quarta-feira, 8 de junho de 2005

Continuando o balanço da laicidade em França

O Rui Fernandes do blogue Leileteia comentou criticamente o meu artigo sobre a laicidade em França no seu artigo «O jeito do balanço». Respondo-lhe com todo o gosto e cordialidade, concentrando-me principalmente no que creio serem equívocos da sua parte.
Em primeiro lugar, importa desfazer a ideia (oriunda da propaganda católica mas adoptada por alguma esquerda) de que a laicidade seja anti-religiosa ou uma expressão disfarçada do ateísmo de Estado. Pelo contrário, a laicidade visa justamente criar as condições para que os indivíduos possam decidir ter, ou não ter, a religião que entenderem. Uma dessas condições é justamente a ausência de propaganda religiosa na escola pública, quer através de símbolos permanentes (como os crucifixos nas salas de aula), quer através do ensino da religião. Em Portugal, apenas agora se começa a resolver o primeiro destes problemas, mas a França tem uma tradição já centenária de laicidade escolar.
O véu islâmico, esse «símbolo e arma do integrismo» (na expressão da iraniana Chadortt Djavann) permitia à extrema direita islâmica coagir, na escola que é do Estado, as raparigas que não o usavam a regressarem à sua tradição cultural, e simultaneamente dava-lhe a possibilidade de aí impôr as suas posições políticas, o que se traduzia na recusa da educação sexual e das aulas de ginástica, ou na rejeição do ensino do holocausto e da teoria da evolução (entre outras reivindicações).
O Rui Fernandes acha que sabe que eu penso que a religião é sempre «essencialmente má». Não sabe, mas eu terei o direito de pensá-lo, como os muçulmanos terão o direito de pensar o contrário. O Estado, ao invés, não deve ter qualquer uma destas duas opiniões, e exactamente por isso não defendo que as escolas ensinem o ateísmo, da mesma forma que me oponho a que ensine a religião. A única forma de contratualizarmos um consenso é aceitar que a escola pública estabeleça condições para que cada futuro cidadão (ou cidadã) possa decidir por si próprio em matéria religiosa, após ter frequentado uma escola sexualmente mista, isenta de pressões clericais e em que se ensine a ciência e a razão. O véu dificultava tudo isto ao colocar as alunas muçulmanas sob a tutela opressora da sua «identidade cultural» presumida.
A terminar, faço notar que a extrema direita lepenista se opôs a esta lei, assim como os deputados católicos integristas e os trotsquistas da LCR. É uma conjunção curiosa de forças políticas. Pelo contrário, a maioria dos muçulmanos não apenas aceitaram a lei como a desejaram: eles conhecem bem as posições extremas e as manipulações identitárias dos integristas muçulmanos das pequenas mesquitas de bairro.
Será com certeza cedo para um balanço final desta lei que surgiu para aprofundar a laicidade em França, mas não é verdade que se tenha exponenciado o extremismo islâmico, pelo contrário. E isso deveria fazer reflectir os que tomam os sectores mais conservadores do islão como os verdadeiros representantes de uma população de origem muçulmana que tem o direito de praticar essa religião como entender ou, até, de a abandonar.