A 6 de Maio de 2002 Pim Fortuyn foi assassinado. Fortuyn era um político populista e xenófobo. Opunha-se abertamente à imigração de muçulmanos, que considerava provenientes de uma cultura "atrasada". Foi assassinado por um extremista ecologista holandês devido às suas posições sobre os muçulmanos.
A 2 de Novembro de 2004 Theo van Gogh foi assassinado. Van Gogh era um cineasta era um cineasta e articulista que também defendia posições polémicas, embora não tanto como Fortuyn, de quem de resto era amigo e apoiante. Foi assassinado por um extremista muçulmano holandês.
Ambas as mortes foram lamentadas, mas não geraram as ondas de comoção que geraram as dos cartunistas do Charlie Hebdo. Talvez por um atentado a um jornal ser visto como um caso extremo de condicionamento de liberdade de expressão, mas também talvez por van Gogh e Fortuyn serem personalidades controversas, sendo este último considerado um político de extrema direita. Ninguém pôs em causa as liberdades de expressão de van Gogh e Fortuyn, e ambos os atentados foram inequivocamente condenados. Mas havia em grande parte das pessoas a necessidade de se demarcar das posições, pelo menos de Fortuyn, apesar de ninguém lhe negar o direito de as afirmar.
Considero que qualquer religião é perfeitamente criticável (e aprecio críticas às religiões), mas alguns dos desenhos do Charlie Hebdo não se limitavam a criticar a religião, transmitindo antes mensagens xenófobas sobre uma comunidade. Por isso condeno absoluta e inequivocamente os atentados ao Charlie Hebdo, pelas vidas perdidas e pelo ataque à liberdade de expressão, mas sinto necessidade de me demarcar pelo menos de algum do conteúdo do Charlie Hebdo. A minha posição, pelo menos sobre alguns dos desenhos do Charlie Hebdo, é justamente esta. Se foi compreensível para os casos de Fortuyn e van Gogh, creio que também o será para este.
Estes assuntos são delicados. Na altura da crise das caricaturas de Maomé por um jornal dinamarquês (publicadas pelo João Vasco numa postagem abaixo), apoiei sem hesitar o direito de o jornal as publicar, e não me demarco delas. Pode ser que sejam de gosto discutível (qualquer desenho é); a intenção do jornal ao publicá-las talvez fosse despertar a ira da comunidade muçulmana e quiçá a islamofobia na Dinamarca; mas, no essencial, as caricaturas consistiam numa crítica a um aspeto totalitário da religião muçulmana: a proibição de representar graficamente Maomé. Essa proibição só é válida para quem quiser seguir os preceitos da religião muçulmana: nunca para todos os cidadãos. Religião e Estado são coisas diferentes. Deveria ser assim em todos os países e para todos os cidadãos. Se não é assim na maioria dos países árabes, considero isso lamentável. É assim na Europa e é assim que deve ser; os muçulmanos, imigrantes ou não, têm de perceber este facto. (Lamento afirmá-lo, mas estou portanto neste aspeto em total e absoluto desacordo com
Ana Gomes.) Acrescia na altura um facto mais grave: a ira de diversos países árabes era não só contra o jornal, mas também contra o governo dinamarquês, por permitir a sua publicação. Pretendia-se assim uma censura, algo que na Europa também é inaceitável. Essas caricaturas simbolizavam assim a liberdade de expressão e a laicidade, dois valores muito caros.
No caso do Charlie Hebdo não se chegou a esse ponto de países árabes terem pedido a intervenção do governo francês. Talvez alguns tenham aprendido a lição ou talvez (mais provável) saibam que, em França, uma exigência dessas nunca seria atendida e seria mais um motivo de ridículo. Dito isto, e como já afirmei, alguns dos cartoons do Charlie Hebdo não se limitam a criticar uma religião, lançando anátemas sobre uma comunidade imigrante que já de si vive numa situação desfavorecida. Solidarizo-me com o Charlie Hebdo somente para defender inequivocamente a laicidade e a liberdade de expressão; tenho de me demarcar do Charlie Hebdo na mensagem xenófoba de alguns dos seus cartoons, que não quero que passe à boleia do "Eu Sou Charlie".