdade fiscal aumentar, obrigando a classe média a suportar sozinha o fardo da despesa pública, e aceitamos que o problema está na despesa pública que nos garante hospitais, escolas, polícias, juízes e pensões, e não nas empresas e nos milionários que legalmente conseguem fugir ao pagamento da sua parte da fatura. Vemos uma confluência entre o poder financeiro e o submundo da criminalidade e não compreendemos como a lei tem tanta dificuldade em distinguir mafiosos de homens de negócios. Há um erro de escala: para continuarmos a controlar o capitalismo ou limitamos a sua globalização ou globalizamos a democracia

Até este ponto, Daniel Oliveira tem toda a razão. Aqui Daniel Oliveira compreende algo que muitos parecem não compreender - o «dilema do prisioneiro» criado pelos mercados comuns.



A esquerda defende mecanismos redistributivos que procuram transferir riqueza do factor capital para o factor trabalho. O estado social, os direitos laborais, as prestações sociais, tudo isso contribui para melhorar a qualidade de vida da população, as condições de trabalho, os salários - mas muitas dessas conquistas contribuem também para reduzir a rentabilidade do capital.
Num mundo onde existem limitações à mobilidade do capital, estas vitórias progressistas podem prejudicar uma minoria de «rentistas» enquanto beneficiam a população em geral. Nas décadas que se seguiram à segunda guerra mundial os países ocidentais viveram um enorme aumento da sua qualidade de vida que acompanhou o aprofundar destas conquistas.

No entanto, à medida que a mobilidade do capital aumenta, outro factor entra em linha de conta: o capital pode fugir. Assim, o aprofundamento do estado social, de outros mecanismos redistributivos ou de protecção dos direitos laborais acabam por servir de obstáculo à entrada de investimento, e à criação de emprego consequente. Acabam por aprofundar o problema do desemprego.

As últimas duas frases do parágrafo anterior são O argumento fundamental da direita para defender o desmantelamento do estado social, e a reversão das conquistas civilizacionais da esquerda. Promove-se uma política de baixos salários e completa ausência de direitos sociais, uma sociedade mais desigual e desumana, alegando que essas situações de precariedade, baixos salários, e altas desigualdades são preferíveis ao desemprego generalizado.

E, no curto-médio prazo, num mercado comum, e com alta mobilidade do capital, estas estratégias propostas pela direita funcionam: ao desvalorizar o trabalho e os recursos naturais e premiar o capital, os estados conseguem mais investimento externo, mais emprego, mais prosperidade*.

Os mercados comuns podem portanto ter consequências perversas: os estados podem competir para captar o máximo de investimento, e assim atenuar o problema do desemprego. Aquele estado que menos proteger o trabalho ou o ambiente, menos tributar o capital ou combater as desigualdades, está em melhores condições para captar investimento externo se as outras circunstâncias forem semelhantes. Assim atenua ou resolve o problema do desemprego.
Mas essa situação não dura muito. Outro estado poderá desvalorizar ainda mais o trabalho, e tributar ainda menos o capital. No fim, verifica-se uma «corrida para o fundo», e todos acabam por perder. É uma dinâmica semelhante à do «jogo do prisioneiro»: aquilo que é melhor da perspectiva individual de cada jogador resulta no pior desfecho colectivo.
E isto não é uma mera abstracção: temos verificado o significativo aumento das desigualdades nos países ricos ao longo das últimas décadas, com todo o impacto negativo que isso teve na qualidade de vida das pessoas.

Para se obter o melhor resultado no «jogo do prisioneiro», é necessária uma acção concertada. Ou então foge-se ao jogo do prisioneiro, recusando esta interacção estratégica. Tal como Daniel Oliveira, compreendo que estas são as duas únicas opções progressistas para combater as desigualdades que se têm acentuado de ano para ano. O pensamento propiciatório daqueles que acreditam que é possível combater as desigualdades, proteger o ambiente e valorizar o trabalho sem alterar as regras do jogo na UE e outros mercados comuns, nem sofrer um desemprego permanente de tendência crescente, esbarra com a realidade. Infelizmente parece caracterizar muito do pensamento do PS em relação à Europa.

Mas a opção de Daniel Oliveira também traz problemas. E essa opção parece caracterizar o pensamento dos outros partidos de esquerda com representação parlamentar (PCP, PEV, e BE).


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Efeitos de um mercado desregulado - o curioso caso dos fertilizantes

É uma discussão recorrente: existe quem defenda que o estado ou a comunidade deve ter um papel no estabelecimento de padrões de qualidade de vários produtos e serviços, e existe quem defenda que o mercado sem qualquer tipo de "distorções" é a melhor forma de garantir os desejos e vontades dos consumidores, incluindo a qualidade e segurança dos produtos ou serviços.
Defendem que a imposição de padrões de qualidade é uma imposição legislativa que viola a liberdade contratual e se intromete na relação entre consumidores e produtores, e que é ineficiente, arbitrária e inútil. É aos consumidores - afirmam - que cabe dar os incentivos adequados para que sejam produzidos produtos com a qualidade e segurança adequadas.

A objecção mais óbvia a esta ideia é que os consumidores não conhecem os detalhes do processo de fabrico da maioria dos produtos, e não podem portanto avaliar certos aspectos da qualidade do produto antes da decisão de o adquirir - ou mesmo depois. Por exemplo, um consumidor que não conhece as condições sanitárias da cozinha de um restaurante não tem forma de estimar a probabilidade de apanhar uma intoxicação alimentar por comer um arroz de polvo nesse estabelecimento.

A essa objecção, os defensores de um mercado desregulado respondem com a ideia de "reputação". Alegam que no curto prazo o consumidor pode ser enganado e comer um arroz de polvo confeccionado com condições sanitárias menos que desejáveis, mas cedo a ocorrência de problemas de saúde levará a que o restaurante em causa ganhe uma reputação duvidosa, os consumidores começarão a evitá-lo, e o mercado livre levá-lo-á à falência.
A mesma ideia se aplicaria à eficiência energética dos electrodomésticos ou dos apartamentos, aos ingredientes dos alimentos processados, ou até aos currículos das escolas e universidades particulares. No curto-prazo os consumidores podem ser prejudicados pela ausência de padrões de qualidade, mas no longo prazo a sociedade desenvolve formas de conhecer melhor a qualidade dos produtos e premiá-la ou castigar a falta dela na proporção que melhor reflecte a vontade dos consumidores.

Estes argumentos sempre me pareceram pouco mais que pensamento propiciatório. Alguém tem uma fé tão profunda e injustificada no funcionamento adequado dos mercados que se torna completamente cego às suas limitações. Em particular, assume um fluxo de informação a respeito das experiências de cada consumidor com os diferentes produtos e serviços que não tem qualquer espécie de fundamentação empírica. Mas existe fundamentação empírica (ampla) para dizer o contrário: a ausência de regulamentação dos padrões de qualidade de produtos e serviços pode ter consequências perversas às quais o mercado não dá resposta. Apresento de seguida um exemplo nesse sentido.

Jakob Svensson é um dos nomes mais importantes na área da economia do desenvolvimento, e é co-autor do artigo «Low Quality, Low Returns, Low Adoption: Evidence from the Market for Fertilizer and Hybrid Seed in Uganda», que apresentou recentemente. Na apresentação começou por falar sobre os problemas associados à produção de comida na África Subsariana: cada agricultor produz cerca de um terço daquilo que um agricultor ocidental produz. Existem várias razões para esta disparidade, mas uma delas é a quase total ausência do uso de fertilizantes, sendo que um uso "normal" poderia duplicar a produção agrícola. Saber se o uso de fertilizantes é desejável ou não é uma questão que sai do âmbito deste texto. Relevante para esta discussão é a razão pela qual os fertilizantes eram pouco utilizados: a generalidade dos fertilizantes vendidos acabava por ser adulterada: alguém adicionava areia, ou outros produtos, e diminuía a concentração de fertilizante (sem alterar a concentração exposta na embalagem), diminuindo a sua eficácia em consequência.

É possível identificar uma relação estatística entre a qualidade do produto (neste caso, a concentração do produto «original») e a abundância das colheitas. No entanto, a relação não é directa - vários outros factores influenciam a abundância da colheita, existindo algum grau de «ruído».

Os autores do artigo idealizaram um modelo onde cada agricultor observa a sua produção e procura tirar conclusões a respeito da qualidade do produto adquirido. Se o produto estivesse excessivamente diluído, os agricultores facilmente identificariam a inutilidade do mesmo, e deixariam de o utilizar. No entanto, a partir de um determinado limiar, é-lhes muito difícil tirar conclusões a respeito da qualidade do produto: é impossível aferir se a produção foi ligeiramente superior/inferior à média porque o produto é ligeiramente superior/inferior à média, ou se foi outra a causa da disparidade na produção. O limiar de diluição previsto teoricamente coincidia perfeitamente com o dos dados empíricos.

Assim, existe diluição suficiente para que alguns agricultores continuem a usar fertilizantes, mas em quantidades muito inferiores às que seriam adquiridas se não existissem dúvidas quanto à qualidade do produto. Note-se que todos os envolvidos na cadeia de produção dos fertilizantes, se tomados em conjunto, ficam a perder com estas práticas: vendem muito menos do que venderiam se não adulterassem o produto. No entanto, vários elementos da cadeia de produção individualmente considerados têm vantagem em abusar destas práticas - os ganhos ou perdas «reputacionais» da qualidade do produto são divididos por todos os produtores, mas os benefícios da diluição ficam com quem a pratica.

Em tese, a reputação poderia afectar cada revendedor ou cada elemento da cadeia de produção responsável pela diluição, e o mercado poderia funcionar devidamente ao fim de um tempo de adaptação. Se cada agricultor tivesse acesso às experiências de todos os outros (saber ao certo o que compraram e que resultados tiveram, e analisar estatisticamente essa muito maior quantidade de informação), o modelo delineado até prevê um mercado funcional. Mas na prática não é isso que se sucede: os agricultores não andam aí a partilhar estatísticas (nem os consumidores em geral), e assim o mercado não garante padrões de qualidade razoáveis.
Aquilo que se observa coincide exactamente com aquilo que se preveria matematicamente como consequência de um mercado desregulado.

É evidente que os mercados desregulamentados têm inúmeros problemas além da impossibilidade de garantir padrões de qualidade mínimos em várias situações. Este texto não abordou questões relativas às desigualdades da riqueza e rendimentos e os efeitos sociais perversos quando elas são excessivas, aos direitos dos trabalhadores, e várias outras questões importantes.

Este texto ficou-se nesta questão dos padrões de qualidade apenas porque ela constitui mais uma prova inequívoca da falta de fundamento da fé na capacidade auto-regulatória dos mercados.

Post também publicado no Espaço Àgora.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Os Super-delegados e o LIVRE

Tal como eu, inúmeros portugueses estão a seguir com enorme atenção as eleições primárias norte-americanas.
Do lado dos Republicanos, a postura, atitude, discurso e acções de Donald Trump explicam muita da atenção que tem sido dispensada. Do lado dos Democratas a razão é mais inspiradora: Bernie Sanders é um líder fora de série - corajoso, genuíno, íntegro, e com propostas verdadeiramente transformadoras, tem cativado não apenas os jovens americanos, mas também os progressistas em todo o mundo.

Acontece que Bernie Sanders enfrenta uma batalha difícil. O "establishment" do partido democrata não simpatiza com a sua independência, e colocou-se quase completamente do lado de Hillary Clinton. Como a integridade de Sanders limita o acesso a financiamento para a sua campanha, é extraordinário que tenha tido os resultados que tem tido, e mesmo que a sua vitória nas eleições primárias seja improvável, não é certamente uma expectativa irrealista ou absurda. É possível que Sanders saia vitorioso neste processo, e desejo ardentemente que isso aconteça.

No partido Democrata o candidato do partido é decidido em convenção, e o processo de primárias permite determinar a escolha dos "delegados sob juramento" (pledge delegates) que constituem cerca de 80% dos delegados que votarão na convenção. Neste momento Sanders conta com 1099 delegados e Clinton com 1305 delegados. Com 1647 delegados por apurar, não é impossível superar esta diferença.
No entanto, existem 712 delegados cujo voto não é determinado pelo processo de primárias - eles representam o "establishment" do partido democrata e podem votar livremente na convenção. Sem grande surpresa a esmagadora maioria dos super-delegados que já fizeram declarações de voto, pronunciaram-se a favor de Hillary Clinton (469 vs 31). Se os super-delegados não alterarem suas intenções expressas, Bernie Sanders não terá qualquer hipótese de ser o nomeado.

Em resposta a esta situação, tenho visto muitos portugueses indignados com este sistema, e o défice democrático que implica. «Como é possível que 20% dos delegados não sejam determinados pelos eleitores mas sim pelas elites partidárias? É uma pouca vergonha, um escândalo!» Vejo muitas pessoas revoltadas com a ideia de um directório partidário poder calar um movimento popular como aquele que é liderado por Bernie Sanders, em favor do status quo, violando a Democracia que queremos ver nos partidos. Sobre essa reacção, tenho duas observações a fazer.

A primeira é que existem boas razões para acreditar que os super-delegados «não se atreverão» a alterar o resultado da votação: quem quer que consiga a maioria dos delegados «sob juramento» vai conduzir à alteração do sentido de voto dos super-delegados suficientes para que as bases do partido democrata não se sintam ultrajadas com aquilo que poderiam considerar «uma eleição roubada». Na verdade, existem vários precedentes nesse sentido, sendo o mais recente o do confronto entre Hillary e Obama, onde vários super-delegados trocaram o sentido de voto declarado perante as crescentes evidências da popularidade de Obama.

A segunda prende-se com o panorama político português. A esmagadora maioria das pessoas indignadas com estes «20% de democracia a menos» parece desconhecer a realidade nacional. Em Portugal, com excepção do LIVRE, nenhum partido faz primárias. Todos os partidos portugueses estão organizados de acordo com o sistema «100% super-delegados»: o «establishment» do partido escolhe o candidato, e os militantes/simpatizantes/eleitores não têm nenhuma palavra a dizer até à eleição «geral».
Ao contrário do partido democrata, o LIVRE não tem super-delegados - os votantes escolhem os seus candidatos sem distorções, e um «Bernie Sanders» não seria travado pelas «elites» do partido, já que estas estão despidas desse poder. Ao contrário do partido democrata, os restantes partidos portugueses não têm nada análogo a delegados «sob juramento»: um Bernie Sanders nunca teria qualquer hipótese porque os «directórios partidários» limitar-se-iam a não o escolher.

O escândalo com estes «20% de Democracia a menos» parece-me mesmo muito saudável: é a manifestação de um «instinto democrata» que encaro como positivo. Mas é de lamentar a inconsistência: onde está a mesma exigência para com os partidos nacionais com «100% de Democracia a menos»?

domingo, 17 de abril de 2016

74% são rendas

A respeito deste texto recente onde respondi informalmente à pergunta «Como os ricos ficam ricos?», vale a pena ver este texto a respeito da tentativa de estimar esses valores de forma empírica - aparentemente os valores coincidem com a minha intuição: 74% são rendas. 

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Como meio mundo anda a roubar o outro meio

É o nome deste vídeo do Expresso:

«Imagine um empresário, um banqueiro, um advogado e um amigo. E veja como o dinheiro de vários negócios lícitos e subornos ilícitos entra e sai do circuito legal. Mesmo em Portugal. Os Panama Papers estão a denunciar práticas globais de ocultação de dinheiro e património, numa investigação jornalística internacional de que o Expresso é parceiro. Numa versão alargada do 2:59, o programa de jornalismo de dados do Expresso, veja como os dinheiros entram e saem do circuito legal»

O vídeo foca-se num aspecto dos paraísos fiscais: a privacidade que garantem - essencial para quem obteve receitas com origem criminosa. No entanto, para explicar a frase do título, que também é a conclusão final do mesmo, é preciso lembrar a função bem mais prosaica dos paraísos fiscais: permitir fugir aos impostos de forma perfeitamente "legal". É principalmente este o combustível que tem garantido aos paraísos fiscais um crescimento muito acelerado até ao ponto em que correspondem a cerca de um terço da riqueza mundial.

De qualquer forma, gostei bastante da forma como este vídeo alertou para o papel dos RERT como parte integrante e essencial no processo de lavagem de dinheiro ou utilização geral dos paraísos fiscais para efeitos de fuga fiscal.
Mariana Mortágua também fala sobre os RERT neste vídeo da sua intervenção, de forma bem assertiva e certeira. Começa por falar sobre o «pseudo-paraíso fiscal» que existe na Madeira, e depois aborda os problemas dos paraísos fiscais de forma mais abrangente, e conclui falando nalguns primeiros passos que devem ser dados para não agravar este problema. São seis minutos que merecem ser vistos do início ao fim:


Post também publicado no Espaço Àgora.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Transparência na Europa JÁ!

Coloco aqui o texto de uma petição no qual me revejo, e apelo os leitores deste blogue a assinarem também, participando na luta por mais transparência e democracia na União Europeia:

«As Citizens of the European Union we demand, effective immediately,

  • the live-streaming of the entire European Council, Eurogroup, ESM Board of Governors and Ecofin meetings, and the subsequent publication of official transcripts for all such meetingsa full set of minutes for each ECB Governing Council meeting to be published three weeks after the conclusion of each regular meeting, and complete transcripts of these meetings to be published within two years
  • an exhaustive list of all Brussels lobbyists and a register of every one of their meetings with elected or unelected EU officials
  • electronic publication of all TTIP negotiating documents and full transparency at every stage of the TTIP negotiations. 



Why this is important

Transparency is the oxygen of democracy. Opacity (or ‘confidentiality’, as the insiders prefer to call it) is the harbinger of bad decisions undermining Europe’s common good.

Have you ever wondered why Europe’s unemployment rate is stuck at levels last seen in the United States in 2009?
Have you noticed how, for six years now, the Eurogroup produces monthly communiqués announcing that the end of the crisis is… just around the corner?
Did you know that, at this very moment, your own members of European Parliament can only see the negotiating documents that will shape the impending EU-US trade treaty (and thus determine the future of paid work, social welfare, innovation and environmental protection) as long as they swear that they will not tell you what these documents say?
Are you aware of the fact that there are ten thousand (!) lobbyists in Brussels whose job is to have regular secret meetings with your representatives in the EU for the purpose of persuading them to accept rules and regulations that often go against your interests?
Without knowing how your representatives behave on your behalf in Brussels and in Frankfurt, you have no control over them. Democracy then becomes a sham and EU decision-making adds error upon error.

Today, if you want to see any of the documents that shape Europe, or to read what your ministers said on your behalf in some pivotal meeting, you simply couldn’t. Nor will your grandchildren be able to see them in the decades to come as no minutes, transcripts or records are kept formally.

Is it any wonder then that the European Union institutions no longer enjoy the trust of Europe’s citizens?

Is it surprising that the European Union is at an advanced stage of disintegration?


No, it is not. It is, rather, the natural result of the cloak of secrecy enveloping decision-making at the level of the EU.