«A Bolívia provavelmente está perdida com a eleição de Evo Morales para a Presidência da República, mas o simples fato de um índio, representante dos plantadores de coca e socialista à antiga ter sido escolhido para a primeira magistratura do país andino é um alvissareiro sinal de que a democracia está funcionando, ainda que com muitos problemas, na América Latina. Seria precipitado afirmar que a região já não corre risco de retrocesso institucional, mas é o caso de lembrar que, 10 ou 15 anos atrás, seria impensável até mesmo a hipótese de sagrar-se presidente alguém que encarnasse tão visceralmente os piores temores de Washington e das elites econômicas locais.
Embora me regozije com o que aparenta ser um avanço em termos de consolidação democrática --uma real alternância de poder, daquelas que contrariam interesses profundamente enraizados--, não invejo a situação dos bolivianos. Morales tem uma difícil escolha pela frente. Ou tentará fazer o que prometeu e quase com certeza levará seu país à ruína financeira, ou rapidamente esquecerá seus compromissos de campanha, o que poderá, no pior cenário, custar-lhe o cargo.
Devo agora confessar para o leitor que padeço de simpatias esquerdistas. Gostaria de ver um "governo popular" como promete ser o de Morales dar certo. A chance de que isso ocorra, entretanto, é remotíssima. As idéias econômicas defendidas pelo MAS (Movimento ao Socialismo), o partido de Morales, podem ser traduzidas na bandeira de ordem da nacionalização do setor petrolífero. Não tenho alergia a estatizações. Vários países conseguem explorar muito bem o seu subsolo através de companhias públicas. No caso boliviano, entretanto, será muito difícil, dado que a capacidade de investimento do Estado é mínima. E, se o capital externo já andava temeroso de entrar no conturbado e instável país andino, não será agora com a eleição de um líder que promete nacionalizações que irá fazê-lo.
(...)
O continente tem-se mostrado impiedoso para com os dirigentes que frustram as esperanças dos que o elegeram. Nos últimos anos, pelo menos cinco presidentes eleitos foram depostos em manifestações de rua: Lucio Gutiérrez (2005) e Jamil Mahuad (2000), do Equador, Sánchez de Lozada (2003), da Bolívia, Fernando de la Rúa (2001), da Argentina, e Alberto Fujimori (2000), do Peru. Pode-se acrescentar a essa lista os casos do paraguaio Raul Cubas (1999), que era vice, e do também boliviano Carlos Mesa (2005), que substituiu Sánchez de Lozada e acabou renunciando após uma onda protestos liderada por ninguém menos do que Evo Morales.
Essa forma de deposição popular não deixa de ser um avanço quando se considera que, poucas décadas atrás, não eram as populações mas os tanques dos militares que punham os presidentes para correr. Ainda assim, é preocupante a freqüência com que mandatos legitimamente conquistados deixam de ser concluídos. Parece oportuno assim criar saídas institucionais para abreviar mandatos, caso o eleitorado esteja profundamente descontente com seu governo. O modo mais óbvio de contornar esse tipo de crise é a adoção do parlamentarismo.
(...)»
(Hélio Schwartsman, na Folha de São Paulo de 29/12/2005; ler na íntegra.)
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