O aquecimento global é o tema de grande parte dos meus textos neste blogue (entre os mais recentes é capaz de corresponder a mais de metade), mas também tem sido motivo de debate com os outros autores mais participativos.
Com o Ricardo Alves a nossa discussão a este respeito é muito antiga. Lembro-me em particular do cepticismo em relação às consequências potencialmente catastróficas de uma subida de temperatura. Afinal, não é que possamos considerar "a priori" que um clima 2º superior seja catastrófico e insuportável: basta olhar para a diversidade de climas a que a humanidade se adaptou, e vemos uma amplitude de temperaturas muito superior a essa diferença.
Aquilo que respondi, na altura, é que o problema não está na "nova temperatura", mas sim na rapidez da subida. Ou seja, mesmo sem considerar o verdadeiro risco - o de uma relação de retroacção entre a temperatura e as emissões que fazem com que uma subida de 2º possa ser o início de uma subida muito superior a qual já não poderemos controlar com uma redução das emissões provenientes da actividade humana - uma subida rápida de 2º pode ser catastrófica para os seres humanos. A razão é a seguinte: a adaptação dos seres humanos ao clima de uma determinada região foi lenta e gradual: as imunidades, as infra-estruturas, as actividades económicas, etc. Se o clima muda rapidamente, não são apenas os outros seres vivos a sofrer: doenças novas propagam-se em populações que não estão preparadas, populações lidam com fenómenos meteorológicos para os quais não estão adaptadas, negócios e infra-estruturas são destruídas ou tornam-se obsoletos e desadequados, criando falências, desemprego, discrepâncias entre a oferta e a procura de mão-de-obra que escondem tragédias pessoais e humanas que não são ofuscadas pela quantidade de mortes resultantes dos primeiros problemas mencionados. Reforço que nada disto leva em conta o verdadeiro risco associado ao processo retroactivo que uma subida de 2º pode despoletar.
A razão pela qual reavivo este debate antigo, é o facto de não precisar de fazer este raciocínio no abstracto. Em Portugal temos agora um exemplo concreto.
Vejamos uma coisa: a temperatura ainda não subiu 2º, e temos de lutar para que isso nunca aconteça. Mas já subiu o suficiente para exemplificar aquilo a que me refiro. Há cerca de 20 anos os estudiosos previam que o aquecimento global tornasse a península Ibérica mais quente e seca. Com períodos de chuva mais violentos, mas mais curtos. O novo clima não é necessariamente pior, diferentes climas têm diferentes vantagens e inconvenientes. Mas Portugal estava adaptado a um clima diferente, e por isso optou por explorar o filão florestal. Eu não quero defender as escolhas que colectivamente fizemos em relação ao ordenamento do território: sei pouco sobre o assunto, e do pouco que sei parece-me que foram más escolhas. Mas não teriam sido escolhas tão desastrosas se esta subida das temperaturas não nos fizesse bater todos os recordes de área ardida e número de mortos em incêndios. Isto não foi um problema pontual. Este problema veio para ficar.
Podemos sempre alegar que os custos provocados por estes incêndios, quer em recursos económicos quer em vidas humanas, são apesar de tudo relativamente reduzidos. E face aos sacrifícios que temos de fazer para atenuar o aquecimento global, até são. O problema é que são apenas a ponta do icebergue. E se não virarmos já o leme, vamos ter uma noção mais clara dos custos de uma variação rápida da temperatura. A não linearidade do aumento dos incêndios com o aumento da temperatura mostra como nos é completamente incomportável manter uma mancha florestar com os 2º de subida de temperatura face aos níveis pré-industriais. E este é apenas um dos problemas que as alterações climáticas colocam às actividades económicas em Portugal. Como se vai adaptar a nossa produção agrícola à forma como as chuvas ficam mais esporádicas, irregulares e violentas? Como vamos lidar com a frequência adicional de fenómenos como a
Ophelia? Como vamos reagir à invasão de novas doenças graves para as quais não desenvolvemos imunidades? Que outras consequências vão ter o colapso dos ecossistemas que conhecemos?
Não considerar o Aquecimento Global como um desafio civilizacional que merece a maior prioridade é uma irresponsabilidade tremenda, não apenas para com as gerações seguintes, mas para connosco próprios nos próximos 10-20 anos.
Em relação ao Filipe Moura, ele recentemente
escreveu sobre como o grande problema associado ao aquecimento global é político e não científico. Não vale a pena mostrar como do ponto de vista científico não restam dúvidas sobre a realidade deste fenómeno, porque os obstáculos não são esses, alega. As pessoas sabem que o aquecimento global é uma realidade, mas não estão dispostas a fazer os sacrifícios necessários, e essa é a única questão relevante em causa.
Também vou discordar. A indústria dos combustíveis fósseis gastou milhares de milhões de dólares na criação e financiamento de
think tanks e todo o tipo de peças de propaganda para criar dúvidas na população em geral em relação ao aquecimento global. Este tipo de dúvidas teve influência sobre muitas pessoas, mesmo académicos que respeito como o Prof. Rui Namorado Rosa ou, novamente, o próprio Ricardo Alves há alguns anos atrás. Este esforço de propaganda foca a questão científica fundamental: o aquecimento global é uma realidade ou não, já que o argumento político para não agir mesmo que o aquecimento global seja real parece politicamente tão fraco que nunca mereceu tantos pseudo-documentários, palestras e contra-informação.
É também por isso que na Europa e Japão, onde uma maior proporção da população está consciente da realidade do aquecimento global, têm visto reduções das suas emissões muito mais significativas que nos EUA, onde esta propaganda anti-científica tem muito mais força, e cujo Presidente anunciou o abandono unilateral do Acordo de Paris.
Por essa razão, discordo também do Filipe Moura. Sim, o Aquecimento Global tem uma dimensão política, e é por essa razão que abordo tanto o tema neste blogue político. Mas é importante rebater a propaganda daqueles que estão interessados na inacção e mostrar a ciência climática de forma acessível, rigorosa e convincente, para que a propaganda que tenta escamotear este problema tenha muito menos eficácia.
Por essa razão, vou voltar à programação habitual, ainda mais motivado (e furioso) com o aumento da frequência com que os desastres naturais relacionados com as alterações climáticas se sucedem.