terça-feira, 5 de julho de 2005

O «politicamente correcto» nunca existiu

A direita portuguesa criou um dialecto do tipo novilíngua que ameaça tornar-se hegemónico. Neste dialecto, as palavras tomam o sentido contrário do seu significado original. Por exemplo, quando um usuário do dialecto afirma que o posicionamento político A ou B é «politicamente correcto», tal significa que está a criticá-lo por ser, na sua opinião, politicamente incorrecto. Coerentemente, quando os mesmos indivíduos se declaram «politicamente incorrectos», é porque pensam que são, do seu ponto de vista, politicamente correctos (chegado a este ponto, um cínico dirá que são invertidos). A trapalhada semântica agrava-se quando resolvem chamar «bem pensantes» àqueles que, na sua opinião, pensam mal. Espero com ansiedade o dia em que dêem o passo logicamente seguinte e passem a usar «mal pensado» como elogio...
Estas confusões paradoxais (mas divertidas) não teriam importância se não degradassem desnecessariamente a linguagem ao perverterem o significado original das palavras. Pessoalmente, fico sempre perplexo quando alguém é acusado de ser «politicamente correcto» («correcto» significa, segundo o dicionário, «irrepreensível; honesto; digno; apurado; emendado») e insultar alguém chamando-lhe «bem pensante» faz-me irresistivelmente reflectir no pouco esforço que quem assim insulta faz para exprimir-se e pensar bem (ou correctamente).
Curiosamente, a direita atribui a paternidade desta expressão tão sua querida («politicamente correcto»), à esquerda. Para se compreender porquê, é necessário remontar aos primórdios do seu uso.
Recordo-me de ver pela primeira vez a expressão «politicamente correcto» na revista do Expresso, sensivelmente a meio da década de 90 do século passado. Alegadamente, num país exótico do outro lado do Atlântico, existiria uma mania ideológica que consistiria em substituir expressões potencialmente insultuosas por outras que não o fossem. Até aqui, não consigo, ainda hoje, descortinar o que haveria de mal (ou de novo...), desde que essa substituição fosse inteiramente voluntária. Mas existem efectivamente alguns exemplos, quase todos de universidades norte-americanas, de imposição normativa de padrões de linguagem. No entanto, mesmo nos EUA a reacção tornou-se mais forte do que a acção, e qualquer busca no Google retorna esmagadoramente mais páginas contra o «politicamente correcto» (algumas bastante paranóicas: existe mesmo um livro que «prova» que o «plano original» do «politicamente correcto» foi concebido por Lenine, há mais de 80 anos!) do que a favor. É quase impossível encontrar alguém que defenda aquilo que é tão histericamente denunciado, o que leva a pensar que, mesmo nos EUA, o termo já denuncia outra coisa...
E no entanto, dos EUA a Portugal, a direita proclamou o dogma da existência de uma tentativa «totalitária» (mas sem exércitos nem polícia!) para asseptizar a linguagem, e começou a gritar histrionicamente contra, mesmo sendo este plano maquiavélico um fantasma.
Ora, em Portugal nunca existiu um esforço de organizações ou pessoas de esquerda, para alterar a linguagem, que justificasse a histeria da direita. Na realidade, o «politicamente correcto» nunca existiu em Portugal. (Quem não concorda comigo, fica desafiado a encontrar-me alguns textos em que se declare que esta ou aquela palavra é «politicamente incorrecta».) Este é um caso em que a caricatura não tem caricaturado, e portanto é ela própria caricaturável. O termo, porém, começou a ser usado pela direita para atacar qualquer política igualitária, e em seguida qualquer política de esquerda. A paternidade deste novilinguismo português é portanto direitista.
Numa evolução mais recente, espantosa e que creio ser exclusivamente portuguesa, «politicamente correcto» passou a ser sinónimo, no discurso jornalístico, de «politicamente cobarde», e o seu antónimo passou a sinónimo de «politicamente corajoso». Um exemplo espectacular da distorção final(?) é esta notícia, onde a intenção do jornalista seria (especulo eu...) dizer que a cimeira em causa foi politicamente sem novidades. O fenómeno ganhou uma vida própria e o simples adjectivo «correcto», mesmo quando precedido de outros advérbios, começa a ser sinónimo de cobardia: «mediaticamente correcto», por exemplo. É impossível prever onde irá parar esta degradação da língua portuguesa lançada e mantida pela direita.
Admirável novilíngua! Imagino que, dentro de alguns anos, os professores dirão aos alunos que «1+1=2» é «matematicamente incorrecto», que «distorsão» é «linguisticamente correcto» e que a coragem é «incorrecta». Será a vitória final do dialecto direitista!

4 comentários :

Sacha disse...

Acho muito interessante a sua abordagem "novilinguística" da questão do politicamente correcto.

Porém há um aspecto que me parece, embora mais óbvio e imediato, não deixa de ser importante:

Se como uso do termo "politicamente correcto",em portugal não tem, nem podia ter (como aliás bem explicou) a mesmo origem americana.Então porque é usado?

A meu ver tem haver com um apelo subliminar ao imaginário colectivo da juventude: É que "correcto" é tudo o que soa a chato, enfadonho, previsível.

Assim, a mensagem, o apelo da revolta contra o "politicamente correcto" e a colagem deste à esquerda não passa de um tentativa de entrar nesse imaginário querendo fazer crer que a esquerda é castradora da creatividade, da ambição, e da liberdade de pensamento.

Aquilo que a direita está a dizer é mais ou menos isto: Se es ambicioso e sabes que vives num mundo de concorrência, se sabes que tens de ser o melhor para chegar lá , não podes acreditar na menssagem politicamente correcta vinda da esquerda, ela é estimuladora da mediocridade, igualizadora do que não é igual. Tu sabes que não es igual aos outros. Tu tens cabeça e pensas por ti própio.

A meu ver é esta a mensagem falaciosa que a direita tenta impingir.

Ricardo Alves disse...

Sacha,
a sua interpretação é curiosa. Fez-me pensar...

xatoo disse...

um caso:
o Público empregou recentemente quando foi eleito o novo Presidente do Irão, a palavra "CONSERVADOR" numa caixa de capa que tinha o total de 9 linhas!
É obra, se atendermos que o homem é Revolucionário, (na medida em que defende a mesma linha de acção desde que puseram o Xá e a Oligarquia pró-americana a milhas,,,

xatoo disse...

adenda: aplicou a palavra "Conservador" TRÊS VEZES!