terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Estou mais tranquilo: Bento Domingues vota «não»

Só agora consegui encontrar o texto da homilia de Bento Domingues no jornal Púlpito de Domingo. Bem lido, é uma pérola de escolástica - como só os mais refinados fundamentalistas sabem escrever. Lança uma série de declarações de incompetência e de interrogações que deixa (convenientemente) em suspenso (todos os pontos em que poderia desafiar a ortodoxia estão protegidos por um cauteloso «talvez» ou por um cobarde «creio que...»). Mas, na realidade, Bento Domingues não defende o «sim»: absolve-o. Diz aos católicos que não faz (muito) mal votar «sim». Mas é claro que votará «não». Como refinado fundamentalista que é...
No entanto, há algo em que concordo com o sr. Domingues: «a retórica deve ter limites». O sr. Domingues poderia dar o exemplo a esse respeito. Mas faz o exacto contrário.

Leituras recomendadas (30/1/2007)

  1. «Isto da definição das oito semanas como aquelas em que acaba o período embrionário e inicia-se o período fetal é um artifício. O pulmão só funciona a partir das 28 semanas. A tiróide só segrega hormonas aos quatro meses. O cérebro só amadurece a partir dos cinco meses, aí os neurónios conseguem permitir ao feto o movimento voluntário. Se perguntar às mulheres quando sentem o primeiro pontapé, todas são unânimes em dizer seis meses. Do lado do Não citam a ciência apontando vida desde a fecundação, o coração que bate. Funciona desde as três semanas, mas as válvulas só se formam aos cinco meses e só aí os vasos sanguíneos chegam a toda a parte. Agora, é facto científico que a nova vida inicia-se na fecundação. (...) As dez semanas vão ter muita elasticidade, porque há várias datações. Dez semanas pela última menstruação são 12 para a ovulação e 14 para a datação da ecografia. E como a maioria das interrupções voluntárias da gravidez (IVG) são entre as oito e as 12 semanas, é mais do que suficiente. Trata-se de impedir que quem não pode avançar com a gravidez vá fazê-lo em casa com um troço de couve, ou vá a uma curiosa e haja complicações. Lembro-me que em 1985, quando fazia urgência de ginecologia, tinha pelo menos uma complicação de abortamento por semana! Só eu! Lembro-me de como essas mulheres eram tratadas pelos médicos. Era atroz! Raspagens sem anestesia para as fazer sofrer, a vingar-se, insultos, recusa de direito de visita.» («"A IVG deve ser paga por uma questão de sacrifício"», no Jornal de Notícias.)
  2. «Se o «NÃO» ganhar, a prática do aborto que não se insira na lei já actualmente em vigor (violação, malformação do feto ou perigo para a saúde da mãe) continuará a ser criminalizada e penalizada. Mas, apesar disso continuará a haver abortos em Portugal, já que a penalização, como é sabido, nunca constituiu o menor motivo de dissuasão para as mulheres que pretendam abortar. (...) Em suma, se o «NÃO» ganhar, tudo ficará na mesma em Portugal. Porque foi nesse sentido que as pessoas que terão votado «NÃO» no referendo terão decidido. E terá sido nesse mesmo sentido, aliás, que terão decidido as pessoas que optem por abster-se no referendo.» («E se o «NÃO» ganhar?», no Diário Ateísta.)

Pós e Contas

Tenho estado a ver o «Prós e Contras», no RTP-1.
É bom ver toda a gente de acordo: a) o aborto nunca deixará de existir; b) o aborto em si não é desejável; c) mandar mulheres para a prisão também não se faz.
Falta saber: (i) porque é que o «não» se esqueceu de acabar com a penalização nestes últimos oito anos; (ii) como se diminui o número de abortos clandestinos se o «não» ganhar.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Leituras recomendadas (29/1/2007)

  1. «O caso até parece ter sido criado para ilustrar os argumentos dos defensores do "sim" no próximo referendo: paraplégica desde os 12 anos, há quase três décadas em cadeira de rodas, vinte operações à coluna ao longo da vida, Maria Luísa soube sempre que, devido à escoliose que lhe afastou o útero para o lado esquerdo, se desejasse ser mãe (...) teria de passar seis meses deitada - o que não será simples de aceitar para alguém que, até aos 18 anos, festejou quatro aniversários e quatro Natais em camas de hospitais. (...) No dia 14 de Maio, a pílula que tomava não produziu efeito, provavelmente por ter sido neutralizada pelos seis comprimidos (incluindo antibióticos e anti-inflamatórios) que tomou naquela semana.» («Maria Luísa, paraplégica, 41 anos, teve de ir a Badajoz», no Diário de Notícias.)
  2. «Neste caso, o do aborto, só há dois tipos de resposta: as irracionais e as absurdas. As irracionais são aquelas feitas de frágeis equilíbrios, compromissos, males menores (o aborto é sempre um mal menor e nunca algo de bom). As absurdas são feitas de certezas, coerência lógica. As absurdas dizem ou que (1) o aborto é homicídio premeditado e devia levar 25 anos de prisão [alguns cristianistas americanos, raros] ou (2) o aborto devia ser livre até aos 18 meses [Peter Singer, esse achado do não]. Estas posições são perfeitamente lógicas, mas humanamente absurdas. Por outro lado, toda a posição sensata é ilógica e baseada em andar por uma linha divisória que não existe entre vários males, à procura de um equilíbrio.» («Ilógico ou absurdo», no Rabbit´s blog.)

A única razão para lamentar o meu «sim»

O Bento Domingues também vota «sim».

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Resposta ao pequeno irmão

  1. Concorda com a realização do referendo e a formulação da pergunta?
  2. Preferiria que a despenalização da IVG tivesse sido aprovada no Parlamento, mas compreendo que, na situação política criada pelo referendo de 1998, o referendo possa ser considerado necessário. A pergunta está bem.

  3. Qual a pena que pensa que deveria ser aplicada a mulheres que abortem com 3 meses de gravidez? E 6 meses?
    1. A pena actual parece-me razoável para abortos realizados no terceiro trimestre, ou até para os realizados no segundo trimeste (com as excepções já previstas na lei).

    2. A partir de que período da gravidez deverá a mulher ser punida criminalmente pelo aborto?
      1. Ver a resposta anterior.

      2. Considera que o aborto deverá ser realizado e suportado pelo Serviço Nacional de Saúde?
      3. Sim, embora isso não esteja em causa na pergunta do referendo.

      4. Tem algum tipo de oposição moral à prática do aborto?
      5. Por razões biológicas, nunca farei um aborto. Não tenho nada que interferir com uma mulher que o faça no primeiro trimestre. E parece-me inaceitável que se aborte no terceiro trimestre (ver explicação mais detalhada).

      6. Caso o SIM vença e o referendo não seja vinculativo, aceitaria a realização de um novo referendo nos próximos 10 anos?
      7. O Parlamento até pode fazer um referendo sobre a IVG em cada legislatura... e que alternativa tenho eu senão «aceitar»...

      8. Caso o NÃO vença e o referendo não seja vinculativo, defenderia a aprovação da lei no parlamento?
      9. Sim, mas na próxima legislatura.

      Outra morte por aborto

      • «A história passa-se no final de 2005. Uma adolescente de 14 anos entra no Hospital de Santa Maria com uma overdose de misoprostol, vulgo Citotec, o medicamento para o estômago liberalizado nos últimos cinco ou seis anos como método abortivo auto-induzido que resulta em inúmeras sobredosagens diagnosticadas nas urgências. Ana - chamemos-lhe Ana, é curto e serve - tomou 64 comprimidos. Remetida de um hospital de periferia, chega "já em choque" a Santa Maria, com "alterações vasculares importantes ao nível do tubo digestivo". Em bom português, a Ana está toda rebentada por dentro. A operação não a salva. Ana estava de 20 semanas. Mais dez que aquelas que a pergunta do referendo prevê e mais oito que as 12 previstas na lei em vigor para casos de "risco para saúde física ou psíquica da grávida". Talvez, se Ana tivesse tido a ideia e a coragem de, com ou sem os pais, ir a um hospital às dez semanas de gravidez, um médico compassivo lhe tivesse resolvido "o problema", considerando que a gravidez numa menina de 14 anos pode constituir um grave risco para a saúde. Nunca saberemos.» (Ler o resto no Diário de Notícias.)

      Morrer de aborto

      • «Maria Ester, 32 anos, duas filhas de 14 e 12 anos, morreu em 2000, depois de ter feito um aborto. Provou-se que Maria Palmira, uma curiosa com 68 anos, lhe introduziu uma "pauzinho de videira" no útero para pôr termo à gravidez. Não se provou que a morte de Ester tenha resultado do aborto. O tribunal de Viseu condenou Palmira a 18 meses de prisão com pena suspensa pela prática de aborto clandestino. (...)» (Ler o resto no Diário de Notícias.)

      Leituras recomendadas (25/1/2007)

      1. «Entre 1996 e 2002, cerca de nove mil mulheres portuguesas interromperam a gravidez em clínicas espanholas. Muitas outras, sem capacidade económica para tal, foram obrigadas a recorrer a estabelecimentos clandestinos em Portugal, muitas vezes com risco para a própria vida e sujeitas à perseguição judicial. É esta realidade que urge mudar. (...) Segundo um estudo publicado na Revista Portuguesa de saúde Pública relativamente às estimativas de abortos clandestinos de 1993 a 1997, Portugal apresenta nesse período as mais elevadas taxas da Europa. Por cada mil mulheres em idade fértil (dos 15 aos 44 anos), no nosso país realizaram-se 38,61 abortos, enquanto na Europa a taxa foi de 28. Tendo em conta o número de abortos por 100 nados vivos, em Portugal registaram-se 78,15 abortos clandestinos, enquanto na Europa, em 1993, o número foi de 19,88. Como resolver este problema de saúde pública? Não há outro caminho senão o despenalizar a IVG no primeiro trimestre. Este é um problema de política criminal. Se a lei não é obedecida, pois não corresponde à consciência comunitária, se ela não defende o embrião nem o feto, se é a lei que cria um problema de saúde pública, então há que alterá-la, já que é uma lei meramente simbólica.» («NÃO ao obscurantismo criminalista», no Mais Livre.)
      2. «No anterior referendo votei "Não". De acordo com a minha consciência era o que achava certo. Mudei de opinião. Não em relação àquilo que é para mim o aborto. Não enquadro na minha vida, a possibilidade de eu decidir fazer um aborto. Se, por algum motivo, tivesse de o fazer, seria algo que me feriria profundamente. Como mulher e como crente. Mas o que acho certo (fruto da minha consciência, da minha formação humana e cristã) para mim, não quero impô-lo a outros. (...) O direito à vida é fundamental, mas não a vida a qualquer custo. Não basta dar a vida, é necessário amar, cuidar, proteger. (...) Gostaria de viver num mundo, em que não existisse o aborto. Mas não vivo. E manter a criminalização, não ajuda a tornar isso possível.» («Sobre o referendo de 11 de Fevereiro», no Jardim de Luz.)

      quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

      O cúmulo da incoerência

      O senhor bispo de Viseu da ICAR diz que «interromper a vida, quer dizer, matar a vida às 10, às 20, às 30 semanas ou ao nascer, ou aos 5 ou aos 10 anos, tem a mesma gravidade ética e objectiva». Portanto, o senhor de Viseu deveria achar que aborto e homicídio são um único e o mesmo crime. Mas não, caro leitor, pelo contrário: «não está em causa a penalização da mulher, pois a Igreja não pede, nunca pedirá, que alguém seja penalizado». Então, em que ficamos? O aborto tem a mesma gravidade ética do que o homicídio, mas a mulher não pode ser penalizada?! Se assim é, porque não defendem que os homicidas não sejam penalizados? Qual é a diferença, afinal?
      (O indivíduo também defende a criminalização do suicídio e do uso de embriões para fins terapêuticos. Com fundamentalistas destes, estaríamos bem tramados se tivessem mais poder...)

      O que está em causa

      E, já agora, mude-se também o §2 do artigo 140º: «Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos». Para que não haja mulheres investigadas, mas para que se acabe também com as enfermeiras e auxiliares médicos investigados e presos.

      quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (24/1/2007)

      1. «O Prof. João César das Neves argumenta hoje no DN, num tom invulgarmente equilibrado, que na questão do aborto estão em confronto duas ordens de valores igualmente respeitáveis: de um lado, o direito da mulher a determinar a sua vida e o seu corpo; do outro, o direito à vida do embrião. (...) O confronto de valores ocorrerá eventualmente - se quisermos aceitar a dicotomia proposta, o que é discutível - na consciência de cada mulher que se confronta com a opção entre abortar ou não abortar, e é exclusivamente nesse plano que deve permanecer. O que vamos decidir com o nosso voto é outra coisa, ou seja, se é lícito que uma parte da sociedade imponha à outra a sua ideia sobre que valores devem ter a primazia nessa situação.» («O que vamos votar», no Sim no Referendo.)
      2. «Já se sabe que deveria haver melhor informação, mas não há. Já se sabe que as consultas de planeamento familiar deveriam ser muito incentivadas, mas não são. Já se sabe que devia existir um bom apoio à grávida, mas não existe. Já se sabe que devia haver uma boa política de apoio à família, mas não há. Já se sabe que as respostas sociais para cuidar convenientemente de uma criança até entrar na escola deviam ter sido implementadas, mas não foram. Já se sabe que devia haver pediatras nos Centros de Saúde, mas não há. É claro que SE tudo isto funcionasse muito bem, talvez nem se pusesse esta questão que vamos votar no dia 11. Só que esta utopia estranhamente funciona apenas antes de uma votação destas, depois evapora-se rapidamente.» («Se», no Pópulo.)

      terça-feira, 23 de janeiro de 2007

      Pequena entrevista

      Está no saite da Associação República e Laicidade uma pequena entrevista(mp3) que dei ao programa Vidas Alternativas. O programa é de cerca de 50 minutos, eu falo no segundo quarto de hora.

      Uma pergunta aos do «não»

      Caros senhores do «não» (Ludwig, isto também é contigo),
      afinal, porque é que não defendem que a mulher que aborta seja punida? Qual a diferença entre o embrião e a criança que leva a que invoquem «estados de necessidade desculpante» e outras subtilezas que não usariam para homicídios? Porque encolhem os ombros quando ouvem falar na «pílula do dia seguinte»? Onde está, em suma, a vossa coerência?

      Leituras recomendadas (23/1/2007)

      1. «Mafalda, a sua única posição coerente, repito, é lutar pela criminalização da pílula do dia seguinte. Eu até lhe dou uma ajuda técnica se o quiser fazer: Em primeiro lugar, proponha que a tentativa passe a ser punida sempre. Para isso basta que se acrescente um novo número ao artigo 140.º, um n.º 4, que estabeleça que a tentativa é punível. Assim, apesar de a pena para o crime consumado não exceder três anos, a tentativa passará a ser punida, como acontece, por exemplo, no furto, na burla ou no dano. Na perspectiva da Mafalda, esta é a solução que se impõe, até em nome do argumento simplista de que a propriedade não merece mais protecção do que a vida. Em segundo lugar, modifique a epígrafe que fala em crimes contra a vida intra-uterina por uma epígrafe que fale em crimes contra a vida concebida.» («Ajudar a Mafalda a dar o passo que falta», no Sim no Referendo.)
      2. «O pároco de Almodôvar foi à Igreja da Graça de Padrões celebrar missa e, no final, disse para os presentes votarem não no referendo do aborto. Mas houve uma senhora que lhe respondeu de imediato "EU VOU VOTAR SIM!", ao que o senhor padre lhe disse (com muito bom jeito): "A senhora não devia dizer isso aqui". Ela respondeu de imediato: "AQUI, NA CASA DE DEUS, NÃO POSSO MENTIR. E EU ESTOU A DIZER A VERDADE!" E assim terminou a missa na Graça de Padrões, com uma mulher corajosa a dizer o que pensa.» («Relato de um leitor», no Beja pelo Sim!.)

      segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

      O crime que (quase) ninguém denuncia

      Segundo o Ministério da Justiça, houve 223 pessoas investigadas por crime de aborto desde o último referendo. Se assumirmos que a cada uma delas corresponde um crime de aborto (um óbvio exagero, já que do mesmo crime de aborto resultam geralmente várias pessoas investigadas, entre mulher, enfermeira e, por vezes, mesmo o taxista), temos quase 28 crimes por ano, em oito anos. Como a estimativa mínima do número de abortos realizados em Portugal, por ano, anda pelos 17 mil, resulta que só 1,6 «crimes de aborto» em cada mil são investigados. Estranho. Mesmo muito estranho. Um crime que tantos nos juram ser «gravíssimo» e que ninguém denuncia. Porquê? Será que a esmagadora maioria da sociedade já deixou de considerar o aborto um crime? Ou será, muito simplesmente, que as autoridades não o conseguem investigar? Se a resposta for esta última, voltamos à questão prévia: porque será que nem os mais encarniçados defensores do «não» exigem que se investigue com maior firmeza os «crimes de aborto»?

      A final de contas

      Votar «sim» elimina o aborto clandestino e alivia os tribunais, e votar «não» deixa tudo na mesma.

      Leituras recomendadas (22/1/2007)

      1. «Num não há sempre um sim escondido. Quando negamos qualquer coisa, afirmamos ao mesmo tempo outra que se encontra escondida, por vezes a custo, atrás dessa negação. Partindo deste princípio, quem votar não no próximo dia 11 de Fevereiro estará na realidade a votar sim às seguintes perguntas: Concorda com a prisão da mulher, até três anos, depois de ela já ter passado pela violência física e psíquica de um aborto clandestino? Concorda com que continuem a existir por ano, em Portugal, 18 mil abortos clandestinos e centenas de mulheres com graves complicações pós-abortivas? Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde espanhol legalmente autorizado?» («Os sins do Não», no Sim no Referendo.)

      2. «O cofre que foi encontrado na “clínica” clandestina mostra o que os «nossos impostos» não podem pagar: Carla, 26 anos, deixou 2 fios, 4 pulseiras de criança e um anel; Carminda, 31 anos, três filhos, separada e desempregada, tinha de pagar 92 contos, pagou 45, uma medalha de ouro e ficou a dever o resto; Rita, 36 anos, operária, deixou ficar o anel de noivado e dois cheques; Teresa, 27 anos, cozinheira, com um relacionamento esporádico, pagou 40 contos, um fio, três anéis, uma aliança e um par de brincos; Piedade, 34 anos, empregada de balcão, deixou cinquenta contos e dois anéis; Maria João, 38 anos, cabeleireira, dois filhos, sem relação estável, deixou 70 contos e uma pulseira; Maria Manuela, 35 anos, recepcionista, deixou 15 contos e um cordão de ouro; Sandra, 18 anos, pediram cem contos, deixou quarenta, um fio de ouro, um anel, uma pulseira e ficou a dever trinta contos; Paula, 19 anos, desempregada, seis semanas de gravidez, 45 contos e uma pulseira.» («Com os nossos impostos, não!», no Sim no Referendo.)

      sábado, 20 de janeiro de 2007

      Porque tenciono votar SIM

      No próximo referendo é possível um eleitor de esquerda votar não (tal como um de direita votar sim). Pessoalmente já defendia o sim desde antes do referendo anterior, mas cheguei a ponderar o voto em branco tendo em conta alguns argumentos e factos apresentados pelo Ludwig Krippahl.

      Após alguma reflexão pessoal, alguma procura, alguma análise dos diferentes argumentos cheguei à conclusão que vou votar sim. E vou partilhar duas (entre outras que têm vindo a ser alertadas pelos adeptos do sim) das minha razões fundamentais com os leitores:


      a) Passo a citar parcialmente um artigo do Blasfémias, escrito pelo João Miranda, que traduz algo que acredito mas que nunca verbalizei de forma tão adequada:

      «Portanto, vamos supor que o feto é uma pessoa, isto é, que se entende que tem os mesmos direitos que um recém nascido. Não se segue imediatamente que deve haver uma lei que penaliza o aborto. Uma lei para ser lei para além de ser justa tem que respeitar outros critérios. Um dos critérios mais importantes é que não pode ser uma farsa. E para não ser uma farsa tem que ser aplicável.


      O problema da actual lei é que ela é uma farsa por diversos motivos:

      1. É desrespeitada pela generalidade da população que conta, isto é, se uma mulher precisar de fazer um aborto a sua última preocupação é a lei. A lei dificulta a logística, mas não é suficientemente eficaz para impedir o aborto.

      2. Existe uma quase unanimidade de que a lei não deve ser cumprida. Nem sequer os defensores do NÃO têm coragem para afirmar que as mulheres que fazem abortos devem ir presas. Pelo contrário, os defensores do NÃO fazem questão de lembrar, seguindo uma estratégia estranha para os seus interesses, que a actual lei não é cumprida e ainda bem. Pois se é bom que a actual lei não seja cumprida, suponho que também seja bom que seja revogada.

      3. A lei só não seria uma farsa se o estado fosse omnisciente e omnipotente. Se soubesse a cada momento o que se passa no útero de cada mulher, talvez colocando sensores ou espiando as listas de compras das mulheres ou os respectivos caixotes do lixo. Ou talvez se colocasse agentes infiltrados nas clínicas de Badajoz ou se fizesse ecografias na fronteira do Caia.

      A lei que existe é um meio ineficaz de protecção da vida do feto. Os problemas da lei não são meros problemas de incompetência sanável. O problema da lei é que ela pressupõe uma sociedade e um estado que não existem (felizmente). Nem a sociedade acha os abortos graves ao ponto de colaborar na implementação da lei, nem o estado tem capacidade para vigiar o que se passa nos úteros das mulheres. A penalização do aborto é claramente uma ferramenta inadequada para proteger os fetos do aborto e por isso o facto de o feto ser uma pessoa não implica que deva ser protegida pela lei. Só implicaria se a lei protegesse a generalidade dos fetos, o que não é o caso.»



      b) Na sociedade em que vivemos, parece-me melhor não nascer - nunca chegar a ser um ser consciente, que sente dor e sofrimento - do que nascer filho de uma mãe que não nos deseja: que nos teria abortado se o pudesse e que carregou o sofrimentos de nos ter durante 9 meses, e assim o continuará a fazer.

      Acredito que para se ser mãe não basta conceber. É preciso amar o seu filho, é preciso ter a capacidade de lhe dar uma vida com alguma estabilidade, é preciso poder propiciar-lhe um futuro com esperança.

      Uma mãe que, podendo abortar, não o faz, é uma boa candidata.
      Uma mãe que porventura não abortou apenas porque era ilegal vai possivelmente arruinar a sua vida e a do filho.

      Será que a lei funciona? Será que há menos abortos por ser ilegal abortar?
      Actualmente penso que se tal for verdade, essas crianças não estão a ser protegidas: estão a nascer no mundo sem a garantia de uma mãe que as ame, com poucas condições para serem criados e serem pessoas estáveis, e equilibradas.

      Leituras recomendadas (20/1/2007)

      1. «Uma mulher que decida, por sua escolha, fazer um aborto não vai necessariamente passar à frente de ninguém nos cuidados de saúde, isto por várias razões, entre as quais: em países com leis não restritivas, há uma elevada percentagem de mulheres que opta pelo aborto médico, que envolve apenas a toma de dois comprimidos, mifepristona e misoprostol, e uma consulta, oito dias mais tarde, para exame ginecológico ou ecografia; as IVGs por método cirúrgico não irão fazer aumentar as listas de espera, já que serão geralmente realizadas por ginecologistas-obstetras, em serviço próprio. As cirurgias que actualmente têm uma maior lista de espera são as de oftalmologia e ortopedia, por exemplo, e estas especialidades claramente não se vão dedicar à realização de IVGs.» (No blogue dos Médicos pela Escolha.)
      2. «Que autoridade, que competência possuem os representantes da Igreja Católica para emitir pareceres sobre o referendo à despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez? Resposta: nenhuma. Tanta como o Clube de Coleccionadores de Saquetas de Chá Preto de Miranda do Corvo. (...) Por uma questão de equidade, espero que seja atribuído tempo de antena a médicos, juristas, filósofos e psicólogos para discorrerem sobre a santíssima trindade, sobre a exegese do Novo Testamento e sobre os desafios do ecumenismo neste dealbar do século XXI.» («De símios e de galhos», no umblogsobrekleist.)

      sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

      Quando o sectarismo ofusca o essencial (como sempre, aliás)

      Há gente muito preocupada com a aparência de que «se o "SIM" ganhar, ganhará não apenas a ideia de despenalização do aborto mas também toda a ideologia de esquerda que tem investido politicamente nesta questão», e também quem se coloque como objectivo «ajudar a quebrar a associação entre o Sim e a esquerda». Honestamente, parece-me de vistas curtas meter a «esquerda» e a «direita» numa luta pela promoção do valor da liberdade individual da mulher. Ou será que não há direita alguma para a qual a liberdade individual seja um valor?

      Leituras recomendadas (19/1/2007)

      1. «Das 17 mulheres levadas a julgamento no tristemente célebre Processo da Maia, em 10 não se conseguiu apurar o tempo de gestação. As restantes 7 tinham os tempos de gestação que se seguem (tal como são apresentados no acórdão que resultou do julgamento): M.G.M. - 1 mês; F.M. - 1 mês e poucas semanas; M.A. - 1 mês e meio; L.C.R. e S.S. - 6 semanas; M.J. - 8 semanas; M.J.C. - 10 semanas.» («"Não será melhor argumentar com seriedade?", she said», no Womenage a Trois.)
      2. «E que tal contribuir com os meus impostos para: (...) - pagar as contas de hospital, muitas vezes os enterros, destas crianças, quando são deixadas a cargo dos tais pais contrariados que, em combinação com personalidades disfuncionais, alcoolismo, drogas e crueldade pura, as negligenciam, maltratam fisica e psicologicamente e, por vezes, as matam? (...) - pagar a alimentação, o vestuário, a educação especial, as televisões e as playstation de adolescentes grávidas que brincam às bonecas em casas de acolhimento e às quais não foi dada qualquer hipótese de escolha? E que passarão os anos seguintes das suas vidas a viver à custa do Estado, até não saberem fazer outra coisa que não sorver subsídios? (...) Olhem, filhos, gastar os meus impostos a alimentar os podres de um sistema que, basicamente, se está a cagar para o destino das criancinhas, uma vez fora do útero, e que permite que andem em bolandas de sofrimentos vários, isso é que NÃO, OBRIGADA.» («E que tal contribuir com os meus impostos para:», no Controversa Maresia.)

      quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (18/1/2007)

      1. «Se um titular de cargo público, agindo em funções oficiais e durante o período de campanha, apelar ao voto num certo sentido ou aduzir argumentos contra ou a favor de um dos lados aproveitando o cargo que exerce, estará a praticar o crime de "abuso de funções", p.p. no citado art. 206.º; O mesmo sucederá se um sacerdote durante o período de campanha e num acto de culto (vg. numa homilia) apelar ao voto ou tentar moldar o sentido de voto dos crentes - se, por exemplo, assimilar a mensagem religiosa com o voto num determinado sentido no referendo; No entanto, nos exemplos anteriores, a meu ver, o crime não se verificará caso a intervenção do agente não for exercida a título oficial e fora das funções legalmente relevantes.» («"Isto" ainda será um Estado de Direito?», no Blasfémias.)
      2. «Eu também me sinto triste pelo "estendal" de campanha que a Igreja e alguns movimentos de cariz marcadamente católico estão a fazer. Ele são os velhos panfletos com as imagens de embriões abortados, ele é a imagem de Nª Sra que chora e os terços a rezar, ele são os padres nos ambões a falar dum assunto para o qual não estão preparados (...) Mulheres mortas por violência doméstica, era um bom tema para uma homilia num domingo, ou uma Nota Pastoral. Nunca ouvi nenhuma. (...) Eu sei que contrasta com o papel que a Igreja atribui em primeiro lugar às mulheres - serem mães. Ou virgens. Mas nem todas querem sê-lo. Ou em determinada circunstância da vida. A mulher tem que ser, apenas, a "chocadeira"? Sem vontade e capacidades próprias?» («Só duas coisinhas, Sr D. José», no Jardim de Luz.)

      Kenan Malik: «Free Speech in a plural society»

      «What should be the limits of free speech in a plural society? It is a question that has been asked with increasing urgency over the past few years.
      (...)
      Today, many liberals argue that whatever may appear to be right in principle, in practice one must appease religious and cultural sensibilities because such sensibilities are so deeply felt.
      (...)
      Part of the problem with this whole debate is that both sides conflate two distinct notions of multiculturalism - multiculturalism as lived experience and multiculturalism as a political process. When most people say that multiculturalism is a good thing what they mean is the experience of living in a society that is less insular, less homogenous, more vibrant and cosmopolitan than before. In other words it's a case for cultural diversity, mass immigration, open borders and open minds.
      Those who advocate multiculturalism as a political process are, however, talking about something different. Multiculturalism, they argue, requires the public recognition and affirmation of cultural differences. We live in a world, so the argument runs, in which there are deep-seated conflicts between cultures embodying different values, many of which are incommensurate but all of which are valid in their own context. Social justice requires not just that individuals are treated as political equals, but also that their cultural beliefs are treated as equally valid, and indeed are institutionalised in the public sphere.

      ###
      (...)
      I believe it is critical to separate these two notions of multiculturalism. The irony of multiculturalism as a political process is that it undermines much of what is valuable about diversity as lived experience. When we talk about diversity, what we mean is that the world is a messy place, full of clashes and conflicts. That is all for the good, for such clashes and conflicts are the stuff of political and cultural engagement.
      (...)
      Diversity is important, not in and of itself, but because it allows us to expand our horizons, to compare and contrast different values, beliefs and lifestyles, make judgements upon them, and decide which may be better and which may be worse.
      (...)
      The right to 'subject each others' fundamental beliefs to criticism' is the bedrock of an open, diverse society. 'If liberty means anything', as George Orwell once put it, 'it means the right to tell people what they do not want to hear'.
      (...)
      Free speech does not mean accepting all views. It means having all views in the open so we can challenge the ones we find unconscionable.
      (...)
      In its traditional Kantian sense, respect requires us to treat every human being equally as a moral, autonomous being. Every individual possesses the capacity to express political and moral views and to act upon them. And every individual is responsible for their views and actions and is capable of being judged by them. The importance of free speech is that it is an expression of individual moral autonomy, the capacity of people to engage in a robust debate about their beliefs and their actions - and to bear the consequences.
      (...)»

      quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

      Os números, senhores, os números

      • «A estatística oficial do Ministério da Justiça é incompleta, porque só apresenta dados sobre alguns distritos (se os casos forem, por ano, menos de 3, então passam a ficar ocultados pelo segredo estatístico). Assim, só é possível saber que, desde o referendo anterior e somente em seis distritos (Lisboa, Porto, Coimbra, Santarém, Faro, Aveiro e Viseu) houve 223 pessoas que foram investigadas por crime de aborto. Dessas, 37 mulheres foram julgadas e 17 foram condenadas - das quais somente nove viram a sua pena ser substituída por multa ou pena suspensa.» (Esquerda.net)

      Leituras recomendadas (17/1/2007)

      1. «Também não vê Mafalda contradição entre a admissibilidade da pílula do dia seguinte e a punição da interrupção voluntária da gravidez. Mas devia ver essa contradição. É que a pílula do dia seguinte actua sobre óvulos já fertilizados, antes da nidação. Ora, coerentemente para a Mafalda, a vida tem tanto valor nesse momento como depois da implantação no útero materno. (...) Mafalda, especialista em espantar-se com o que mil pessoas antes de si já descobriram, vem dizer que os adeptos do “Sim” não conseguem explicar a fronteira das dez semanas. Conseguem, Mafalda. O óvulo fecundado vai-se desenvolvendo. Às 12 semanas forma-se a estrutura cerebral e às 20 semanas começa a actividade cerebral superior. Neste trajecto há uma realidade biológica que se vai desenvolvendo. Não sabe a Mafalda que o aborto não é punido tão gravemente como o homicídio? Acha a Mafalda que, no caso de conflito entre a vida da mãe e a do feto, o médico e o pai podem decidir livremente o que fazer? É óbvio que não, Mafalda! Apesar da vida ter sempre valor, um ser autónomo não vale o mesmo que um óvulo fecundado.» («Mafalda, a contestatária», no Câmara Corporativa.)



      2. «Um crente que pratica o aborto não pode ser absolvido? Quem teve uma fraqueza e se arrepender é objecto da misericórdia divina. Mas a Igreja é bastante dura e o Direito Canónico excomunga essa pessoa. A pessoa faz um aborto em plena consciência de que está a fazer um mal. As pessoas não o confessam, mas fazem o aborto. A diferença é que [se ganhar o sim a 11 de Fevereiro] deixa de ser clandestino. Todos os pecadores pecam clandestinamente, mas estar nessa clandestinidade já é uma pena. Mas, se um marido engana a mulher, é diferente ser no estrangeiro ou à sua frente. É diferente porquê? Evidentemente que não houve escândalo. Se faz o mal onde não há contágio, tem uma atenuante. O problema é saber-se? É menos mau'.» («do mal e dos óculos escuros», no Glória Fácil.)

      terça-feira, 16 de janeiro de 2007

      Declaração de voto

      O referendo de 11 de Fevereiro de 2007 será sobre uma alteração no código penal. Trata-se portanto de uma questão exclusivamente legislativa e política. Não se trata de determinar o início da vida, nem de retirar a governos futuros a prerrogativa de decidir que actos médicos serão pagos pelo SNS. Resumidamente, eis no que fundamento a minha posição...
      1. A vida não começa com a fecundação: transmite-se. Um espermatozóide e um óvulo separados são ambos células vivas. Um espermatozóide que fecunda um óvulo origina um ou mais seres humanos individuais, que terão a mesma informação genética (é o caso dos gémeos univitelinos). A fecundação dura uma vintena de horas e a nidação (implantação no útero) demora seis a oito dias. Considero importante, pessoalmente, que o crescimento se acelere pela 12ª semana, mas parece-me mais relevante que só pela 24ª semana a taxa de sobrevivência do prematuro (viabilidade) se aproxime dos 50%, e que nesse momento já haja indícios de controlo do próprio corpo pelo feto (e portanto actividade cerebral consequente). Mas as duas únicas fronteiras biologicamente claras, ao longo das quarenta semanas da gravidez, são mesmo a fecundação e o nascimento: a origem de um indivíduo e a sua separação física da progenitora.
      2. A maternidade é um direito mas não um dever. Eticamente, não consigo valorar um aborto no primeiro mês de forma muito diferente da contracepção de emergência, e um aborto no oitavo mês de forma substancialmente diferente de um infanticídio. Entre as fronteiras biológicas indicadas mais acima (e que têm consequências éticas), parece-me razoável intercalar o momento em que há viabilidade e actividade cerebral - porque a partir daí temos um ser capaz de sentir dor e de que a sociedade teoricamente poderia ocupar-se (uma situação hipotética, com enormes dificuldades práticas...). Mas a liberdade da mãe é também um valor. Não é um descuido, por muito irresponsável que seja, que deve obrigar uma mulher a completar os nove meses de uma gravidez, com tudo o que isso significa de cuidados, privações e investimento emocional. No primeiro trimestre, existe um equilíbrio entre os valores da liberdade da mulher e da vida do embrião/feto, sobre o qual cada mulher deve poder seguir a sua consciência. No segundo trimestre, esse equilíbrio desloca-se a favor do feto, embora as malformações sejam excepções a considerar. No terceiro trimestre, parece-me inaceitável que se aborte.
      3. A vida é um contínuo, que o código penal discretiza. E portanto há contradições dos dois lados: o «não» só seria perfeitamente coerente se defendesse que o abortamento de qualquer óvulo fecundado fosse tratado como um homicídio. Em Portugal, a «pílula do dia seguinte» (que não se sabe se actua antes, durante ou depois da fecundação...) está totalmente despenalizada e é usada abundantemente (foram vendidas 230 mil em 2005), sem que ninguém acuse as utilizadoras de «homicídio» (o que evidencia que a sociedade considera que não é de facto de «homicídio» que se trata). No Código Penal actual, o «crime de aborto» tem a mesma pena no segundo e no oitavo mês, o que é absurdo e só se compreende porque o código penal reduz a prazos «intervalados» o que é contínuo. Se a IVG for despenalizada até às 10 semanas, a maioria das IVG´s será, desejavelmente, realizada nas primeiras seis a oito semanas. Se uma IVG é uma boa ou má opção, só compete a cada mulher decidir, porque só ela pode garantir que a gravidez irá até ao fim. A mim, cabe-me votar no dia 11 de Fevereiro para que possam decidir sabendo que não serão obrigadas à clandestinidade, e cientes de que não serão investigadas ou levadas a tribunal. Evidentemente, votarei «sim» no dia 11 de Fevereiro.

      Os media estão pelo «não»

      A partir da notícia do Diário de Notícias, é fácil fazer as contas aos meios de comunicação social que assumem posição editorial pelo «sim» ou pelo «não».
      1. Pelo «não»: Rádio Renascença, o diário Correio da Manhã, o semanário Sol e, possivelmente, o semanário Expresso.
      2. Pelo «sim»: a revista mensal Le Monde Diplomatique.
      3. Neutros: Diário de Notícias, Público, TSF, RTP e TVI.

      Portanto, há uma clara vantagem nos media para o «não», que se deve sobretudo à ICAR e aos seus «braços» económicos. Convém não esquecer que o «não» também disfrutará dos tempos de emissão das confissões religiosas na TV pública (tanto a ICAR como a AEP estão pelo «não»), e de espaços como o do padre Borga (que tem feito campanha pelo «não» no programa da manhã da TV pública).

      segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (15/1/2007)

      1. «Não, não vou repetir as minhas queixas pela campanha diária pelo Não do Padre Borga nas manhãs da RTP1 ou da campanha igualmente diária da ICAR nas tardes da RTP2. É mesmo do Jornal da Tarde que vos falo. Na 5ª feira houve apenas espaço para o Não, uma conferência de uma qualquer sotaina em campanha por Vale de Cambra valeu uma notícia, no Sim nada lhes importou (...) "referendo ao aborto" não pode ser tolerado como um resumo de "referendo à despenalização da IVG". Não é a mesma coisa. Dizer "referendo ao aborto" é entrar na lógica do Não. Não é jornalismo, é distorção e manipulação. Tal como falar em "movimentos contra e a favor do aborto", já perdi a conta às vezes que ouvi isto na RTP! E como se não bastasse usam um feto de não sei quantos meses como grafismo para o tema, ao invés de um isentíssimo boletim de voto ou martelo da justiça, ou seja, aquilo que afinal se discute.» («RTP: jornalismo abortado», no Renas e Veados.)
      2. «[José Policarpo] afirma que que o preservativo e a pílula do dia seguinte resultaram na diminuição do "aborto de vão de escada", que designa de drama. Vejo que já considera esses métodos vantajosos, pois que evitam o tal drama. Declara também que, com esses métodos, a decisão de abortar pertence ao "campo da liberdade pessoal e da consciência". Trata-se de posições bastante mais avançadas do que as de outros elementos da Igreja que integra. (...) Tomar a pílula do dia seguinte não é abortar? (...) Não será o seu "não" profundamente contraditório? (...) Como é que se exerce essa "liberdade pessoal" se a mulher que aborta "é punida com pena de prisão até três anos" (artigo 140.º do Código Penal)? (...) E como é que sabe que foram dadas semelhantes instruções à PJ?» («Carta a José Policarpo», no Diário de Notícias.)

      O artigo que o Público recusou: «Quando parece proibido não festejar»

      O artigo de opinião aqui reproduzido foi enviado ao Público em resposta à «campanha galáctica contra o natal» em que este periódico envolveu a Associação República e Laicidade. O Director do Público recusou-se a publicá-lo por razões que merecem ser citadas: «poderíamos ter publicado o texto em causa se nos tivesse sido enviado como texto de opinião, não nunca o faríamos na posição de alguém que tenta recorrer (...) à lei para nos limitar a liberdade de edição». Em resumo, não foi concedido direito de resposta à ARL justamente por ter sido pedido direito de resposta, uma atitude francamente surreal, como surreal também foi toda a «guerra contra o natal» que este jornal importou da imprensa do Vaticano e dos tablóides britânicos, e na qual nem um décimo dos pseudo-factos apresentados resistiam a uma análise crítica. Haverá mais novidades sobre este assunto muito em breve, no espaço da ARL.

      Quando parece proibido não festejar

      A liberdade de consciência, de religião e de culto é, felizmente, um dos direitos fundamentais consignados na nossa Constituição. A decorrente liberdade de cada cidadão professar ou não a religião que escolher pressupõe que o Estado, devido ao seu poder coercivo, seja independente das igrejas e neutro em matéria religiosa. A Associação República e Laicidade (ARL), na defesa desses princípios, condena a realização de rituais religiosos e a existência de crucifixos e imagens religiosas em escolas públicas, situações que são comprovadamente ilegais e inconstitucionais. Opomo-nos também à existência de Educação Moral e Religiosa na escola pública, por entendermos que – pelo seu carácter de transmissão de crenças e valores particulares – não deve ser apoiada pelo Estado, embora seja perfeitamente legítima enquanto actividade auto-organizada pelos cidadãos nas suas igrejas e associações. Consideramos ainda claramente preferível que a escola pública, para além dos conhecimentos universais que deve ensinar, apenas transmita valores por todos partilhados, o que não acontece com os das comunidades religiosas que representam apenas segmentos da população portuguesa, mas não a sua totalidade.

      A ARL foi incluída na notícia do Público «Quando festejar o Natal é proibido» por ter editado no seu saite uma nota sobre uma peça teatral publicada numa revista de professores. Nessa representação, uma mulher aceita uma gravidez que acontece por decisão de outrém e lhe é anunciada por um «anjo Gabriel», e diz orgulhosamente: «eu sou a escrava do Senhor». Manifestámos o nosso desagrado pela ausência de alternativas a este género de conteúdos, pois é impossível explicá-los sem recorrer à dogmática católica (e a escola pública não é o lugar da catequese), e porque a liberdade, e a maternidade consciente e responsável, nos parecem valores preferíveis àqueles objectivamente promovidos na peça (o Público garante a historicidade dos acontecimentos ali representados, mas muitos teólogos católicos seriam mais prudentes).

      O laicismo, como o defende a ARL, visa garantir a liberdade dos cidadãos na esfera privada, individual e associativa, onde se exerce o essencial da liberdade religiosa, impedindo simultaneamente o Estado de ter opinião sobre matérias confessionais. Precisamente por definir limites ao poder do Estado em matérias de consciência, protege os cidadãos contra todos os totalitarismos religiosos ou políticos, designadamente aqueles que proibiriam cultos religiosos – como ocorreu no Portugal da época inquisitorial ou ainda acontece na China do ateísmo de Estado. Situações referidas como «proibição» pelo Público (saudações em cartões da época ou decorações em empresas que não aludem ao «nascimento de Cristo») ocorrem nessa esfera privada onde qualquer cidadão é livre de celebrar ou não o natal, indo à missa ou não, escrevendo «boas festas» ou «santo natal» em cartões, e aceitando ou não trabalhar ou comprar numa empresa que coloca as decorações que entende (por razões comerciais ou outras). Seria totalmente ilegítimo que o Estado interferisse em celebrações privadas, mas felizmente não temos conhecimento de um único cidadão da Europa ocidental ou da América do Norte que tenha sido impedido de celebrar o natal por proibição estatal. Porém, atendendo à secularização que se acentua nas sociedades europeias (em Portugal, no ano de 2005, 31% das crianças nasceram fora do casamento e 45% dos casamentos foram pelo registo civil, indicadores que vêm em crescendo desde o 25 de Abril) é inteiramente natural que haja, a cada novo ano e de forma espontânea, menos presépios e mais saudações como «boas festas».

      No que concerne a gestão do espaço público (ruas e praças, meios de comunicação social públicos…), qualquer grupo de cidadãos usa transitoriamente o espaço público para acções de índole variada (política, religiosa, sindical, desportiva...), na condição de posteriormente ceder o lugar a acções de índole diferente ou até contraditória. Não vemos portanto qualquer transgressão da laicidade em manifestações pontuais como o acender público do candelabro de Hanucá no Porto(1). Acrescente-se que todos somos confrontados no espaço público com ideias de que não gostamos: os democratas com ideologias anti-democráticas, os religiosos com críticas anti-religiosas, e os laicistas com o anti-laicismo; todas as ideologias e religiões, em qualquer sociedade aberta, são criticáveis.

      Que fique claro que consideramos que a preservação de uma cultura ou religião não pode constituir obrigação primeira de um Estado moderno, mas que já lhe compete garantir a liberdade de cada cidadão manter ou abandonar a opção religiosa em que cresceu. Se os católicos entendem que o Estado tem o dever de promover a sua religião, adoptar os seus símbolos, ou proteger a religião da crítica, colocarão a sua religião numa esfera que a todos pertence – atingindo a liberdade dos outros e monopolizando o espaço público onde cada ideia e o seu contrário deveriam poder saudavelmente cruzar-se.

      (1) Pelo contrário, um Estado como Israel, onde o casamento civil não existe – tornando legalmente impossível o casamento entre pessoas de diferentes comunidades religiosas – e onde os divórcios são portanto matéria para tribunais religiosos – que subordinam a mulher ao homem, quer sejam judaicos ou islâmicos – está muito longe do nosso ideal de uma sociedade em que a lei civil seja independente das instituições religiosas.

      Com os meus melhores cumprimentos, pedindo a publicação deste artigo,

      Ricardo Alves

      (Secretário da Direcção)

      sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

      As três boas decisões de Chirac

      «(...)
      Le chef de l'Etat est un menteur, un voleur, un homme sans conviction, un profiteur de la République, un opportuniste, et beaucoup d'autres choses encore. Il est un homme de coups, une bête de campagne, mais a dénaturé l'action politique, et a été incapable de présenter un projet mobilisateur pour les Français.
      (...)
      La première fut de tenir tête à l'administration de Bush, en 2003, lors de la guerre d'Irak. Il est certain que son camp, notamment derrière Sarkozy, était hostile à l'action de Chirac-Villepin, et souhaitait, ce qu'un Lellouche ne cachait pas, le ralliement de la France, derrière Blair-Berlusconi-Aznar, à la politique états-unienne. Le discours de Villepin à l'Onu a été un grand moment, qui a rappelé les meilleurs aspects de la politique indépendante gaulliste des grandes années. Si avec Sarkozy, on est certain que nos soldats seraient en train de se faire tuer en Irak, on aimerait être sûr qu'avec les socialistes, qui n'ont jamais brillé, jusqu'à ce jour, par des prises de distance nettes avec la politique américaine (se souvenir de 1991), la situation ne serait pas la même.
      La deuxième décision courageuse, et respectable du chef de l'Etat sera de décider de faire une loi contre les signes religieux à l'école. Son discours du 11 décembre 2003, qui annonçait la loi du 15 mars 2004, fut remarquable. Là encore, Nicolas Sarkozy a combattu de toutes ses forces cette orientation, lui qui avait des gages aux islamistes de l'UOIF. Avec le ministre de l'Intérieur, il n'y aurait pas eu de lois, et les enseignants seraient encore confrontés à des spécimen comme les soeurs Levy, qui auraient multiplié incidents et provocations dans les écoles publiques. Mais surtout, avec la gauche plurielle, il n'y aurait jamais eu non plus cette loi. Nous n'oublierons jamais que la direction des Verts l'a combattu de toutes ses forces, que la direction du PCF, malgré un André Gérin, a fait voter contre, et que les socialistes ne sont réveillés qu'à la fin des débats.
      La troisième décision, qui lui a valu le mépris et la colère de tout son camp au soir du 29 mai 2005, a été celle d'organiser un référendum pour demander l'avis aux Français. Que Chirac ait appelé à voter " oui " ne change rien à la qualité de sa décision. N'oublions pas cet aveu de Strauss-Kahn : " Nous avons fait la connerie de demander un référendum à Chirac, et Chirac a fait la connerie de nous dire oui ". Sans Chirac, il n'y aurait pas eu de référendum. Quant à Sarkozy, il a annoncé, s'il était élu, qu'il n'y en aurait pas de nouveau, mais un vote des députés ! Rappelons que si le chef de l'Etat avait appliqué cette procédure, le " oui " l'aurait emporté à plus de 90 %, preuve de la coupure des élus avec le peuple.
      Alors, c'est promis, à l'heure du bilan de Chirac, je n'oublierai pas le côté accablant de son bilan, le peu de sympathie que j'éprouve pour le personnage, mais je lui accorderai quelques circonstances atténuantes à cause de ces trois décisions.
      »

      Leituras recomendadas (12/1/2007)

      1. «O próximo referendo apenas decidirá se existe ou não a possibilidade legal de IVG até às 10 semanas ou se, pelo contrário, as mulheres que tomarem essa inciativa sem essa nova cobertura legal deverão ser perseguidas criminalmente - todas as demais questões que agora são pressurosamente suscitadas nada mais visam do que "desconversar" para manter tudo como está: e, como está, está muito mal; - Eu não quero mudar o país e o mundo num ápice à boleia do próximo referendo sobre a IVG - vou votar SIM, em 11 de Fevereiro, apenas porque não quero viver num país que pune criminalmente um comportamento sempre praticado em estado de necessidade e que, também por isso, não afecta gravemente os valores com que a maioria dos indivíduos do mundo contemporâneo em que me revejo escolhe pautar a sua existência.» («Argumentário liberal a favor do SIM (2)», no Blasfémias.)
      2. «Parece que há quem ache que a missa mandada celebrar pela DGCI não viola a laicidade do Estado. Mas se a encomenda de uma missa por um organismo oficial não infringe a laicidade, o que é que viola a laicidade!? Como é possível aceitar esta situação de esvaziamento de conteúdo da separação entre o Estado e a religião, se não na base do mais rasteiro oportunismo político e falta do desrespeito pelos mais básicos princípios da República? Parece que daqui a três anos vamos comemorar o centenário da implantação da República. Por este andar, mais apropriado será o Governo encomendar ao Cardeal Patriarca um solene requiem pela memória da República...» («Laicidade semântica», no Causa Nossa.)

      quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (11/1/2007)

      1. «Paulo Macedo, director-geral dos Impostos e quadro do BCP, encomendou uma missa de acção de graças pela DGCI e pelos seus funcionários, para que todos - independentemente da confissão ou falta dela - foram convocados. A cerimónia realizou-se ontem, às 18 horas e 30 minutos, na Sé de Lisboa. Certamente que o quadro do banco do Opus Dei, que aufere de um vencimento bruto superior a 23 mil euros, terá muito que agradecer à «Obra divina» pelo facto de permanecer há mais de dois anos em flagrante violação da lei que determina não poderem ter salário superior ao do primeiro-ministro (5.360,58 euros) os altos dirigentes do Estado.» («A laicidade das Finanças», no Diário Ateísta.)
      2. «Já não é a primeira vez que o deputado João Teixeira Lopes, do Bloco de Esquerda, mostra todo o seu sectarismo. (...) uma acusação de oportunismo semelhante à lançada por João Teixeira Lopes poderia ter uma atenuante no caso de o visado se tratar de um político que em 1998 não tivesse feito campanha pelo “sim”. Mas não é esse o caso – Rui Rio nesse aspecto revelou sempre uma grande coragem política, votando mesmo contra a orientação do seu partido, como deputado, em 1997, quando a despenalização foi aprovada no Parlamento, antes de Guterres e Marcelo “decidirem” que era melhor haver um referendo.» («João Teixeira Lopes, o dono do "sim"», n´o Avesso do Avesso.)
      3. «Estima-se que só no Reino Unido vivam hoje cerca de 800 mil portugueses emigrados para ali na última década e meia. 800 000. Quase um milhão. Tantos quantos os queridos muçulmanos que tanto barulho fazem no multiculturalismo das notícias copy-paste nacionais (...) O Grande Porto industrial é quem contribui mais para este derrame: não foi pela beleza das Pedras Rubras que a Ryanair inaugurou essa rota a partir de Londres-Stansted; Norwich, Bolton, só para citar algumas cidades, vivem dos embaladores de carne, dos apanhadores de fruta e legumes com pronúncia do norte. Nas cafeterias do aeroporto de Gatwick não se fala outra língua, da cozinha à mesa do freguês.» («Emigrantes», no Verdade ou Consequência.)

      quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (10/1/2007)

      1. «Surpreende-me a violência dos ataques dos movimentos pró-prisão aos que pretendem, apenas, que as mulheres (quase sempre pobres) não sejam alvo de devassa da sua vida íntima, da perseguição policial e do julgamento que as pode conduzir à prisão. (...) Surpreende-me que, enquanto em Portugal os 20 bispos titulares de dioceses, sem uma única excepção, se empenham em manter a violência legal contra as mulheres, que em desespero recorrem à interrupção voluntária da gravidez, os bispos de Malta mantêm a mesma intolerância em relação ao divórcio e os de Timor no que diz respeito ao uso de contraceptivos. Surpreende-me que os recursos financeiros sejam tão amplos para os defensores da prisão e tão escassos para os partidários da despenalização.» («A Igreja católica e a IVG», no Ponte Europa.)
      2. «Enquanto a campanha do Sim tenta apelar à razão das pessoas (erro terrível), explicando que o que se trata não é de aprovar ou condenar o aborto, mas de o despenalizar, e assim evitar que sejam julgadas e presas as mulheres que são obrigadas a ele recorrer, o Não acena com cenários apocalípticos de assassinatos em série de bebés, perfeitos para convencer os palermas, com fortissimas razões morais, o bem e o mal, que tão fundo calam em gente sempre pronta a apontar o dedo ao próximo, e com velhacos argumentos economicistas sobre o custo de uma IVG e o seu peso nos nossos impostos, melodia para os ouvidos de novos-ricos avarentos.» («Coisas que podem correr mal em 11 de Fevereiro», no 2+2=5.)

      segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

      Criacionismo e democracia

      Na semana passada David Horton publicou um artigo no Huffington Post que levanta uma questão relevante: a crença no criacionismo representa uma alienação da realidade tão grande, um desconhecimento tão vasto do mundo e uma ideia da realidade tão tresloucada, que deixa dúvidas sobre a imputabilidade das pessoas e, naturalmente, sobre a sua capacidade de fazer escolhas racionais.

      Acreditar que o mundo tem seis mil anos é absolutamente idiota em face da quantidade de informação disponível sobre a antiguidade do planeta.

      Acresce que aqui nos EUA (e provavelmente também em Portugal) os ignorantes que se encarniçam contra a astronomia, a física, a química, a geologia, a biologia, a paleontologia e a arqueologia, são os mesmos que defendem os sacrifícios humanos (toda a evidência demonstra que a execução de seres humanos não tem qualquer relação com o aumento ou a diminuição da criminalidade), a utilização de armas nucleares contra os muçulmanos, a perseguição e a negação de direitos fundamentais a cidadãos com base na sua orientação sexual e outras ideais assim tontas e disfuncionais.

      David Horton levanta a questão (pertinente!) de uma imagem do mundo tão profundamente ingénua e disfuncional poder ter consequências gravíssimas no processo democrático. Quando esta gente vota, vota num contexto que não existe e tendo em mente questões imaginárias, sem qualquer relevância na vida dos povos: se os homossexuais vão para o inferno ou não, se Clinton enganava a mulher muito ou pouco, e outras coisas assim, tontas e triviais.

      Enquanto isso, o fundamentalismo religioso e a ganância da indústria petrolífera já provocaram mais de 650 mil mortos civis no Iraque. E esta gente, que contribuiu com a vida dos próprios filhos – a esmagadora maioria dos mais de 3 mil jovens soldados que deram a vida pelo sonho de democracia e paz no Iraque que lhes foi vendido pelos neo-cons é oriunda de famílias pobres e rurais, tradicionalmente criacionistas – continua a suportar as iniquidades da administração W, como se a realidade com que são confrontados todos os dias fosse inventada por uma vasta conspiração “da esquerda”.

      Como é que se educa as pessoas?

      Leituras recomendadas (8/1/2007)

      1. «O debate público e o extremar dos argumentos são prejudiciais ao "sim", o ruído e a discussão inflamada afastam os indecisos. Estas são as condições objectivas. O "sim" tem um caminho de grande delicadeza a percorrer e mesmo o mais justo dos discursos pode fazer perder votos. É uma luta dura, onde do outro lado estão convicções religiosas.» («O pior vem aí», no Diário de Notícias.)
      2. «O Governo e o PS insistem em desconversar e em "chutar para o lado" sobre a questão do trânsito dos voos da CIA em aeroportos portugueses. Não basta dizer que "não há provas" de cumplicidades nacionais nos alegados voos, como ontem voltou a suceder. Perante os preocupantes dados já divulgados, o Governo deveria ser o primeiro a querer saber: (i) se houve voos ilegais e quantos; (ii) se a CIA abusou das facilidades nacionais, para transportar detidos à margem do direito internacional; (iii) se foram cumpridos os procedimentos regulares pelos serviços aeroportuários e demais autoridades nacionais em relação a esses voos». («Nada a esconder», no Causa Nossa.)
      3. «Em 3 anos e meio este blog recebeu centenas de comentários anónimos. Nestes incluo os pseudónimos que não remetam para sites, blogs e endereços (...) Creio não estar enganado se disser que só 2 ou 3 desses comentários foram "normais". Todos os outros resvalam para o insultuoso. Têm sempre qualquer coisa de histriónico, às vezes mesmo de histérico (...) O anónimo dos blogs é uma criatura contraditória, uma contraditura: para gritar mais alto a sua extrema individualidade recorre à omissão da identidade - real ou imaginária.» («A anomia anónima», no Os tempos que correm.)

      sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (5/1/2007)

      1. «Terrorismo é negar o funeral religioso a Piergiorgio Welbi, que desejou morrer, e concedê-lo a um carniceiro como o Pinochet; Terrorismo é condenar à morte milhões de seres em África, ao considerar pecaminoso o uso do preservativo, ao enganar o povo ignorante dizendo que não protege do vírus da Sida e ao patrocinar a destruição de centenas de milhares de unidades para lá enviadas pelos países desenvolvidos; (...)Terrorismo é obrigar ao nascimento de filhos indesejados que irão, muitos deles, engrossar o exército dos mal tratados e dos miseráveis; Terrorismo é fazer das mulheres cristãos de segunda, ao impedir o seu acesso ao sacerdócio; (...) Terrorismo é impedir um casal de ser feliz, ao reprovar o recurso à Procriação Medicamente Assistida; Terrorismo, o mais hediondo terrorismo, é dar cobertura a padres pedófilos, subtraindo-os à justiça civil e mudando-os de paróquia. É tempo de mais crentes dizerem basta. Afinal, a igreja somos nós.» («Terrorismo? Que terrorismo?», no thesoundofsilence.)
      2. «As diferenças entre a lei de cá e a lei de lá, ou entre uma e outra «clausula de abertura», resultam de um conjunto de situações: 1. uma palavrinha apenas faz a diferença, na interpretação do espírito do legislador e na tarefa do interprete directo da norma, médico, e do interprete jurídico: por cá diz-se «o único meio de remover perigo»; por lá, «que seja necessário para evitar um grave perigo»; 2. os médicos espanhóis ofereceram a abertura interpretativa necessária para conferir eficácia prática e utilidade à norma; de tal sorte que a interpretação jurídica se lhes seguiu, e a jurisprudência acolheu a posição médica maioritária sobre a questão. Em Espanha, um grande número de interrupções voluntárias da gravidez acontecem a partir de uma interpretação médica aberta do pressuposto «saúde psíquica», com a concordância (reactiva ou passiva) dos tribunais.» («A Lei de cá e a Lei de lá», no Linha.de.Conta.)

      quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

      Leituras recomendadas (4/1/2007)

      1. «1. Está prevista, para o próximo dia 4 de Janeiro, a discussão, em Plenário da Assembleia da República, de uma proposta de Lei do Bloco de Esquerda sobre a introdução do “ensino multilingue nos estabelecimentos públicos de educação e de ensino”. Trata-se de uma proposta tecnicamente errada e politicamente reaccionária que, espero, seja rejeitada. 2. A definição política mais inclusiva de nacionalidade que conheço é aquela que se centra na pertença a uma colectividade política e de língua. E é inclusiva porque a língua, ao contrário, por exemplo, da religião, não exige exclusividade nem conversão: pode ser simplesmente aprendida e adicionada a outras línguas já conhecidas. Integrar novos cidadãos em Portugal significa pois, entre outras coisas, desenvolver a capacidade para estes falarem, com competência, a língua portuguesa, independentemente de outras línguas. Este deve constituir objectivo central do Estado no âmbito da política educativa.» («Heranças contra escolhas», no Canhoto.)
      2. «Se o aborto é uma questão moral, o que é evidente para mim, e parece ser também para HR, então de facto não deve ser resolvida pela lei. Acontece que, como é bom de ver, já existe uma lei, proibicionista. Se HR defende de facto que esta é uma questão da consciência de cada um, então o que deve fazer é votar Sim, ou seja, votar contra uma lei que nega o primado da consciência. Mas se tem assim tantas dúvidas, que vote branco ou nulo em vez de se abster.» («A grande confusão», no 2+2=5.)

      Jean-Yves Camus: «Altermondialisme et gauche radicale face au différentialisme»

      «La visibilité accrue, en France en tout cas, de la mouvance altermondialiste et de la gauche radicale, le contenu d'un certain nombre de forums sociaux, la mobilisation d'une bonne partie de ces courants sur des thèmes tels que les droits des minorités ethniques et linguistiques, le droit à la différence et les formes que doit prendre l'intégration, auraient du soulever une question de fond: celle de l'attitude de ces familles politiques face à ce qu'on nomme le différentialisme, c'est-à-dire le projet idéologique qui consiste à promouvoir une société dans laquelle l'unicité du genre humain, l'égalité juridique entre les individus et la citoyenneté disparaissent au profit de la valorisation de ce qui sépare, c'est-à-dire les aptitudes intellectuelles et physiques données comme innées, et aussi l'appartenance ethnique, raciale ou religieuse.
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      (...)
      On peut résumer la question ainsi: de quel point de vue critique-t-on la mondialisation? En conteste-t-on principalement les modalités, c'est à dire la financiarisation de l'économie planétaire, l'hégémonie de l'ultra-libéralisme, la spéculation des grands fonds d'investissements internationaux, ou en conteste-t-on le principe même, c'est-à-dire l'idée selon laquelle il devrait avoir un monde sans frontières étatiques, où les Nations disparaîtraient et où les cultures, voire les langues, seraient uniformisées?
      (...)
      Le problème est qu'une partie de cette gauche répond à ce constat en proposant des modes de résistance hautement contestables à la globalisation. Le premier, on le voit avec les théories du Socialist Workers' Party britannique sur l'islamisme, reprises en France par une fraction de l'extrême-gauche trotskyste (Socialisme par en bas en particulier), c'est que l'islamisme est un phénomène de résistance identitaire à la globalisation et à l'impérialisme, un réflexe de refus des peuples arabo-musulmans face à l'alignement sur son mode de vie que tenterait de lui imposer l'Occident. Or l'islamisme possède bien une dimension identitaire, qui s'exprime par le «bricolage religieux» dont parlent Gilles Kepel et Olivier Roy, mais c'est aussi une doctrine théologico-politique dont, personnellement, la dimension «progressiste» me laisse fort perplexe.
      Le second schéma d'analyse problématique, c'est celui qui concerne la nature de l'hyper-puissance américaine. (...) C'est une chose légitime que d'expliquer l'intervention américaine en Irak par le poids du lobby pétrolier et les profits escomptés par Halliburton; c'est une chose nettement moins acceptable d'expliquer que les attentats du 11 septembre sont le résultat d'un complot conjoint des néo-conservateurs (forcément juifs), des Skulls and Bones et du Mossad…
      (...)
      Que signifie aussi la rhétorique «indigéniste», celle des Indigènes de la République ou du Mouvement de l'Immigration et des Banlieues, qui trouve un écho complaisant à gauche de la gauche et qui enferme les français issus de l'immigration qui y adhèrent dans le ressassement sans fin du passé colonial et le ressentiment envers la France? Tout simplement, cela signifie qu'il existe un risque de voir le mouvement alter et la gauche radicale oublier la dimension proprement politique de leur lutte, celle qui devrait viser à l'instauration d'un ordre économique et social prenant davantage en compte les besoins des citoyens, au profit d'une véritable tyrannie de la diversité et des droits des groupes, qu'ils soient religieux, ethniques, linguistiques ou de genre, plutôt que des droits politiques, économiques et sociaux des individus.
      (...)»

      Ainda as alegações de extremismo

      O André Azevedo Alves insiste em acusar-me de estar na extrema-esquerda. Como ele não fornece quaisquer critérios para explicar o que entende por «extremo-» (esquerdo/direito), e eu já disse o que penso a esse respeito, nada mais há a acrescentar. A não ser que o Miguel Madeira (que me parece um anarco-comunista original) faz esta pergunta pertinente: «Se o Ricardo Alves é “extrema-esquerda”, eu sou o quê?». O André responde, ou repete outra vez o poste milimétrico a dizer que eu sou de «extrema-esquerda» sem explicar porquê?

      quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

      Steven Pinker: «The Decline of Violence»

      «In 16th century Paris, a popular form of entertainment was cat-burning, in which a cat was hoisted on a stage and was slowly lowered into a fire. According to the historian Norman Davies, "the spectators, including kings and queens, shrieked with laughter as the animals, howling with pain, were singed, roasted, and finally carbonized."

      As horrific as present-day events are, such sadism would be unthinkable today in most of the world. This is just one example of the most important and under appreciated trend in the history of our species: the decline of violence. Cruelty as popular entertainment, human sacrifice to indulge superstition, slavery as a labor-saving device, genocide for convenience, torture and mutilation as routine forms of punishment, execution for trivial crimes and misdemeanors, assassination as a means of political succession, pogroms as an outlet for frustration, and homicide as the major means of conflict resolution—all were unexceptionable features of life for most of human history. Yet today they are statistically rare in the West, less common elsewhere than they used to be, and widely condemned when they do occur.

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      (...)

      Anyone who doubts this by pointing to residues of force in America (capital punishment in Texas, Abu Ghraib, sex slavery in immigrant groups, and so on) misses two key points. One is that statistically, the prevalence of these practices is almost certainly a tiny fraction of what it was in centuries past. The other is that these practices are, to varying degrees, hidden, illegal, condemned, or at the very least (as in the case of capital punishment) intensely controversial. In the past, they were no big deal. Even the mass murders of the twentieth century in Europe, China, and the Soviet Union probably killed a smaller proportion of the population than a typical hunter-gatherer feud or biblical conquest. The world’s population has exploded, and wars and killings are scrutinized and documented, so we are more aware of violence, even when it may be statistically less extensive.

      What went right? No one knows, possibly because we have been asking the wrong question—"Why is there war?" instead of “Why is there peace?" There have been some suggestions, all unproven. Perhaps the gradual perfecting of a democratic Leviathan—"a common power to keep [men] in awe"—has removed the incentive to do it to them before they do it to us. Payne suggests that it’s because for many people, life has become longer and less awful—when pain, tragedy, and early death are expected features of one’s own life, one feels fewer compunctions about inflicting them on others. Wright points to technologies that enhance networks of reciprocity and trade, which make other people more valuable alive than dead. Singer attributes it to the inexorable logic of the golden rule: the more one knows and thinks, the harder it is to privilege one’s own interests over those of other sentient beings. Perhaps this is amplified by cosmopolitanism, in which history, journalism, memoir, and realistic fiction make the inner lives of other people, and the contingent nature of one’s own station, more palpable—the feeling that "there but for fortune go I."

      (...)»

      (Steven Pinker)

      terça-feira, 2 de janeiro de 2007

      A esquerda e a direita, o extremo e o centro

      O André Azevedo Alves d´O Insurgente diz que estou na «extrema esquerda». Curioso. Penso-me na esquerda sem prefixos: nem «extrema» nem «centro». (Quanto aos bancos, são mais seguros do que a gaveta lá de casa, mas nunca colocaria o meu carcanhol numa instituição que discriminou ostensivamente as mulheres...)
      Mas, já agora, esclareço que tento reservar o prefixo «extrema» para grupos políticos ou personalidades que rejeitem a democracia. Como o André Azevedo Alves não se cansa de apontar o «erro» da «visão exacerbada da democracia como um fim em si mesmo», penso que estará muito mais próximo do extremo (direito) do que um democrata como eu está do extremo (esquerdo).

      Leituras recomendadas (2/1/2007)

      1. «O referendo que aí vem não se destina a aprovar a IVG, pretende apenas descriminalizar o acto. A eventual vitória do SIM não incentiva ou promove o recurso à IVG, apenas modifica a lei, a fim de evitar que as mulheres sejam empurradas para a clandestinidade do vão de escada, com risco da própria vida e de perseguições policiais. (...) O que está em causa não é a posição ética sobre a interrupção voluntária da gravidez, até às dez semanas, é saber quem renuncia, ou não, à perseguição das mulheres, quem quer vê-las na cadeia, quem pretende juntar ao trauma da IVG a punição da enxovia.» («O referendo e a IVG», no Ponte Europa.)
      2. «Os meus filhos (têm 5 anos) uma vez no infantário disseram que deus não existe, e uma educadora disse-lhes para não dizerem disparates. Quando foram entregar brinquedos à igreja, agora pelo natal, o padre fê-los cantar uma canção de Jesus, deu-lhes um longo sermão a dizer que dar brinquedos aos pobres é o mesmo que dá-los a Jesus (mas não explicou o que um deus todo poderoso vai fazer com brinquedos em segunda mão), e no fim tiveram todos que beijar um boneco do menino nas palhinhas. Além de pouco higiénica, esta idolatria não respeita os não crentes. Os católicos não respeitam os não crentes da mesma forma como respeitam os crentes. Estou certo que se os meus filhos fossem hindus ou muçulmanos a educadora não tinha dito que Vishnu ou Allah era disparate, nem os tinham posto a beijar o boneco.» («Monstruosa obsessão», no Que Treta!.)

      Saddam foi morto à nossa frente

      Só me recordo de dois líderes políticos cujo cadáver tenha sido exibido na televisão após morte violenta: Jonas Savimbi e, agora, Saddam Hussein. No caso de Savimbi, presumia-se que morrera em combate, e todos vimos como foi pisado e tocado pelos soldados de Luanda. Saddam Hussein teve direito a ter a sua morte filmada, e juram-me que o seu estertor, filmado por um telemóvel, está disponível na inter-rede (não, não vou procurar). Sabemos que no cadafalso lhe gritaram vivas ao líder xiíta Muqtada al-Sadr, hoje provavelmente o homem mais poderoso do Iraque.
      É este o Estado de Direito que prometeram para o Iraque?