terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Declaração de voto

O referendo de 11 de Fevereiro de 2007 será sobre uma alteração no código penal. Trata-se portanto de uma questão exclusivamente legislativa e política. Não se trata de determinar o início da vida, nem de retirar a governos futuros a prerrogativa de decidir que actos médicos serão pagos pelo SNS. Resumidamente, eis no que fundamento a minha posição...
  1. A vida não começa com a fecundação: transmite-se. Um espermatozóide e um óvulo separados são ambos células vivas. Um espermatozóide que fecunda um óvulo origina um ou mais seres humanos individuais, que terão a mesma informação genética (é o caso dos gémeos univitelinos). A fecundação dura uma vintena de horas e a nidação (implantação no útero) demora seis a oito dias. Considero importante, pessoalmente, que o crescimento se acelere pela 12ª semana, mas parece-me mais relevante que só pela 24ª semana a taxa de sobrevivência do prematuro (viabilidade) se aproxime dos 50%, e que nesse momento já haja indícios de controlo do próprio corpo pelo feto (e portanto actividade cerebral consequente). Mas as duas únicas fronteiras biologicamente claras, ao longo das quarenta semanas da gravidez, são mesmo a fecundação e o nascimento: a origem de um indivíduo e a sua separação física da progenitora.
  2. A maternidade é um direito mas não um dever. Eticamente, não consigo valorar um aborto no primeiro mês de forma muito diferente da contracepção de emergência, e um aborto no oitavo mês de forma substancialmente diferente de um infanticídio. Entre as fronteiras biológicas indicadas mais acima (e que têm consequências éticas), parece-me razoável intercalar o momento em que há viabilidade e actividade cerebral - porque a partir daí temos um ser capaz de sentir dor e de que a sociedade teoricamente poderia ocupar-se (uma situação hipotética, com enormes dificuldades práticas...). Mas a liberdade da mãe é também um valor. Não é um descuido, por muito irresponsável que seja, que deve obrigar uma mulher a completar os nove meses de uma gravidez, com tudo o que isso significa de cuidados, privações e investimento emocional. No primeiro trimestre, existe um equilíbrio entre os valores da liberdade da mulher e da vida do embrião/feto, sobre o qual cada mulher deve poder seguir a sua consciência. No segundo trimestre, esse equilíbrio desloca-se a favor do feto, embora as malformações sejam excepções a considerar. No terceiro trimestre, parece-me inaceitável que se aborte.
  3. A vida é um contínuo, que o código penal discretiza. E portanto há contradições dos dois lados: o «não» só seria perfeitamente coerente se defendesse que o abortamento de qualquer óvulo fecundado fosse tratado como um homicídio. Em Portugal, a «pílula do dia seguinte» (que não se sabe se actua antes, durante ou depois da fecundação...) está totalmente despenalizada e é usada abundantemente (foram vendidas 230 mil em 2005), sem que ninguém acuse as utilizadoras de «homicídio» (o que evidencia que a sociedade considera que não é de facto de «homicídio» que se trata). No Código Penal actual, o «crime de aborto» tem a mesma pena no segundo e no oitavo mês, o que é absurdo e só se compreende porque o código penal reduz a prazos «intervalados» o que é contínuo. Se a IVG for despenalizada até às 10 semanas, a maioria das IVG´s será, desejavelmente, realizada nas primeiras seis a oito semanas. Se uma IVG é uma boa ou má opção, só compete a cada mulher decidir, porque só ela pode garantir que a gravidez irá até ao fim. A mim, cabe-me votar no dia 11 de Fevereiro para que possam decidir sabendo que não serão obrigadas à clandestinidade, e cientes de que não serão investigadas ou levadas a tribunal. Evidentemente, votarei «sim» no dia 11 de Fevereiro.

15 comentários :

Anónimo disse...

Excelente texto! Conseguiste condensar e clarificar uma posição equilibrada em todo o pseudo-debate que se têm assistido.

Assino por baixo.

Milo Manara disse...

Ricardo,

Para que não haja dúvidas, também voto sim, por estas e outras razões que não vou explicar para não estar a escrever um testamento num comentário.

No entanto, queria fazer uma pequena correcção ao teu texto. Não se trata aqui de apenas alterar o Código Penal, e ainda bem, porque se fosse só isso, se se tratasse só de descriminalização, seria pior a emenda que o soneto (digo eu).

O que muda com o Sim é que passam a existir estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a fazer a IVG.

Se fosse só a descriminalização, como defende uma deputada do PP e o Freitas do Amaral, por exemplo, continuaria a não ser permitido fazê-lo em estabelecimentos de saúde, mas o tipo de crime deixaria de estar previsto no Codigo Penal. Ou seja, facilitava e legitimava o aborto de vão de escada, sem abrir as portas dos estabelecimentos de saúde para o efeito.

Ricardo Alves disse...

Milo Manara,
obrigado pelo esclarecimento.

Ludwig Krippahl disse...

A vida é contínua, mas há uma descontinuidade na sua pertença. A vida dos meus espermatozoides é minha, e posso fazer com eses o que eu quiser. A vida dos meus filhos não é minha. Porque os fiz de livre vontade tenho a responsabilidade de proteger essa vida. Mais importante, porque essa vida não é minha não tenho o direito de a matar, nem sequer de ser eu a decidir o valor que essa vida teve, tem, e terá.

Em organismos como nós é fácil ver quando começa o período da vida que corresponde a cada organismo, e o mais justo é que cada um decida por si o valor da sua vida.

Anónimo disse...

Mais importante, porque essa vida não é minha não tenho o direito de a matar

Portanto a pílula do dia seguinte devia ser proíbida? E no caso do problemas na implantação da parede do útero devemos salvar a vida? E no caso de gémeos verdadeiros que se juntam de novo para formar um único ser teremos que separá-los novamente?

Ludwig Krippahl disse...

Eu tenho o direito de proteger a minha vida. Em alguns casos isso pode permitir que mate outros. Mas não tenho o direito de matar outros só porque me apetece.

O caso da pílula do dia seguinte é mais complexo, mas vou ver se meto um post acerca disso no meu blog.

O dos gémeos é simples. Pela sua imaturidade na altura da ocorrência não lhes pode ser imputada qualquer responsabilidade legal pelo ocorrido, por isso não é de punir seja o que for. Quanto à decisão de os separar, depende da situação, mas é uma questão médica e não legal.

no name disse...

mas, ludwig, se acreditas mesmo nisso, então tens necessáriamente que defender que a pena de aborto seja equivalente à pena de homicídio; e tens que achar a lei actual errada pois, por exemplo, no caso de violação, "condena à morte" um filho pelo crime de um pai. como imagino que não defendas estas posições, então estás na realidade a tentar ter uma atitude "razoável" e não uma atitude "fundamentalista" nesta questão. mas a partir do momento que tomas a atitude "razoável" estás no caminho de concordar com o post: parece-me que, do ponto de vista científico, apenas devemos dar estauto jurídico de cidadão a alguma coisa que tenha actividade cerebral superior. e é precisamente isso que defende o post!

Ricardo Alves disse...

Ludwig,
e no caso de aborto por perigo de vida para a mãe, porque dás menos valor à vida do feto?

Anónimo disse...

Mas não tenho o direito de matar outros só porque me apetece.

O problema é a alternativa.

O dos gémeos é simples. Pela sua imaturidade na altura da ocorrência não lhes pode ser imputada qualquer responsabilidade legal pelo ocorrido, por isso não é de punir seja o que for. Quanto à decisão de os separar, depende da situação, mas é uma questão médica e não legal.

Não percebi bem. Mas se e fosse possível em termos médicos de verificar e corrigir? Do ponto de vista legal tinhamos a obrigação (tal como salvar um bebé de morrer com uma doença curável) de os separar?



então tens necessáriamente que defender que a pena de aborto seja equivalente à pena de homicídio

Queres dizer ser julgada por homicidio? A pena podia ser diferente. Podiam entrar sofrimento da vítima e outras variáveis que mudem a pena.


parece-me que, do ponto de vista científico, apenas devemos dar estatuto jurídico de cidadão a alguma coisa que tenha actividade cerebral superior. e é precisamente isso que defende o post!

Dou-te um exemplo para mostrar que as coisas nunca são assim tão simples. Um tipo dá um tiro numa mulher grávida e, morre apenas o feto. Se o feto tiver 19 semanas é tentativa de homicidio (da mulher), se tiver 21 semanas (assumindo que a actividade superior apareça às 20 semanas) é homicidio (do feto) mais tentativa de homicidio da mulher. As penas podem ser bastante diferentes mas instintivamente não deveriam ser.

Milo Manara disse...

Quanta,

Na legislação portuguesa, quem de um tiro a uma mulher grávida, ainda que de 39 semanas, comete 2 crimes. O de tentativa de homocidio da mulher (que deverá, na aplicação da pena aplicável, ter em consideração, como agravante, a gravidez da mulher)e o crime de aborto, que continuará a existir, ainda que ganhe o sim, embora o artigo respectivo, nesse caso, vá ter de ser alterado.

Não há homicidio de fetos, porque não existem juridicamente. A personalidade juridica começa a partir do momento do nascimento com vida.

Isto leva a outra consideração. O facto dos defensores do Não utilizarem a palavra aborto não é jogo sujo, nem manipulação da consciência das pessoas. Se o crime no Código Penal é denominado "aborto" e os defensores do Não defendem a continuação da Lei como está, é lógico que utilizem a expressão que a lei prevê para o efeito.

Ludwig Krippahl disse...

Ricardo,

A pena não é função exclusivamente do valor da vida. Se eu te matar, a pena será muito diferente conforme a situação, que pode ir dos 25 anos por homicidio qualificado a nada se for em defesa pessoal ou de outrem. Vê os artigos 32, 33, e 34 do nosso código penal, por exemplo.

Milo Manara,

A noção de personalidade jurídica surge no código civil, e prende-se com direitos como privacidade, imagem, etc. Não há personalidade neste sentido no código penal. No código penal o crime de aborto está no segundo capítulo do Título "Dos crimes contra as pessoas".

Já agora, outros crimes que resultam em morte não são designados de homicidio. Por exemplo o infanticidio (136º) e a exposição e abandono (138º)

Quanta,

O caso dos gémeos é dificil de perceber. Separaram-se e juntaram-se de novo? Sem detalhes não consigo sequer tentar responder...

O problema de dar um tiro na grávida deriva só da tentativa de fazer do estatuto de pessoa uma coisa que se ganha com a idade. Por isso não fazer sentido surgem necessariamente muitos absurdos dessa premissa.

Milo Manara disse...

Ludwig,

Não é verdade. O conceito vem definido no Codigo Civil, mas aplica-se subsidiarimante em todos os campos do direito.

No caso do aborto, o ofendido é a mãe, sem este for feito sem o seu consentimento, ou apenas o Estado, se o aborto for com o consentimento da mae.

No entanto, o estado não age em representação do feto, como no caso dos menores, mas apenas da ordem e da moral pública. Por a maoria dos magistrados do MP considerar que a legislação, neste caso, esta desenquadrada da consciencia colectiva da comunidade, quase nunca acusam mulheres que abortam. Se representassem o feto, teriam de o fazer...

Quanto à designação, até estava a rebater uma queixa de alguns defensores do Sim. Quis dizer que chamar-me aborto ao acto de interromper a gravidez não é favorecer o Não, é chamar as coisas pelos nomes.

Ludwig Krippahl disse...

Milo Manara,

Acho estranho que o aborto seja considerado um crime contra o Estado, pois esses estão noutro título, não no título dos crimes contra a pessoa. Além disso o suicidio não é um crime, e seria pela mesma lógica um crime contra o estado.

Pode-me dar uma referência a quem faz essa interpretação do código penal?

Quanto à personalidade jurídica, penso que ninguém (nem no sim nem no não) diria que matar um feto um dia antes de nascer é um crime contra o estado e não contra essa pessoa que foi morta. Mas a lei é como a bíblia, dá para interpretar de muitas maneiras...

Milo Manara disse...

Eu não disse que era contra o Estado, mas apenas que era apenas o Estado a ter legitimidade para desencadear a acção penal. O pai do feto, por exemplo, não a tem. Se fosse uma criança nascida com vida já a teria. É essa a grande diferença.

O aborto está inserido nos "crimes contra as pessoas", mas a pessoa sobre o qual é cometido o crime é a mãe. O crime de aborto. Não há, repito, homicidios de fetos.

Mas reconheço que isto é uma tecnicidade juridica de pouco interesse. Para lhe dar um pouco de razão, existe doutrina que reconhece personalidade jurídica ao feto, embora a lei expressamente diga o contrário...

dorean paxorales disse...

Ricardo disse: "Mas as duas únicas fronteiras biologicamente claras (...) são mesmo a fecundação e o nascimento: a origem de um indivíduo e a sua separação física da progenitora."

Antes de mais, se puder votar, é SIM.

Não será relevante para a construção do argumento mas há mais fronteiras biologicamente claras: há quem considere a gastrulação, por exemplo, o momento mais importante na embriogénese, pois é nessa altura (nos humanos, 7-9 dias após fertilização) pois é o processo do qual pode resultar um Brad Pitt (?) ou um Quasimodo, ainda que geneticamente iguais.

Nota: quanto à 'individualidade' toma-se em geral a genética, isto é, a unicidade é definida quando os cromossomas paternal e maternal recombinam (meiose). Isto, algumas horas após a fertilização.