terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Baixar IVA da eletricidade: uma má medida social e ambientalmente

Tem havido muita pressão, especialmente do BE, para a baixa o IVA da eletricidade, uma medida que terá o custo astronómico de 800 milhões de euros (de 23% para 6%). Infelizmente os argumentos a favor não passam do banal e  simplista "tudo o que dá uns tostões às famílias de classe baixa/média, é obrigatoriamente bom", independentemente de haver melhores alternativas e dos custos que acarreta.
Esta medida é socialmente muito fraca, porque a principal beneficiada será a classe alta. Estima-se que por cada 10% a mais de rendimento, o consumo de eletricidade seja 9,6% maior*. Pensado numa família de classe baixa, e numa com rendimentos 10x acima (com vários ACs, secadores de roupa, etc.), e é claro quem mais terá a ganhar com esta descida de IVA.
Se pensarmos numa política redistributiva dirigida especificamente aos 20% mais pobres, com o mesmo orçamento poderíamos encaminhar 400€/ano a cada pessoa, em vez de uns 20 euritos pelo IVA da eletricidade.
Ambientalmente então não há qualquer vantagem, ao premiar quem não faz um esforço de poupança energética, e aumentando em muito as emissões de CO2. Esta descida de 16% no preço, levará a um aumento de consumo de 9%**. Sendo que as renováveis têm prioridade de entrada no mercado português, qualquer aumento de consumo é (quase) sempre feito à custa de fontes fósseis de eletricidade.


*Elasticidade de 0,96
**Elasticidade de -0,578

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O suposto milagre dos quatro dias por semana

Circula por aí uma história extraordinária: «A Microsoft Japão experimentou semanas com 4 dias de trabalho e a produtividade aumentou 40%».
Parece bom de mais para ser verdade, e realmente é bom de mais para ser verdade.
Infelizmente, é treta.

Quem me lê sabe que acredito que seria essencial diminuir os horários de trabalho, e que essa deveria ser uma prioridade política dos partidos de esquerda. Tenho insistido nesse ponto com muita frequência. No entanto, acredito que este "mito" nunca deveria ser usado como argumento para essa redução, e gostaria de aproveitar este espaço para discutir melhor esta questão.

Convém começar por reconhecer que, em média, a produtividade por hora diminui com o número de horas trabalhadas. Ou seja, se trabalhamos menos horas, produzimos mais, em média, por cada hora de trabalho.

Claro que isto não é sempre assim. Para muitas profissões a produtividade média é praticamente constante. Alguém que está a vigiar um local, alguém num balcão de atendimento onde responde a dúvidas ocasionais, um lojista numa loja que não está pressionada por uma quantidade elevada de clientes são alguns entre muitíssimos exemplos de casos onde a produtividade média é aproximadamente constante, pelo menos para o tipo de horários que lei permite. Noutras profissões acontece o oposto: em várias profissões de elevadíssima complexidade pode acontecer que a produtividade aumente com o número de horas despendidas no problema: quem quiser trabalhar num projecto de tecnologia de ponta, se dedicar 10h por semana nem sequer vai chegar a compreender o projecto em causa, muito menos dar um contributo útil para o seu andamento. Dependendo da especificidade do projecto, pode acontecer que trabalhar 40h semanais corresponda a uma produtividade média por hora superior a trabalhar 35h. 

Mas, para a maioria das profissões, em agregado, podemos dizer que produtividade por hora corresponde à lei dos rendimentos decrescentes: quanto mais horas se trabalha, menos se produz, em média, por hora. E a razão pode nem ter tanto a ver com o cansaço, ou a motivação, mas à simples capacidade que muitos trabalhadores competentes têm de escolher como exercer o seu esforço com maior eficácia. Por exemplo, um relações públicas de uma empresa que trabalhe apenas 20h por semana vai lidar apenas com as questões mais relevantes e impactantes, e não se preocupar com algumas iniciativas menos consequentes. Mas se trabalhar 35h já vai ter tempo para se debruçar sobre essas questões. Se trabalhar 45h semanais, pode já não encontrar nenhuma iniciativa minimamente eficaz para realizar o seu trabalho.

Esta noção de que, em geral, a produtividade média por hora diminui com o número de horas de trabalho não tem nada de novo ou surpreendente. Já se sabe disso há muito tempo, é uma ideia intuitiva e banal.

Outra questão diferente é a da produtividade por semana. Será que a produtividade semanal aumenta com a diminuição do número de horas? A essa pergunta respondo com outra: será que as empresas estão organizadas e funcionam com o propósito de maximizar os lucros?
Se fosse relevante o número de situações em que a diminuição do número de horas de trabalho semanais corresponderia a um aumento da produção semanal, seria de esperar que os empresários começassem a propor contratos com um número de horas semanais mais reduzidos. Eles poderiam pagar ligeiramente menos e obter muito mais. 
A única maneira de conciliar a ideia de que a produtividade total aumenta com a redução das horas de trabalho com a observação de que as entidades patronais não querem reduzir os horários será partir do princípio que ninguém tinha, até agora, feito essa experiência. Afinal, é muito comum que as práticas que aumentam de forma muito substancial os lucros sejam mimetizadas pela concorrência e acabem por se generalizar, principalmente se a sua complexidade é relativamente reduzida. Que melhor forma de aplacar os líderes sindicais que pedem um aumento de 2% do que propor, em vez disso, uma redução do horário de trabalho que corresponda a aumentos por hora na casa dos 15% ou mais,  sabendo que os lucros vão disparar em consequência dessa "cedência"?
Como é evidente, essa experiência tem sido feita constantemente, em toda a parte. Já nos anos 70 cerca de 600 empresas nos EUA (com um total de 75 000 trabalhadores) implementaram semanas com 4 dias de trabalho. Nos anos 70 surgiu na imprensa o mesmo entusiasmo e expectativa que vemos agora na notícia sobre a Microsoft Japão. Mas a prática não se generalizou. Será que é porque as equipas de gestão são, sem excepção, tão incompetentes e fechadas que não reconhecem, década após década, um método de aumentar o seu lucro (e a sua popularidade entre os seus subordinados, já agora)? 
Ou será que algum "outlier" desperta tanta surpresa e interesse que se espalha pela comunicação social e pela imaginação colectiva muito mais do que pelas práticas empresariais porque, como é natural, não produzimos mais no total por trabalhar menos horas? 
Não existe nenhum milagre nem nenhum paradoxo. A produtividade total aumenta com o número de horas semanais de trabalho, pelo menos para o tipo de horários que são legalmente permitidos.

Não é surpreendente que sejam as pessoas que mais desejam alguma actuação legal para limitar os horários de trabalho quem espalha este tipo de notícias com mais entusiasmo, mas há alguma ironia nesse facto. Eu, que também vejo a redução dos horários como uma prioridade política crucial, vejo o entusiasmo em volta destes resultados como um obstáculo a essa luta. 

Vejamos: acreditar nestes resultados é ter uma percepção fundamentalmente errada do problema em causa. Presume-se que os interesses dos empregadores e trabalhadores não estão desalinhados ou em contradição: todos têm a ganhar com horários semanais mais reduzidos. O obstáculo a esses ganhos generalizados é a ignorância, o medo de experimentar formas diferentes de organização, valorizando mais a "tradição organizacional" que o lucro. Se ao menos a gestão de topo das empresas estivesse disposta a correr mais riscos em nome de lucros superiores, o problema estaria resolvido. Não faz sentido, neste caso, intervir legalmente para condicionar a actuação das empresas, o que importa é espalhar a informação, fazer chegar à gestão de topo das mesmas que estão milhões de euros à espera dos accionistas assim que existir a coragem de granjear a simpatia dos trabalhadores, da imprensa e do público em geral com esta medida de redução de horários. 

Mas a realidade é diferente. As entidades patronais ganham em garantir que as pessoas trabalham mais horas pelo mesmo vencimento, e é por isso que a luta dos sindicatos por horários mais reduzidos nunca foi pacífica ou baseada na "partilha de informação científica" - foi uma luta de décadas, muito violenta e consequente. Os interesses dos empregadores e dos trabalhadores estão em oposição neste caso, e é por isso que as empresas geralmente se "encostam" ao horário máximo que a lei permite. 

A redução dos horários de trabalho, por via legal, tem enormes benefícios. Conduz a uma redução do desemprego, conduz a um aumento do tempo de lazer, conduz a melhores indicadores de saúde, maior acompanhamento familiar, maior coesão social, maior participação política, e até conduz a maior produtividade por hora. Mas não, não conduz a maior produção. E isso é aceitável, é um preço muito razoável a pagar para viver numa sociedade com maior qualidade de vida, mais segurança e liberdade. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Razões da minha saída do LIVRE

Desvinculei-me do LIVRE no dia das eleições legislativas.

As razões político-ideológicas são evidentes: não me revejo na viragem de rumo do partido no último ano. Em parte ficam ditas no Público de hoje (páginas 8 e 9, em declarações feitas na sexta-feira antes do final da tarde).

Ajudei a fundar o partido em 2013-2014, na sequência da maior crise económica e política da democracia. Tinha mais de quarenta anos, nunca pertencera a partidos, não estava satisfeito com a divisão entre os dois lados da esquerda que impossibilitava um governo de esquerda e, mais geralmente, os partidos que vêm dos anos 70 pareciam-me entrincheirados em clivagens ultrapassadas. Vinha da militância republicana e laicista (onde aliás continuo). Sonhei na altura um partido no espaço da esquerda democrática, que preenchesse nichos político-sociológicos de que os outros partidos se desinteressam e que inovasse nas práticas democráticas. Foram anos de trabalho, alegrias e decepções, e portanto não foi uma decisão fácil.

Há também razões internas, de que dei conta aos que ficaram no LIVRE.

Continuo na luta, como independente.


terça-feira, 19 de novembro de 2019

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Decepção

Sou dos que há muitos anos defendem um governo de esquerda de preferência a um governo do PS.

O que tivemos na última legislatura foi um governo do PS apoiado pela esquerda, o que sempre foi melhor do que governos do PS sozinho, apoiado pela direita como nos anos 70 e 80, ou navegando à vista como na viragem para este século e no último governo Sócrates. Foi portanto um passo no sentido certo a aliança das esquerdas, passo tornado possível pelo sobressalto que foi a maior crise económica e social da democracia: a austeridade dos anos da tróica.

Na próxima legislatura, haveria condições para ir mais longe, e pela primeira vez termos um governo com ministros dos partidos à esquerda do PS. Seria aritmeticamente possível o PS fazê-lo com o BE ou com a CDU. Acontece que o PS não terá aceitado nem sequer um acordo escrito de incidência parlamentar com o BE.

Iniciamos portanto uma legislatura que deverá ser marcada pelo conflito parlamentar e eventualmente pela instabilidade. Só o facto de haver uma eleição presidencial em Janeiro de 2021 garante que durará dois anos. É pena.


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Contas básicas (comparação com 2015)

  • Votaram (quase) menos 300 mil pessoas.
  • O PS ganhou 120 mil votos.
  • O PSD/CDS perdeu 440 mil votos.
  • O BE perdeu quase 60 mil votos.
  • A CDU perdeu 115 mil votos.
  • O PAN ganhou 92 mil votos (mais que duplicou).
  • Chega, IL e Aliança juntam 170 mil votos.
  • O LIVRE ganhou 16 mil votos.

sábado, 5 de outubro de 2019

terça-feira, 1 de outubro de 2019

O post do costume, antes das eleições

Criei o hábito de partilhar neste espaço, antes de cada eleição, alguns dos fundamentos para o meu voto, o que me beneficia pelo registo que cria (a memória é traiçoeira), mas também pretende estimular o debate e eventualmente persuadir o leitor (afinal de contas, acredito na fundamentação que aqui partilho, pelo que desejo que tenha maior impacto).

No caso das próximas eleições, no entanto, embora exista uma proposta política da minha preferência (não surpreendentemente, trata-se do LIVRE) quis iniciar este texto a argumentando porque é que o eleitor de esquerda deve votar à esquerda do PS - em particular no LIVRE, BE ou CDU.

Na verdade, circula um manifesto que quase faz a argumentação por mim, mas eu gostaria de apresentar os mesmos argumentos sob uma outra perspectiva.
Um eleitor de direita, se estiver focado apenas na próxima legislatura e for pragmático, deverá votar PS (ou, se por alguma razão tiver particular sensibilidade ambiental, PAN).
A razão é simples: não existem dúvidas de que o PS será o partido mais votado nas próximas eleições. A dúvida que se coloca é saber se o PS terá votos suficientes para governar sozinho, sozinho com o PAN, ou condicionado por um partido consideravelmente à sua esquerda. Para o eleitor de direita nas circunstâncias que descrevi, não deveria existir dúvida nenhuma sobre qual a opção menos desejável. Mas se isto coloca o eleitor de direita numa circunstância atípica, também coloca o eleitor de centro-esquerda ou esquerda numa circunstância menos convencional. Pelas mesmas razões que o eleitor de direita deveria votar PS, o eleitor de esquerda - se gostou da prestação da "geringonça" - deveria votar à esquerda do PS.

O facto do PS ter estado condicionado à esquerda trouxe mais equilíbrio às suas políticas, mais escrutínio à sua actividade governativa, mais diálogo produtivo no debate público. Para reeditar esta solução política é fundamental aumentar a força dos partidos à esquerda do PS.

Ao contrário de outros autores deste blogue, não tenho qualquer desdém pelo PAN. Pelo contrário, sei que a vitória impressionante que teve nas últimas eleições europeias deu um contributo essencial para pôr as alterações climáticas em particular e o ambiente em geral no centro do debate político para estas eleições legislativas. Para quem se preocupar exclusivamente com as questões ambientais, será certamente um bom voto.
No entanto, um voto no PAN corre o risco de "destruir" a solução equilibrada e funcional que esteve em vigor na última legislatura (caso o PS apenas precise dos deputados do PAN para formar maioria no Parlamento). Embora eu seja da opinião que o PAN é um partido à esquerda do PS, a diferença entre ambos não é suficientemente vincada e prioritária para o Pessoas-Animais-Natureza condicionar a governação PS em qualquer domínio que ultrapasse as questões ambientais e animalistas. Isso significa que um voto no PAN poderá contribuir para formar um governo que governe muito à direita do actual.
Para quem prioriza as questões ambientais e quer manter uma geringonça "equilibrada" sugiro um voto no LIVRE (principalmente se o eleitor votar nos círculos de Lisboa ou Porto), cujo programa não é menos ambicioso que o do PAN em matéria ambiental (e também é muito forte em matéria de defesa dos animais), mas tem importantes diferenças no que diz respeito às questões económicas e sociais, e destaca-se pelas excelentes propostas de aprofundamento da Democracia em Portugal e na Europa bem como no domínio da soberania digital.

Relativamente a partidos como o MAS e o PCTP, a sua indisponibilidade para acordos de governação que envolvam o PS já foi deixada muito clara. Será um bom voto para quem considerou a "Geringonça" uma "traição" que prejudicou as causas da esquerda. Não é essa a minha avaliação.

Uma vantagem de votar LIVRE face a votar BE ou CDU, na minha opinião, é a enorme mais-valia que o LIVRE traz no que concerne às já mencionadas propostas de aprofundamento da Democracia, nomeadamente no palco europeu. Embora pouco se fale no assunto (principalmente por estarmos em eleições legislativas e existir um profundo equívoco que desvaloriza o papel que estas eleições têm em definir as políticas europeias), creio que se trata de uma questão sistémica absolutamente crucial, que vai acabar por determinar todas as outras no médio-longo prazo. Por outro lado, só com uma perspectiva que ultrapasse uma legislatura é que faz sentido votar LIVRE fora dos círculos de Lisboa e Porto, onde a probabilidade de eleger é bastante mais reduzida.

domingo, 22 de setembro de 2019

Ambientalismo ou animalismo?

O debate pré-eleitoral deste ano é o primeiro em que se fala seriamente de problemas ambientais e - o que não é de todo a mesma coisa - de direitos dos animais. O que torna premente distinguir ambientalismo e animalismo.

O ambientalismo é uma ideologia que prioriza a defesa do equilíbrio e a salubridade do meio-ambiente, algumas vezes o «desenvolvimento sustentável». Pode ser mais moderada ou mais radical, mais adepta do progresso tecnológico ou mais conservadora de modos de vida, mas permite uma conversa racional, porque é humanista: coloca o ser humano no centro das nossas atenções. O animalismo é uma filosofia de vida em passagem da esfera individual para o campo social e político. Parte do reconhecimento de que há outros seres sencientes (verdade) e chega rapidamente à conclusão de que qualquer actividade que implique sofrimento animal ou «exploração animal» é ilegítima. Pensa-se em ruptura com o que denuncia como «antropocentrismo», e que no fundo é o bom velho humanismo.

No debate político em Portugal, as duas abordagens, apesar de radicalmente diferentes, aparecem misturadas. É certo que em algumas questões conduzem aos mesmos resultados. Por exemplo, na polémica de redes sociais da semana passada, as restrições ao consumo de carne de vaca foram defendidas com argumentos ambientalistas (limitar o impacto da indústria agro-pecuária, que consome muita água e multiplica emissões), e com argumentos animalistas («é moralmente errado criar animais para abate»). Mas com os primeiros é possível um diálogo racional, que pondere outras formas de conseguir uma menor «pegada ecológica», enquanto com os segundos estamos perante uma barragem quase terrorista de argumentos sentimentais, e face à ânsia de limitar a liberdade dos únicos seres deste planeta providos de razão. 

Nem problema moral nem atentado ambiental, parte da liberdade individual.
O que os animalistas pretendem verdadeiramente é impor-nos um estilo de vida de acordo com a sua moral: uma preocupação quotidiana (e quase religiosa) com o impacto dos nossos mais pequenos gestos noutros seres vivos. Não pelo ambiente, mas pelos animais «sencientes». Acontece que se a liberdade significa alguma coisa, é justamente podermos escolher o nosso estilo de vida. E que há uma única espécie neste planeta que demonstrou ser capaz não apenas de formular direitos, mas também de respeitar deveres. Sendo o vegetarianismo e o veganismo legítimos como escolhas individuais, não podem ser impostos a toda a sociedade.

Os verdadeiros ambientalistas, particularmente no debate político e partidário actual em Portugal, devem portanto ter o cuidado de se diferenciarem daquilo que é animalismo (mal) disfarçado de ambientalismo. O que implica não se deixarem arrastar para a irracionalidade anti-humanista, ou colaborarem na ilusão de que os comportamentos diários dos indivíduos podem ter um impacto sequer comparável ao da regulação global dos transportes ou dos modos de produção de energia (quanto à comida, o desperdício de um terço da produção mostra como qualquer medida pontual sobre o consumo de carne é insignificante). Também, vezes demais, a acção ecologista parece convencida de que o «impacto zero» no planeta é possível; realista é discutir impactos maiores e menores.

Os ambientalistas têm ainda que se distanciar de alguns excessos, irracionalidades e sentimentalismos. «Salvar o planeta», por exemplo, é um slogan infeliz: é a humanidade que interessa salvar. Outro: muitos acreditam sinceramente, com fervor malthusiano, que o crescimento populacional é imparável (e até fazem apelos anti-natalistas), quando na realidade se prevê que a população mundial estagne daqui a meio século.

Gráfico sacado de Pinker (2018).

Os animalistas vivem uma contradição óbvia que desmascara o seu pretenso ecologismo: o tremendo impacto ambiental dos animais domésticos. Realmente, estima-se que cerca de um quarto do impacto da produção de carne seja para rações de animais domésticos. A caricatura do vegetariano que tem um cão que come carne não anda muito longe da realidade.

Finalmente, enquanto o animalismo é um estilo de vida urbano (legítimo, insista-se), de pessoas jovens e saudáveis de classe média, e que portanto se marimba olimpicamente no impacto que as suas medidas pseudo-ambientais tenham na vida dos mais pobres, um ambientalismo que se queira de esquerda não pode aceitar que os pobres paguem a crise ambiental. Em qualquer política ambiental de esquerda, deve-se preferir prejudicar os interesses de grandes empresas e Estados do que colocar todo o peso da «catástrofe climática» em pessoas pobres demais para terem a escolha da carne que comem, ou que não dispõem de alternativas de transporte ao automóvel pessoal.

domingo, 8 de setembro de 2019

A Ciência e os argumentos de autoridade

Quando era adolescente adorava ouvir e ler Carl Sagan. As palavras dele sobre Ciência e epistemologia eram-me verdadeiramente inspiradoras.

Uma série de outros autores de divulgação científica alinhavam pelo mesmo diapasão e eu gostava: a Ciência recusa "autoridades", o que importa são as "evidências"*, "devemos avaliar os argumentos pelos seus méritos, avaliar as evidências que os suportam, e ignorar a quantidade de gente que a eles adere ou a autoridade dos mesmos" e por aí fora. Para mim, que além de gostar de Ciência também tenho pouco entusiasmo por hierarquias isto era música para os meus ouvidos.

Mas não foi só em mim que esta ideia ressoou. Esta ideia entranhou-se na cultura popular de forma rápida e impressionante. A ironia é que os mais destacados defensores desta ideia são todos extraordinários lutadores contra a pseudo-ciência e a desinformação, mas esta ideia fez muitíssimo pela promoção da pseudo-ciência e desinformação. Os próprios nunca aceitariam esta afirmação: se consideramos as evidências com suficiente atenção e reflexão, obviamente vamos acabar por rejeitar a pseudo-ciência. E nisso têm razão.

Na verdade esta epistemologia seria a melhor epistemologia possível num Universo em que cada indivíduo tivesse uma capacidade cognitiva tremenda e uma quantidade quase ilimitada de tempo disponível para analisar todas as evidências. Se nos pudéssemos tornar especialistas de tudo, poderíamos avaliar todos os argumentos e afirmações científicas pelos seus méritos. Saberíamos o suficiente sobre Nutrição, Medicina, Física, Economia, História, Direito, Ciência Política, Química, Biologia, Matemática, Ciência da Computação, Antropologia, Psicologia, Sociologia, Engenharias várias e todas as demais ciências teóricas e aplicadas, para podermos compreender a literatura científica especializada e compreendermos se aquilo que é apresentado como "evidência" é realmente adequado ou nem por isso.

E ainda é a melhor epistemologia possível caso nos tenhamos especializado (formal ou informalmente) num campo do saber. Quem faz investigação numa área tem de ser capaz de avaliar as afirmações que são feitas nesse campo sem recurso a argumentos de autoridade ou de popularidade. Se faz investigação, se é um especialista, tem de saber procurar e avaliar as evidências, e são essas apenas que importam.

Mas geralmente nós somos confrontados com afirmações científicas em campos nos quais não nos especializámos. E muitas vezes não podemos simplesmente dizer "não sei", porque somos forçados a tomar uma decisão que tem implícita a aceitação ou recusa de uma determinada afirmação científica. Por exemplo, se leio num jornal que "a couve lombarda causa cegueira" (é um exemplo ilustrativo deliberadamente disparatado) eu posso decidir continuar a comer couve lombarda (tomando a afirmação como falsa) ou parar de comer couve lombarda (tomando a afirmação como verdadeira), mas a minha falta de capacidade para ir procurar e avaliar as evidências não me permite evitar esta decisão.
Um exemplo muito importante é a questão do voto. Os partidos políticos justificam as suas propostas com afirmações de índole económica, afirmações de índole histórica, de índole legal, índole ética e filosófica mas também de índole psicológica, climatérica, agronómica, etc...
Não é possível sermos especialistas em todos os campos do saber necessários para poder avaliar a veracidade das afirmações que os políticos fazem.

Como lidar com este problema?

O facto de não podermos ser especialistas em tudo tem uma consequência: vamos cometer erros. Vamos ter uma percepção da realidade que é inferior à que teríamos se avaliássemos todas as evidências disponíveis, reflectindo adequadamente sobre o significado e implicações das mesmas.
Mas como minimizar estes erros?
Usando heurísticas.

E é aqui que entra a legitimidade do argumento de autoridade.
Se não sou especialista numa área, eu uso uma heurística: confio no consenso entre especialistas. Quando a generalidade dos especialistas está de acordo num ponto, eu presumo que as evidências lhes dão razão, pois não tenho o tempo nem a capacidade de as avaliar. Confio que a discussão científica e a investigação até ao momento terá conduzido a maioria dos especialistas a tirarem a conclusão que melhor se alinha com as evidências disponíveis.
Se um criacionista ou um negacionista do holocausto me desafia com "evidências" eu sugiro que as apresentem num processo de revisão por pares ("peer-review") e que quando convencerem os especialistas eu também serei convencido. Quando me dizem que a comunidade científica está a conspirar para omitir certas verdades, eu já ouvi o que tinha a ouvir.
Dizem-me que os especialistas também estavam errados em duvidar do Galileu (é sempre este o exemplo apresentado), e eu admito que terão razão: esta heurística também pode falhar de vez em quando. Mas quando penso na quantidade de ideias falsas e disparatadas que os especialistas rejeitaram e me recordo que os tais especialistas eventualmente acabaram por aceitar as ideias de Galileu, sei que sem me tornar especialista na área não há nenhum processo tão certeiro como este.
E se a generalidade dos cientistas acredita numa determinada afirmação relativa ao seu campo de especialização, apresentar essa facto em suporte dessa afirmação - o argumento de autoridade - não se trata de uma falácia mas sim de um argumento adequado.

Note-se que poderão existir algumas excepções a esta heurística. Quando os especialistas da matéria em causa, no seu todo, têm fortes interesses pessoais na afirmação em causa, será mais legítimo duvidar da afirmação ou exigir outros fundamentos. Dito isto, não podemos encontrar relações suficientemente indirectas ou absurdas (os climatólogos têm interesse em empolar os perigos do aquecimento global para receberem mais dinheiro para investigação) ao ponto de alinhar com o pós-modernismo mais extremista.

Esta forma de funcionar permite "navegar" melhor pelos mares desconhecidos que somos forçados a navegar por necessidades pessoais e políticas.
A Ciência (principalmente as ciências naturais, graças a inúmeros avanços tecnológicos impressionantes e não só) granjeou um tal apreço e credibilidade que muitas pessoas acabam por usar esta heurística de forma intuitiva.
Quem não o faz, geralmente acredita simplesmente no que quer. Se os cientistas estão de acordo com o seu ponto de vista apresenta essa concordância como justificação adequada; se os cientistas discordam, então ai o Galileu e a Ciência não se faz por consenso.

É aqui que chego à razão pela qual, ironicamente, a popularidade da ideia de que devemos recusar os argumentos de autoridade acabou por ajudar tanto a promover a pseudo-ciência. É que quando as pessoas avaliam as evidências para apurar algo, só sendo especialistas na área é que estão efectivamente a avaliar todas as evidências sabendo contextualizá-las na investigação que foi feita. Quando não são, podem ver um "documentário" no canal "Discovery" sobre como existem Sereias, documentário esse que apresenta "evidências" (o mesmo pode ser dito sobre os "documentários" a dizer que o 11 de Setembro foi da responsabilidade do governos dos EUA, ou que os Aliens têm raptado gente no Alabama, ou que o aquecimento global é uma treta, e por aí fora...) e, na ausência de tempo e capacidade de se inteirarem de todas as evidências disponíveis sobre o assunto, acreditam que as "evidências" os levaram a concluir isto.
Note-se que  a generalidade das pessoas com quem os proponentes destas afirmações contactam conhece ainda menos "evidências" (não terão visto os "documentários") mas recusa acreditar nestes disparates com base em argumentos de autoridade (por exemplo, eu não vou perder o meu tempo à procura das evidências que demonstrem que as "evidências" de que as sereias existem são deficientes, porque não tenho vida para isso). Assim, os proponentes destas afirmações, com base na ideia de que são os próprios cientistas que nos dizem para rejeitar argumentos de autoridade, ganham acrescida convicção e investem-se mais ainda nestas crenças e na sua promoção. Eles têm estas convicções com base em "evidências", as pessoas à sua volta rejeitam-nas sem razões adequadas.

A ironia é que, com base nesta ideia de utilizar heurísticas, eu tendo a ter muita confiança nas afirmações de muitas das pessoas que ainda hoje promovem a recusa em aceitar argumentos de autoridade. Um exemplo ilustrativo é o youtuber potholer54 que faz um excelente trabalho de divulgação científica. Ele apela constantemente a que confirmemos por nós próprios tudo o que ele diz, facilitando o trabalho com links para todos os artigos científicos a que se refere ou outras referências que faça. Tal como Sagan, Tyson e outros divulgadores, a epistemologia apresentada é a da recusa total de argumentos de autoridade.

Mas por muito que aprecie todo o seu conteúdo, bem como a forma como expõem e como descrevem a literatura científica, acredito que está na hora de começarmos a pensar numa epistemologia diferente, adequada a uma população que tem de formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências. Temos de saber quando e como usar argumentos de autoridade, compreendendo que há contextos nos quais são válidos e adequados.

Post também publicado no Espaço Ágora.

* - a tradução mais natural de "evidences" seria "provas", mas "provas" em português está associado a indícios tão fortes que se tornam quase definitivos, enquanto que o termo anglicizado "evidências" é mais fácil de associar a todos os indícios resultantes da observação que sejam relevantes para o que se pretende apurar.
Este uso do termo tornou-se tão comum que já consta do dicionário, logo a seguir ao seu significado original. 

domingo, 25 de agosto de 2019

Pelos seus frutos os conhecereis? O paradoxo das ditaduras comunistas

Um prefácio que se impõe a este texto é o de que eu pessoalmente não sou marxista. Li os dois primeiros volumes do Capital e considero ambos uma leitura muito interessante, mas não estou de acordo com a análise que Marx faz da realidade em vários aspectos cruciais.

Dito isto, e sendo verdade que hoje o panorama do pensamento e ideologia marxista é extremamente amplo e diverso, é notável que uma enorme proporção (que me parece mais do que maioritária, mas nem insisto nesse ponto - é inequívoco que será uma proporção relevante) não só não tem propensões autoritárias, como inclusivamente tende a ter propensões anti-autoritárias, e em muitos casos inequivocamente libertárias.

Mas neste caso impõe-se a questão: então porque é que quando um partido ou movimento comunista conquistou o poder, sempre ou quase sempre o exerceu de forma extremamente autoritária ou mesmo totalitária?
Muitos anti-marxistas têm a resposta: "pelos seus frutos os conhecereis". O pensamento marxista - afirmam - é intrinsecamente e inexoravelmente autoritário, por muito que afirme o oposto, e a prova está aí: se tantos e tão diversos movimentos marxistas diferentes, todos eles (ou certamente quase todos eles) exerceram o poder de forma tão autoritária, temos uma "amostragem" mais que suficiente para concluir que o marxismo é intrinsecamente autoritário.

Eu creio que existe neste argumento um erro crasso. Aquilo que se chama em estatística "um problema de selecção da amostra".

Vejamos o seguinte, imaginemos que eu estou a debater com um amigo qual o perfil das pessoas que gostariam de ter um Ferrari. Vamos supor que ele defende que 95% das pessoas que gostariam de ter um Ferrari têm um rendimento mensal superior a 2000€ por mês, enquanto que eu alegaria que a proporção de pessoas com rendimentos inferiores que quer ter um Ferrari é muito superior a 5% do total de pessoas com essa vontade. Agora imaginemos que o meu amigo apresenta como prova o facto das pessoas que efectivamente compraram um Ferrari terem, 95% delas, um rendimento superior aos tais 2000€. É fácil identificar o erro da "prova": a amostra das pessoas que adquiriam o automóvel não é uma amostra aleatória das pessoas que o desejam. Um rendimento elevado aumenta a probabilidade de aquisição dado que essa vontade já existe.
Na verdade, tanto quanto sabemos, as pessoas nessa categoria de rendimento podiam ser apenas 2% das que quer comprar um Ferrari, e ainda assim 95% das que efectivamente o compram.
Este erro - assumir a amostra como aleatória - distorce completamente as conclusões que o hipotético e falacioso amigo tira dos dados a que tem acesso.

Voltemos ao marxismo. A "população" de partidos e movimentos marxistas será muito diversa, e existirá uma proporção com tendências mais autoritárias e uma proporção com tendências mais anti-autoritárias.
Sucede-se que em Democracia a população geralmente tende a desgostar de propostas que apresentem um projecto de transformação social muito rápido, amplo e imprevisível. Há N razões psicológicas e sociais que explicam esta tendência, mas a verdade é que muito raramente conquista o poder por via democrática quem propõe transformações económicas radicais, principalmente se não for apoiado à partida por fortes interesses económicos.
Este contexto torna quase impossível um movimento marxista com tendências anti-autoritárias conquistar o poder.
Para um movimento marxista com tendências autoritárias, no entanto, existem outras formas de conquistar e manter o poder que não exigem a conivência da maioria da população.
Assim, quando olhamos para o panorama de movimentos marxistas que conquistaram o poder não vemos uma amostra dos movimentos marxistas em geral.

Assim sendo, não seria expectável que se um partido marxista que tenha, ao longo de décadas, participado pacificamente no "jogo democrático", se tornasse autoritário caso chegasse ao poder por via democrática. A amostra que justificaria tal receio não se aplicaria neste caso.

E já agora, a aversão das pessoas em geral face a transformações sociais rápidas, amplas e imprevisíveis não seria, por si, razão para as evitar. O fim da escravatura, o sufrágio universal ou até o fim da monarquia absoluta já todas se encontraram nesta categoria algures no passado.

No actual contexto democrático (que defendo), qualquer transformação ampla deve ter a conivência da maioria da população, mas isso pode eventualmente exigir um esforço de persuasão caso essa transformação seja desejável.

Há boas razões para rejeitar muitas propostas de transformação social marxistas, mas assumir que quem as propõe tem necessariamente tendências autoritárias não é uma delas.

É mais complicado que isso. 

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Petição contra “tribunais privados” com mais de 4000 assinaturas portuguesas

Mais de 4000 assinaturas portuguesas na petição contra o ISDS

A petição europeia “Direitos para as pessoas, regras para as multinacionais”  - em cuja divulgação me tenho empenhado pessoalmente - já contém mais de 4000 assinaturas portuguesas.

A iniciativa europeia, que foi lançada em Janeiro, conta com quase 600 mil assinaturas em toda a Europa. Ontem ultrapassou as 4000 assinaturas de cidadãos portugueses.

Se é verdade que, em proporção do número total de assinaturas, o número de assinaturas portuguesas não pareça extraordinário, também é verdade que a população portuguesa é, na Europa, aquela que maior desinteresse apresenta por questões de política e cidadania, o que muito prejudica o país.

Por exemplo, muito poucos portugueses têm conhecimento de como o ISDS afecta as suas vidas, nomeadamente por via da relação entre este mecanismo e as chamadas “rendas excessivas” de que a EDP usufrui.

O valor das 4000 assinaturas é simbólico na medida em que é este o número que uma petição nacional tem de atingir para ser discutida em plenário na Assembleia da República. É um valor que muitas petições não conseguem atingir. É um valor que demonstra que existe suficientemente interesse por parte da população para que estas questões mereçam espaço no debate público.

Existe um sistema paralelo de justiça, chamado ISDS, que não é mais que um sistema de justiça privada que representa uma perigosa ameaça para o ambiente, a democracia e os Direitos Humanos. Apesar desta ameaça sobre o planeta e as pessoas, infelizmente poucos estão a par. É necessário promover a discussão pública deste assunto tão importante. Em grande medida é esse o objectivo desta petição: conseguir que se discuta uma questão tão importante para todos.

A rede europeia pretende continuar a recolher assinaturas, tendo também previstas outras iniciativas para alertar a população relativamente aos “perigos do ISDS”.

A TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo, de que faço parte, vai continuar a fazer todos os esforços para que as pessoas saibam o que é o ISDS e estejam a par de outras questões associadas ao comércio internacional que podem afectar as nossas vidas de forma mais indirecta, mas não por isso menos intensa.


Post também publicado no Espaço Ágora.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Os problemas da política identitária e as alternativas possíveis

A política identitaria original é de direita: afirma que a nação é branca e cristã, e que os outros são minorias toleradas. Perdeu a hegemonia há muito, e em Portugal só na direita mais extrema se encontra quem articule politicamente que alguém é menos português do que os outros por ser de origem africana ou de cultura cigana. A política identitaria de esquerda opõe-se à da direita erigindo a "mulher negra lésbica" em arquétipo da vítima de todas as discriminações e opressões do "homem branco heterosexual". Ambas desvalorizam a classe social quer como causa de exclusões e privações quer como solução para aspirações frustradas. E ambas esquecem que todos os indivíduos têm necessidades, ambições e interesses comuns, independentemente dessas diferenças.

De direita ou de esquerda, a política da identidade tem como pressuposto que o lugar de cada indivíduo nas hierarquias sociais é especificado pela identidade de género, ou a religião, ou a pertença étnica (ou «racial»), ou a orientação sexual. Na versão de direita, as mulheres não devem tomar decisões nem assumir grandes responsabilidades, os bichas que se fechem em casa, e os pretos e ciganos que desapareçam. Na versão de esquerda, só tem direito a definir (vulgo, ter «lugar de fala») o anti-racismo quem é negro ou cigano, a falar de direitos LGBT quem o for, e o feminismo é das mulheres. Ambas as versões são portanto excludentes ou, no mínimo, hierarquizantes das relações entre indivíduos. Negam a palavra ou a dignidade a pessoas por critérios de género, etnia, opção religiosa ou orientação sexual. Nenhuma tem como objectivo uma sociedade igualitária, que seja cega, surda e muda quanto às características tribais atrás referidas.

A politização das identidades representa um perigo para a democracia representativa que não se coloca com a classe social. Porque rejeita que partidos, deputados e governos representem ideologias e interesses sociais, e os reduz a montras de identidades. Todavia, não há qualquer razão para que um branco gay não se sinta representado politicamente por uma negra hetero, ou vice versa, ou qualquer cidadão por outro cidadão de "identidades" diferentes. E felizmente, a maioria das pessoas em países civilizados tem o bom senso de não escolher em quem vota por critérios de cor de pele, orientação sexual ou afins. Mas os dois lados da política identitaria alimentam-se mutuamente, e nos países democráticos envenenados pelos choques de identidades verifica-se que quem ganha é a identidade maioritária, não as oprimidas.

Há em Portugal trabalhadores precários que todos os dias se esmifram para ganhar o salário mínimo antes de voltarem de transportes públicos para os subúrbios. Se lhes disserem que serem homens ou brancos ou heterossexuais os transforma a eles (ou a elas) em privilegiados ou até opressores, a reacção será entre o sorriso irônico e a irritação. A reacção será porém mais agreste se lhes explicarem paternalmente que usar com desleixo certas palavras em que nunca pensaram muito tipifica machismo, racismo e homofobia. Não se voltarão imediatamente para os santos protectores das identidades tradicionais, que só têm para oferecer a caridade e o orgulho num passado que passou. Mas será sempre melhor tratar cada cidadão como um indivíduo provido de razão e capaz de articular a relação entre as suas circunstâncias e as suas opções políticas livre das suas "identidades", e que no fundo só quer viver melhor. 

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O eixo esquerda-direita é o "primeiro componente principal" do espaço multidimensional do pensamento político

Ocorreu-me uma ideia (um "bitaite"), que quis partilhar. Aproveitei para escrever este post sobre o assunto. Da última vez que tive uma ideia deste tipo tinha 16-17 anos e antecipei em alguns anos a popularização da ideia dos dois eixos (propriedade privada vs redistribuição e liberdade vs autoritarismo) do "political compass". Embora tenha partilhado esta ideia na altura com vários colegas do secundário, não tinha um blogue onde pudesse ter escrito o meu "bitaite". Mas agora faço parte de um blogue onde, com sorte, alguns leitores se podem interessar por mais uns palpites sobre o "mapeamento" do pensamento político.

Os termos esquerda-direita têm uma origem histórica (a esquerda em oposição ao poder absoluto do Rei, ao contrário da direita), mas muitos alegam que o uso que lhes é dado já não corresponde à origem histórica (obviamente não me refiro à razão trivial de que não existe Rei em muitos dos países em que os termos esquerda-direita são usados, mas sim à alegação de que o que define a esquerda não é a oposição a uma excessiva concentração de poder).

Sucede-se que todos temos uma noção intuitiva daquilo que é a esquerda-direita na nossa sociedade, mas verificamos que em sociedades diferentes, com um historial diferente, os termos esquerda-direita assumiram valores não necessariamente iguais, e por vezes até bastante diferentes. 
Então, o que representa o eixo esquerda-direita de uma forma mais geral?

Comecemos por considerar que o espaço do pensamento político é multidimensional. Na verdade, poderíamos pensar num espaço com centenas de milhares de dimensões (para não dizer infinitas) em que cada dimensão seria uma possível proposta política ("devia reduzir-se o máximo do horário de trabalho para as 35h"; "devia nacionalizar-se toda a indústria"; "devia legalizar-se a venda de órgãos"; "devia ser proibido criticar a liderança política do país"; "deviam taxar-se as emissões de CO2"; etc.) onde cada um poderia posicionar-se com "concordo muito"; "concordo"; "sem posição sobre o assunto"; "discordo"; "discordo muito". 
Como um espaço com tantas dimensões é completamente inoperacional, as pessoas com maior interesse por política tenderiam a fazer uma "análise de componentes principais" intuitiva e a reduzir consideravelmente o número de dimensões para posicionar um determinado pensamento, partido ou ideologia. 
Se quisermos pensar num espaço do pensamento político em que cada um dos eixos importantes teria alguma "semântica" intrínseca, talvez encontrássemos eixos como estes:

-Redistribuição da riqueza vs Protecção da propriedade privada

-Protecção das liberdades individuais vs Reforço do poder coercivo do estado

-Priorização da defesa do meio ambiente vs Outras prioridades

-Aumento do poder na escala nacional vs Aumento do poder na escala supra-nacional

Aqui cada eixo se torna mais "contínuo" pois a quantidade de propostas possíveis que se relacionam com cada um deles seria simplesmente imensa. 

No entanto, (infelizmente) a esmagadora maioria dos eleitores não acompanha a política com suficiente atenção e empenho para que muito do debate político relevante possa ocorrer neste espaço político multidimensional, mesmo que simplificado. É necessária uma simplificação acrescida. 
A diversidade de posições políticas, as alianças e inimizades tendem a fazer o debate político coalescer num único eixo. Este eixo será o primeiro componente principal do espaço multidimensional do pensamento político e será designado por esquerda-direita.

De acordo com esta teoria, numa sociedade onde tem lugar uma ditadura comunista e onde tem lugar uma ditadura fascista os termos esquerda e direita assumem significados consideravelmente diferentes.
As pessoas com tendência para se oporem ao poder absoluto tenderão a coalescer em torno das propostas económicas opostas às do poder instituído. Assim, a "direita" de um país com uma ditadura comunista poderá ser "pró-liberdade" (a favor da liberdade de expressão, a favor do estado de direito, contra a tortura, etc.) enquanto que será a esquerda de um país com uma ditadura fascista a coalescer em torno destes valores. Se o poder económico não quer obstáculos ao lucro de curto prazo, tenderá ser a esquerda a priorizar o ambiente, e a direita a desvalorizar essas questões. A esquerda pode chegar ao ponto de alegar que não pode existir solução para os problemas ambientais num sistema capitalista. Mas também não custa muito encontrar exemplos do fenómeno oposto. 
Nos EUA, o eixo relativo às políticas identitárias tornou-se tão importante que vários dos apoiantes de Trump defendem políticas redistributivas. Na realidade o termo "extrema-direita" denuncia que "direita" não representa necessariamente uma perspectiva "pró-mercado". O termo foi cunhado por uma História onde o eixo esquerda-direita tinha no seu extremo-direito um pensamento que era muito mais convicto na defesa do poder coercivo do estado, no nacionalismo, etc. do que necessariamente na defesa da propriedade privada. 

Gostaria de ver algum teste empírico a esta hipótese. Conceptualmente não é muito difícil, mas seria muito interessante fazê-lo em várias sociedades. 



Adenda: O Miguel Madeira partilhou este interessante artigo, que confirma a ideia de que não existe em todas as sociedades a mesma relação entre as convicções relativamente à distribuição da riqueza e aquilo que por vezes se designa a "esquerda cultural".

Relativamente ao exemplo de um país sujeito a uma ditadura comunista num passado recente, concluiu-se o seguinte: "Post-communist status. Within nations that were under communist domination during the Cold War, the traditional value-based underpinnings of social conservatism might give rise to left-wing economic views. Indeed, the analyses testing the two-way interactions revealed that post-communist status significantly moderated all six relationships between cultural and economic conservatism variables (see Appendix Tables F1 and F2). In each case, the interaction
term’s coefficient was negative, indicating that the cultural-economic conservatism relationship
was more negative in post-communist nations than it was in other nations."

Sempre é um indício empírico a favor da hipótese apresentada. Insuficiente, mas promissor. 

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Há diferenças de interesses entre os géneros com origem biológica?

É certo que um dia as percentagens de homens e mulheres venham a ser praticamente as mesmas em todas as profissões?

Ou será que, pelo contrário, haverá sempre certas profissões com mais mulheres (ou homens) do que outras?

E se houver realmente diferenças significativas entre as escolhas profissionais de homens e de mulheres, isso resultará de condicionamento social ou de predisposição biológica?


O vídeo acima aborda estas questões, e vale a pena.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Fazer o oposto de Trump

Enquanto activista da TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo escrevi um texto que foi publicado no Público.

O texto chama-se Fazer o oposto de Trump e diz respeito ao tipo de clivagem comum no debate público entre aceitar a globalização tal como ela existe (com as suas insustentabilidades a nível ambiental, económico e político) ou defender uma alternativa com pressupostos nacionalistas, xenófobos e anti-ecológicos (a "política de Trump").
O texto propõe uma terceira alternativa: recusar o status quo actual, mas caminhar na direcção oposta à de Trump e construir uma globalização com pressupostos universalistas, solidários e ecológicos.

Assim, a tese principal do texto é a seguinte:

«No entanto, quiçá mais grave ainda do que a contribuição dada para o aumento avassalador das desigualdades e para a estagnação dos salários, tem sido o impacto ambiental insustentável resultante da forma como estruturamos o comércio internacional. O actual nível de emissões de CO2 ou equivalentes (se não for travado) irá dar origem a danos materiais e humanos que em muito superam os sofridos pela Humanidade durante a segunda guerra mundial. No entanto, as alterações climáticas estão longe de ser o único desafio ambiental de proporções planetárias seriamente agravado por esta forma de globalização que vem sendo realizada. É cada vez mais urgente uma globalização muito diferente.

Nos EUA, a frustração com os impactos da globalização foi um dos factores que contribuiu decisivamente para a vitória de Donald Trump. Porém, a política comercial de Trump tem sido verdadeiramente catastrófica. A subida das taxas aduaneiras tem sido errática, precipitada, inconsequente. Pior: subjacente a estas subidas está uma postura de rejeição do multilateralismo; uma crença na ideia de que o comércio é um jogo de soma nula em que uns países ganham à custa dos outros, sem que ambos possam perder ou ambos possam ganhar; e um profundo desprezo pela necessidade de diminuir o impacto ambiental da actividade económica.

Se Trump fez bem em rejeitar o status quo insustentável desta globalização, ele optou por caminhar na direcção precisamente oposta à da defesa do interesse público. Urge fazer exactamente o contrário.

Quando pensamos no comércio internacional entre dois países é fundamental rejeitar a noção de soma nula. Um mau acordo pode prejudicar as populações de ambos os países para benefício de um punhado de multinacionais, mas um bom acordo poderia trazer benefícios a ambas as partes. Por esta razão, importa rejeitar pressupostos nacionalistas ou xenófobos e partir de uma perspectiva universalista e solidária. É fundamental combater o progressivo esvaziamento da Democracia e empoderar a população e a sociedade civil no delinear da política comercial.»

O texto procura, no espaço disponível restante, concretizar em que é que consistiria uma política de comércio internacional universalista e justa, enumerando propostas relativamente à política aduaneira, à harmonização regulatória e aos mecanismos de resolução de litígios. Em relação a este último assunto escrevo:

«Por fim, em todos os acordos devem ser rejeitados os mecanismos de resolução de litígios (ISDS e semelhantes) que estabelecem um sistema de justiça paralelo ao serviço das empresas multinacionais contra os Estados, com graves problemas de falta de transparência, inaceitáveis conflitos de interesses e gravíssimos prejuízos para a legislação ambiental, laboral, de defesa dos direitos humanos, entre outras.

Os Estados deveriam antes empenhar-se na concretização das propostas do Conselho de Direitos Humanos da ONU relativamente ao estabelecimento de um Acordo Vinculativo sobre empresas transnacionais e cumprimento dos direitos humanos.»

Concluo com o apelo à construção de um mundo mundo mais solidário, mais consciente relativamente aos impactos ambientais e muito mais democrático. O leitor pode contribuir para esse objectivo assinando a petição europeia contra o ISDS.


Texto também publicado no Espaço Ágora.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

O estado social é socialista, mas os países nórdicos não


Já vi esta discussão (e esta contradição) tantas vezes....




Post também publicado no Espaço Ágora

terça-feira, 25 de junho de 2019

Estamos a pagar para destruir a Natureza

O património natural tem um valor instrumental estimável (cuja destruição causa danos materiais e humanos quantificáveis) e um valor intrínseco inestimável (quanto é que a extinção dos Koalas vai custar? O impacto na actividade económica pode ser reduzido, mas isso não quer dizer que não seja uma perda relevante...).

O debate racional sobre os impactos ambientais da actividade económica deveria encontrar-se entre dois extremos. Um extremo daria um valor infinito ao valor intrínseco e consideraria qualquer impacto ambiental da actividade económica inaceitável - seria voltar para as cavernas, por assim dizer. O outro extremo daria um valor nulo ao valor intrínseco e consideraria que apenas nos importa maximizar o lucro no longo prazo, considerando aceitável toda a transacção económica que produzisse uma mais valia superior ao dano ambiental na componente "instrumental". Seria só ver cifrões à frente, e só querer saber do consumo (no longo prazo). As posições não extremistas mas racionais estariam algures entre estes dois extremos.

Mas não é assim que nós nos comportamos. Nós não estamos entre estes extremos. Nós estamos a provocar muito mais destruição ambiental do que aquela que provocaríamos se quiséssemos maximizar o consumo no longo prazo. Ou significa que somos colectivamente míopes, ou significa que consideramos o valor intrínseco da natureza como sendo negativo(!), ou seja estamos dispostos a pagar (em consumo futuro) para destruir a natureza. Nós estamos a destruir mais a natureza que aquilo que faríamos se só víssemos cifrões à frente.

Isto parece um absurdo. É evidente que ninguém quer pagar do seu bolso para provocar destruição ambiental. No entanto, a nossa falta de coordenação tem esse efeito.

Face a esta loucura colectiva, o que podemos fazer do ponto de vista colectivo? Podem existir três tipos de intervenções:

a) Investimento público
O estado pode investir em transportes públicos; aumentar o financiamento para a investigação em formas de produção de energia com menor impacto ambiental; quiçá subsidiar a captura de carbono ou formas de produção de energia com menor impacto ambiental ou até tomar em mãos essa actividade como o faria num contexto de "guerra total" que pode não parecer completamente despropositado face à dimensão do desafio que temos pela frente

b) Restrições e proibições
O estado pode simplesmente impedir consumos que ultrapassem determinados limites ou actividades económicas que tenham um determinado impacto.

c) Política fiscal
O estado pode criar uma fiscalidade mais justa, fazendo todas as actividades com maior impacto ambiental "indemnizar" toda a sociedade que sofre seus efeitos.


Quais são os problemas que cada uma destas soluções apresenta?


a) O investimento público exige financiamento, e isso implica um aumento da carga fiscal. Quem acredita que a actual carga fiscal é excessiva deve recear esta solução.
Claro que o aumento da eficiência, o combate ao desperdício, etc. poderiam em tese compatibilizar esta medida com uma carga fiscal constante, mas - como é possível ter esse aumento de eficiência e combate ao desperdício isoladamente - o impacto desta medida é sempre o de aumentar a carga fiscal face a um cenário onde não seja aplicada com tudo o resto igual.
Além disso, esta pode ser uma forma rápida de reagir ao problema, mas pode vir associada a algumas ineficiências. Por exemplo, ao tornar mais barata a energia renovável desencoraja-se a eficiência energética. Como mesmo a energia renovável também tem um impacto ambiental (entre 10 a 50 vezes menor que a dos combustíveis fósseis) isto pode atenuar a redução das emissões inicialmente esperada.

b) As restrições e proibições podem, consoante a sua aplicação concreta, restringir de forma excessiva a liberdade individual. Por outro lado, em muitas circunstâncias vão resultar numa diminuição da receita fiscal (que terá depois de ser compensada agravando a taxação noutros domínios).

c) A política fiscal é a mais impopular destas propostas, mas isso deve-se principalmente à  falta de reflexão sobre as suas implicações.
Quem considerar que o impacto redistributivo desta proposta é perverso, na medida em que transfere riqueza e rendimento acrescido das classes mais abastadas (com um consumo que envolve mais emissões) para as classes mais fragilizadas terá essa convicção como razão para se opor a esta solução. Quem considerar que este impacto redistributivo é desejável, não.
Ao contrário das restantes propostas, esta não implica um aumento da carga fiscal, pois não corresponde a nenhum aumento da despesa pública.
O principal defeito desta proposta é o tempo que demora até funcionar em pleno. Ela pode ser insuficiente para resolver os problemas com que nos deparamos dada a janela temporal apertada que temos pela frente, e é tão mais insuficiente quanto mais adiamos uma resposta colectiva adequada.


Devemos optar por soluções do tipo a), b) ou c)?

Para mim a resposta é clara: a), b) e c). E para ontem. Nenhum dos problemas de qualquer das propostas justificam que queiramos sofrer danos humanos e materiais que ultrapassam largamente os da segunda guerra mundial (se não por ano, certamente no total acumulado).

Cada dia que adiamos estas respostas, estamos a pagar para destruir o património ambiental colectivo.

O que motivou a escrita deste texto foi ter-me deparado com estimativa mais recente de quanto estamos a pagar. De acordo com o FMI, a Humanidade está a pagar cerca de 6% do PIB mundial todos os anos para benefício da indústria fóssil e prejuízo colectivo (que não contabiliza nada de inestimável).
Em Portugal são cerca de 12 mil milhões de euros todos os anos. Sim, estamos a pagar cerca de 10 pontes Vasco da Gama para garantir que temos mais incêndios e menos biodiversidade. É tão estúpido quanto isso. 

quarta-feira, 19 de junho de 2019

As famílias irlandesas são mais pobres que a média europeia e até que as italianas.

A Irlanda é dada invariavelmente como exemplo dos benefícios do neoliberalismo, no sentido de ter um Estado com pequeno peso na economia (maior que Roménia e Bulgária ainda assim). O tigre celta tem tido taxas de crescimento acima da média, tendo agora dos PIBs/capita mais altos da Europa.
O PIB nunca foi suposto ser um indicador de bem-estar, mas tem uma correlação com este. Tem obviamente vários problemas; o principal é incluir os lucros que empresas estrangeiras declaram num país, mas que os locais não os chegam a ver. Ora, o Eurostat tem um indicador que tenta medir explicitamente o bem-estar material das famílias, chamado Despesa de Consumo Individual per capita. Nele "inclui-se, além das despesas de consumo final das famílias, as transferências sociais em espécie das Administrações Públicas para as famílias,de que são exemplo as comparticipações públicas no preço de medicamentos e outros produtos farmacêuticos", sendo "um indicador mais apropriado para refletir o bem-estar das famílias".

Os dados do DCI de 2018 saíram hoje, e repetem o mesmo de todos os anos: o PIB per capita irlandês (mesmo em PPS) é de longe o que mais engana sobre a qualidade de vida dos irlandeses. Comparando cada indicador com a média europeia, o PIB irlandês diz que eles estão 87% acima da média, quando o bem-estar está 6% abaixo da média. O PIB inflaciona para o dobro, o real proveito económico dos irlandeses. No caso português, por exemplo, o PIB até dá a ideia de sermos mais pobres do que somos, descontando 7% desse bem-estar.
Comparando a Irlanda com outros países, vemos que as famílias irlandesas continuam abaixo das italianas (um país que definha economicamente há duas décadas), e não muito longe das espanholas.

 
Dados do Eurostat, em % da média europeia. O PIB do Luxemburgo também dá uma ideia erradamente alta do bem-estar das famílias, mas o relatório diz que os valores não são de levar a sério (daí o asterisco), por incluir valores de trabalhadores de países vizinhos.