terça-feira, 1 de julho de 2025

A religião é uma liberdade, mas não um serviço público

A 2ª República portuguesa não tem religião oficial, não refere nenhuma religião na sua Constituição e, portanto, não existe qualquer religião que se possa presumir natural ou estrangeira para quem viva em Portugal. Todas as religiões são igualmente autorizadas, e praticá-las ou não é uma liberdade fundamental: a liberdade de consciência inclui o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar de religião ou de manter privada a opção religiosa.

Por outro lado, a Constituição impõe ao Estado o dever de assegurar serviços na educação, na saúde, na assistência social, na habitação económica, e até na cultura e no desporto, mas significativamente não impõe qualquer dever de subsidiar serviços religiosos.

Constitucionalmente, a religião é uma liberdade, mas não um serviço público.

Recentemente, os vereadores da Câmara Municipal de Benavente pronunciaram-se verbalmente contra a construção de uma mesquita em Samora Correia. Acontece que a construção de um templo, seja de que religião for, só depende de autorização camarária nos mesmos termos que outro qualquer edifício destinado a utilização pública. Se um dia o executivo de uma câmara municipal deliberar proibir a construção de locais de culto de uma ou várias religiões, mesmo que com a concordância maioritária dos munícipes, Portugal já não será um país livre.

Mais a norte, a Câmara Municipal do Porto decidiu ceder dois imóveis devolutos a duas associações islâmicas para construção de mesquitas, um apoio estimado em largas centenas de milhares de euros. Poucos dias depois, perante o desagrado da multidão das redes sociais, a Câmara recuou, tomando a decisão certa pela razão errada: decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora).

Continuemos pelo Porto: no mês anterior, Rui Moreira afirmara a sua determinação de «não (…) contribuir com o que quer que seja para a Igreja Católica» após a diocese se comportar como «um qualquer agente imobiliário» em vários negócios. E recordou que essa igreja goza do privilégio de explorar comercialmente monumentos nacionais. O episódio ilustra como os interesses das comunidades religiosas são muitas vezes bem deste mundo.

Há, aliás, numerosos casos de financiamento autárquico da construção ou reparação de igrejas católicas, contra os quais a Associação República e Laicidade tem protestado (recorde-se, por exemplo, os apoios à jornada da juventude católica em 2023).

Uma última paragem em Sintra, onde a justa separação entre o financiamento público a um refeitório e uma escola, e o financiamento privado a uma mesquita no mesmo edifício, não evitou que a extrema-direita que não critica o financiamento sistemático da Igreja Católica gritasse contra o inexistente financiamento a uma mesquita.

A concluir: a entrada de imigrantes não católicos e a manutenção de um regime de privilégio da Igreja Católica potenciam conflitos de religião, e a exposição de favoritismos e clientelismos religiosos.

O futuro será muito conflituoso, a menos que os responsáveis políticos tenham a coragem de aplicar um entendimento estrito da laicidade. Que significa reconhecer a liberdade de praticar qualquer religião (dentro dos limites legais), não subsidiar nenhuma, e separar rigorosamente o financiamento de atividades assistenciais (obviamente lícito) e o de atividades ou edifícios religiosos (ilícito).

(Ricardo Alves, Expresso, 1 de Julho de 2025)

sábado, 7 de junho de 2025

Esquerdas: do falhanço à renovação necessária

A esquerda teve nas eleições de 18 de Maio o seu pior resultado de sempre: tem menos de um terço dos deputados, o seu maior partido será, ineditamente, o terceiro em número de deputados, dois dos pequenos partidos de esquerda estão em mínimos históricos, enquanto o único que subiu, só após uma década ultrapassou os 4%. Pior: dada a rápida subida da extrema-direita, não parece impossível que o sistema partidário português, à semelhança de outros países europeus, se polarize entre esse extremo e um partido do centro, o que será inevitável se a imigração continuar a ser a motivação de uma grande parte do eleitorado.

Vale a pena analisar a estrutura eleitoral atual. O CH é o maior partido no eleitorado masculino abaixo dos 55 anos, sendo mais fraco apenas entre os diplomados do ensino superior; é mais forte nos concelhos com mais imigrantes, mais crime ou mais beneficiários do RSI. Pode caracterizar-se o seu eleitorado como «perdedores da globalização»: aqueles que se esperava que votassem à esquerda e pelo Estado social, mas que votam à direita e contra os imigrantes. A AD, que aspira ser o grande partido do centro, tem o eleitorado mais transversal, salientando-se apenas o seu apoio entre os diplomados do ensino superior, e nos concelhos mais católicos ou com mais empresas. Já o PS destaca-se por ter o eleitorado mais idoso, menos instruído e mais feminino. A IL e o LIVRE (partido do qual fomos fundadores e militantes até 2019) partilham um eleitorado muito jovem, instruído e urbano (especialmente onde as rendas são mais elevadas), mais masculino no primeiro caso.

A esquerda só conseguirá recuperar os votos perdidos para a direita e extrema-direita, se se dirigir às preocupações dos que se sentem esquecidos e excluídos. O país mudou, a estrutura socioeconómica alterou-se profundamente e a esquerda não acompanhou esta evolução, não compreendendo os cidadãos e usando uma linguagem tão académica que a mensagem não passa. Vejamos a questão do trabalho. A extrema-direita apresenta soluções fáceis para problemas complexos, fazendo o eleitor acreditar que se expulsar todos os imigrantes a economia recuperará por artes mágicas. E a esquerda não consegue combater estas ideias porque dirige-se principalmente aos trabalhadores que trabalham em grandes empresas, por conta de outrem ou são funcionários públicos. Na realidade, se consultarmos os últimos dados da Pordata, verificamos que o tecido empresarial em Portugal é composto por microempresas de menos de 10 trabalhadores, sendo a maioria até empresas unipessoais. São os cafés, as papelarias, os escritórios de contabilidade, as lojas de roupa que, em média, trabalham 41 horas por semana. Que propostas apresentou a esquerda para estes trabalhadores? Junte-se o número de falências de empresas que tem vindo a crescer desde 2022, e que deixa estes trabalhadores desamparados.

São os novos excluídos de uma esquerda que os ignora, tratando fiscalmente as micro e pequenas empresas como trata as grandes, ignorando completamente este tecido social e empresarial. Junte-se a proliferação de empresas de trabalho temporário, que celebram contratos com empresas de turismo, por exemplo, em que os trabalhadores não pertencem à empresa onde se apresentam para trabalhar, mas sim a outra onde são pagos pelos dias em que trabalham, sem folgas, sem extras, sem fins de semana. Onde está a esquerda para estes trabalhadores? Não será certamente a semana dos quatro dias que os motivará a votar. Onde está a esquerda que não vê que estes trabalhadores do turismo vivem das gorjetas, porque os ordenados são na ordem dos 929 euros mensais?

Onde está a esquerda que, sobre o problema da habitação, aponta o dedo apenas aos fundos imobiliários, que são um problema crescente, mas ainda residual, e não aplica medidas imediatas para baixar a prestação das casas pressionando a banca, permitindo que os juros com o crédito à habitação sejam deduzidos no IRS, possibilidade que terminou após 2010?

Onde estão as propostas da esquerda para os cidadãos endividados, que ao não conseguirem pagar os impostos ou prestações sociais, caem numa espiral de aumento de juros e de dívidas em que o Estado é apenas carrasco? Em 2024, as dívidas incobráveis diminuíram porque os cidadãos já não têm qualquer bem, ou valor líquido, para as liquidar.

Onde está a esquerda que abdicou da regionalização para ver as regiões mais esquecidas a votarem na extrema-direita?

Na verdade, onde está a esquerda? Não é por isso de estranhar que o voto na extrema-direita suba à custa do eleitorado do PS não apenas porque este não os entendeu, mas porque efetivamente os abandonou (o Estado social, só por si, não garante prosperidade). Partidos como o LIVRE sobem apenas porque captam o voto de cidadãos materialmente confortáveis, evidentemente longe de serem a maioria da população portuguesa. Para voltar a crescer, a esquerda terá de mudar estruturalmente as suas propostas perante os trabalhadores.

(Artigo de Ricardo Alves e Marisa Galiza no Observador, 6/6/2025)

domingo, 18 de maio de 2025

Um fim pode ser um princípio

A noite eleitoral de hoje pode ser o pior resultado de sempre para a esquerda: em 1987, a esquerda parlamentar teve 34% dos votos (e a direita parlamentar 55%), mas com um partido do centro (o PRD) com 5%. Hoje, a esquerda deverá ter cerca de um terço dos votos, e a direita quase dois terços. Pode até ter maioria de revisão constitucional, e à hora a que escrevo (com 95% dos votos contados) é possível que os dois maiores partidos em votos e mandatos sejam de direita.

A queda foi rápida: há pouco mais de três anos, a esquerda ainda tinha mais de metade dos votos, e uma maioria absoluta. O que aconteceu? A razão principal da ascensão da extrema direita é a imigração. Que é um filão inesgotável: mesmo que metade dos imigrantes saíssem de Portugal num ano (o que só aconteceria com uma crise económica muito grave), a extrema direita continuaria a exigir a saída dos que ficassem. A xenofobia é uma paixão insaciável.

À semelhança de boa parte da Europa, vamos ter o xadrez partidário polarizado entre a extrema-direita e o bloco central. Como acontece em França e na Alemanha, e pode acontecer no Reino Unido. Nesse cenário, os partidos à esquerda do PS (e a própria IL) tornam-se irrelevantes. Porque existiam para «completar» as maiorias do PS, arrancar cedências pontuais, e num regime de Bloco Central isso não será relevante.

O que fazer? Se houve uma mudança estrutural, a esquerda tem que se reestruturar. Tem que se reconstruir radicalmente. O que pode implicar novos partidos, federar alguns dos existentes, mas principalmente abrirem-se à sociedade civil. Porque não se pode continuar a fazer tudo como se fez até aqui.