segunda-feira, 10 de abril de 2017

O mistério do terrorismo incolor e inodoro

O terrorismo do daesh e da Al-Qaeda na Europa é tremendamente diferente de vagas terroristas anteriores, nomeadamente as dos anos 70 e 80? Sim e não.

Não, porque é terrorismo: uso da violência contra civis por organizações não estatais para atingir objectivos políticos, por exemplo territoriais. 

Sim, porque tem causado menos vítimas (ver o gráfico acima) e porque usa meios muito diferentes: o IRA e a ETA do século passado plantavam explosivos sofisticados de grande potência em alvos seleccionados e telefonavam a avisar; enquanto os terroristas islamistas do século 21 usam camiões contra multidões e bombistas suicidas em transportes públicos em hora de ponta.

A reacção pública tem no entanto uma tremenda diferença, já visível há dez anos com a Al-Qaeda, mas claramente hegemónica hoje em dia: nos anos 70 e 80, ninguém negava que o IRA pretendia a unificação da Irlanda, a ETA a independência do País Basco, e as Brigadas Vermelhas um Estado comunista; pelo contrário, face ao islamofascismo há uma negação veemente de que pretendam o que dizem pretender. Muitos políticos, comentadores ou cidadãos das redes sociais nos juram que o «Estado Islâmico» não é islâmico, que os seus soldados são falsos muçulmanos, e quando forçados a explicar-nos o que pretende o daesh, tergiversam ou dizem-nos que são meros «delinquentes», «animais», «bestas», e que apenas pretendem matar por matar, aterrorizar por aterrorizar.

Não tenho qualquer problema em chamar criminosos, vermes e outros termos afins aos energúmenos do daesh. Até alivia a raiva (temporariamente). Mas o problema de fundo permanece: o que quer o daesh? E a pergunta não é nada fútil, porque só compreendendo os nossos inimigos os podemos derrotar (compreender, sublinhe-se para evitar equívocos, não é aceitar e muito menos desculpar). Ao reduzir o daesh a um mero grupo de criminosos que praticam a violência pela violência, o que se está a fazer é desumanizar o inimigo (natural), mas também negar-lhe razões e motivações próprias (irrealista). Mas só compreendendo o que motiva quem adere ao daesh poderemos conseguir que deixem de colaborar com essa organização e cometer atentados. A recusa de pensar, que já vai em pedidos de «blackout informativo», não conduz a nada de bom. A pior maneira de lidar com um problema é negar que existe.

Sejamos rigorosos: em 2015-16 morreram mais pessoas por ataques terroristas na Europa ocidental do que em qualquer biénio desde 1991-92. Portanto, a tranquilidade a que nos habituáramos diminuiu (até ver). Os ataques são reivindicados por uma organização que dá instruções via internet (os «lobos solitários» têm uma boa parte de mito), e que prosseguiu, no Iraque e na Síria, uma estratégia de conquista territorial bastante clássica. Os terroristas actuais são quase todos do sexo masculino, entre os 20 e os 45 anos, e islamofascistas (as excepções foram etnonacionalistas como Breivik ou alguns nazis). Presumivelmente, os ataques servem fins de propaganda num contexto em que o daesh está a perder território e cada vez consegue menos recrutas. Não se deve fazer nada e esperar que o daesh desapareça na irrelevância? Foi o que fizemos com a Al-Qaeda, e não resultou: seguiu-se o daesh.

A alternativa é combater ideologicamente o fundamentalismo islâmico aqui, agora e durante uns bons anos. Explicando que a religião não pode ser o centro da definição das políticas, nem da estruturação da cidadania. E por outro lado que o Islão, quando vivido pacificamente, merece ser tratado como as outras religiões: com os mesmos direitos e a mesma não imunidade à crítica. Mas para fazer isso, registe-se, há que começar por admitir que o terrorismo actual não é inodoro nem incolor.

6 comentários :

Jaime Santos disse...

O aparecimento do Daesh deve mais à invasão do Iraque e à irresponsabilidade com que se interveio na Líbia ou na Síria do que à ausência de uma qualquer guerra ideológica à Al-Qaeda. Deve esperar-se que os muçulmanos condenem o terrorismo islâmico? Apenas e tão só na mesma medida em que se espere que um homem branco condene o terrorismo nazi. Claro que qualquer pessoa decente, independentemente do credo ou género, rejeitará um método de ação que visa matar inocentes de forma indiscriminada. E isso mesmo quando aquilo que é reclamado seja considerado justo e/ou razoável, o que não é certamente o caso de nenhuma das ideologias citadas acima. O que é preciso, isso sim, é outra coisa, a saber, a colaboração ativa dos muçulmanos e das suas organizações no combate à radicalização de jovens, pelo menos nos países ocidentais. Mas para isso é preciso que se criem as condições para que esses jovens sintam orgulho em serem nacionais dos países onde nasceram. Na generalidade dos casos de terroristas islâmicos que atuaram em países ocidentais, verifica-se que eles são de facto nacionais desses estados ou de outros limítrofes e que se trata de pessoas que começaram a vida na pequena criminalidade. Passarem de 'lumpen' a soldados do Profeta é seguramente uma forma de eles encontrarem um orgulho que nunca experimentaram. A solução é obviamente conceder-lhes dignidade sem que tenham que abraçar causas sangrentas...

NG disse...

"Explicando que a religião não pode ser o centro da definição das políticas, nem da estruturação da cidadania"

Colocar o islão fundamentalista ao nível de uma religião como as outras é a primeira vitória do Daesh. São seus aliados os que o defendem.

Ricardo Alves disse...

Tem a certeza de que leu tudo?

«A alternativa é combater ideologicamente o fundamentalismo islâmico aqui, agora e durante uns bons anos. Explicando que a religião não pode ser o centro da definição das políticas, nem da estruturação da cidadania.»

Senhor Animalesco disse...

Atingir pessoas desarmadas na rua que vão a caminho do trabalho ou de casa, com bombas e camiões, é um ato covarde mas lógico como forma de atacar uma democracia. Este tipo de terrorismo não teria impacto nenhum contra um regime totalitário. Mas contra uma democracia tem porque os inocentes que andam na rua preocupados com a sua vida são o eleitorado (pelo menos os homens e as mulheres adultas) que nomeia os seus governos e chefes-de-estado. Esses mesmos governos e chefes-de-estado que tomam posições e ações sobre questões e problemas internacionais, muitas vezes com impactos diretos e indiretos nas vidas desses terroristas (possivelmente antes de o serem).

O terrorista vê na pessoa da rua o eleitor que é culpado de nomear o governante do seu país e que põe em causa as suas pretensões. E vê com esperança a oportunidade de causar o medo e a alteração de regime nesse país, para que seja mais conforme os seus ideais. Algumas vezes até têm conseguido isso.

É preciso ver que estes terroristas pertencem a culturas que não partilham de muitos dos valores a que chamamos universais, como os que estão na carta dos direitos do Homem. Muitos destes terroristas têm uma ideia muito diferente da nossa sobre os direitos e deveres dos homens e das mulheres. Se os valores deles são postos em causa é de esperar que reajam. São uma minoria, mas reagem e conseguem levar gente atrás.

O problema disto tudo é que de todos os lados não se soube lidar com diferenças culturais que são fraturantes. A globalização, os meios tecnológicos modernos e o acesso cada vez mais aberto à informação e à crítica, pressiona muitas culturas e comunidades pondo em causa poderes instalados, costumes herdados e a sua legitimidade.

Nós aqui já temos o cabo dos trabalhos a ajustar-nos à competição de um mercado globalizado e aberto, e com muito pouca proteção dos nossos trabalhadores e do que é nacional, mas pelo menos a carta dos direitos humanos não nos é estranha e partilhamos da maior parte dos valores mais estruturantes da sociedade – não precisamos de ser “evangelizados”. Quando cá veio a Troika fazer imensas exigências de austeridade e de ajuste da economia foi o que foi em termos de reação do povo, mas isto são detalhes! Nada nos foi pedido fazermos que pusesse verdadeiramente em causa o nosso estilo de vida!

O que se passa em países do médio oriente e de África é bem diferente! O que o mundo lhes pede (e particularmente o que os blocos de potências lhes pedem) é que mudem radicalmente de cultura, e aos seus governantes, que aprendam a partilhar e mesmo a renunciar ao poder com que nasceram “por direito”.

Agora que o caldo já está bastante entornado o que há a fazer é encontrar soluções consensuais de resolução para todos estes problemas que vão surgindo e por cá, na Europa, investir em inteligência, informação, serviços de migração, clarificação de direitos e deveres de imigrantes, sua integração, e claro, na segurança de todos.

A Europa deve manter-se unida em torno dos valores comuns. A Europa tem de ter uma posição única, comum e inequívoca em matéria de relações internacionais e tem de melhorar a política e a gestão comum das suas fronteiras. Nós os Europeus somos livres, somos democratas (tirando algumas minorias, algumas delas encapotadas), separamos poderes, somos tolerantes, e somos signatários da carta dos direitos humanos.

Miguel Madeira disse...

"Atingir pessoas desarmadas na rua que vão a caminho do trabalho ou de casa, com bombas e camiões, é um ato covarde mas lógico como forma de atacar uma democracia."

Nos regimes autoritários e semi-autoritários nos países islâmicos também há atentados desses. Nisto acho conveniente evitarmos a atitude "it is about us", como se "o Ocidente" fosse um alvo especial do terrorismo islamita (e não apenas um de muitos alvos, e estatisticamente nem parece ser dos mais importantes)

Senhor Animalesco disse...

É verdade Miguel Madeira. Mas parece que nos países autoritários e semi-autoritários (muitos deles "repúblicas" islâmicas), há um padrão de atentados que não é tão indiscriminado como aqui nas democracias do ocidente:
Nas democracias do ocidente é uma questão de oportunidade e fazer algo que cause mais terror, vítimas e notícias.
Nos países autocráticos há muitos atentados que são feitos especificamente contra alvos e civis de fações opostas: xiitas contra sunitas, sunitas contra xiitas, apoiantes do estado islâmico ou de outros grupos contra fações/populações sob controlo do governo central, etc.

Mas não é lógico matar civis para castigar um governo se esses civis nem sequer apoiam o dito governo e nem têm palavra ou qualquer poder para o alterar.