quinta-feira, 31 de julho de 2025

O "acordo" entre os EUA e a UE

Na sua viagem à Escócia, Donald Trump encontrou-se com Ursula von der Leyen e ambos anunciaram as linhas mestras de um futuro acordo entre os EUA e a UE

Em primeiro lugar importa reforçar esta distinção: não há nenhum acordo sobre a mesa, menos ainda na iminência de ser aprovado. Tipicamente as negociações duram anos, mas o processo de aprovação pode durar muito mais. 
Isto significa que o verdadeiro acordo pode ter sido a de dar a Trump uma vitória simbólica e mediática ao criar a ilusão de que se irá assinar um acordo inquestionavelmente desfavorável para a União Europeia, acordo esse que nunca chegará a ser aprovado, e assim suspender as relações comerciais entre a UE e os EUA no actual status quo, que continua a ser desfavorável para a UE, mas em muito menor grau. O verdadeiro acordo seria um "cessar fogo" não assumido, enquanto se protela um processo negocial ou burocrático por pelo menos três anos, até a UE poder negociar com uma administração americana liderada por algo que se aproxime de um estadista; com eventuais "vinganças" resultantes de um número variado de queixas na Organização Mundial do Comércio (OMC) resultantes de todas as ilegalidades que a administração Trump tem cometido neste domínio.
Devo dizer que, mesmo que seja este o caso, não deixa de ser lamentável a postura da UE, por razões que desejo expor perto do final do texto. Para já, importa analisar o conteúdo do tal futuro acordo, de acordo com o que foi inicialmente declarado à imprensa. Estas são as linhas mestras, seguidas de alguns comentários:

-A UE compromete-se comprar energia dos EUA no valor de 750 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 3 anos. 
Para pormos este compromisso em perspectiva, importa aferir quanto é que a UE gasta em energia anualmente: 318 mil milhões de dólares, dos quais 76 mil milhões de dólares são comprados aos EUA. Ora mesmo que o compromisso fosse no sentido de manter o mesmo volume de compras, sem que se previssem quaisquer flutuações na procura, ele seria extremamente prejudicial para a UE, com um impacto fortemente negativo para os preços da energia (se um vendedor sabe que o comprador está contratualmente obrigado a adquirir uma determinada quantidade do seu produto, tem fortes incentivos para aumentar o preço). Ao invés, o compromisso seria no sentido de aumentar a dependência que a UE tem face aos EUA de cerca de 24% para cerca de 80% (ou mais ainda, tendo em conta as obrigações de reduzir o consumo de combustíveis fósseis), criando vulnerabilidades perigosas ao nível geopolítico e devastando o sector industrial europeu com preços energéticos incomportáveis. 
Também não é claro como é que, do ponto de vista legal, um acordo comercial poderia impôr uma obrigação deste calibre aos actores privados. Mesmo que não violasse as regras da OMC (e obviamente viola), ultrapassaria as competências das instituições europeias envolvidas na aprovação do acordo. 

-A UE compromete-se a aumentar o investimento nos EUA em 600 mil milhões de dólares.
O contexto onde surge este compromisso não poderia ser mais irónico. Ainda não faz sequer um ano desde a publicação do relatório Draghi, cujo diagnóstico parece ter sido bem acolhido pelas instituições europeias. Ora o relatório alega que a UE sofre de um grave problema de competitividade, que é necessário um volume anual de investimento de 800 mil milhões de euros (912 mil milhões de dólares), e detém-se sobre as dificuldades em alcançar esse montante, e as reformas e sacrifícios necessários para ter a esperança de atingir esses valores. Concordemos ou não com o conteúdo do relatório, há, da parte das instituições europeias, uma enorme inconsistência entre aceitar as conclusões do relatório e dar início às reformas que propõe para depois impossibilitar o seu sucesso com este tipo de compromissos. 
Acrescidamente, considerando que se trata de investimento privado, as mesmas questões legais referidas no ponto anterior também se aplicam a este.

 -A UE compromete-se a aumentar os gastos em equipamento militar americano.
Embora não tenha encontrado montantes que enquadrem este compromisso, trata-se também de um compromisso de elevada gravidade, e não apenas pelas questões legais evidentes (são os Estados-membros que tomam as decisões relativas aos gastos em equipamento militar, não é uma competência da UE). Antes de Trump iniciar este mandato, já Macron tinha toda a razão na necessidade da UE ter algum grau de autonomia estratégica, quer pela política externa beligerante e agressiva que os EUA vinham mantendo, e postura prepotente e criminosa patente na recusa em aderir ao Tribunal Penal Internacional, mas também pelo evidente risco - que se veio a materializar - de vitória da extrema direita. Assim sendo, já seria importante ir reduzindo gradualmente o volume de compras de material militar aos EUA. 
No entanto, a vitória de Trump elevou os perigos da dependência militar face aos EUA a novos níveis, principalmente com a insistência reiterada nas ameaças militares à Gronelândia (que acompanharam ameaças a países como o Panamá e o Canadá, estas últimas relativamente mais discretas), um território que faz parte do Reino da Dinamarca, um Estado-membro da UE. 
Dado este contexto, as compras militares aos EUA deveriam diminuir tão rápido quanto exequível sem disrupções militares muito graves. Compreende-se que se vá comprando algum equipamento que a UE não produz, enquanto vamos criando capacidade industrial para diminuir essa dependência, mas qualquer compra de equipamento militar americano que não seja estritamente necessária não constitui apenas uma miopia irresponsável e perigosa, mas também um insulto a todos os dinamarqueses, que nos poderá custar caro. Nesse sentido, este compromisso é grave independentemente dos montantes envolvidos, pois assegura uma recusa de implementar a fortíssima redução de compras que se impõe. 

 -A UE baixa as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 0%, os EUA sobem as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 15%. 
Isto significa que os EUA conseguem obter alguma receita fiscal que incide parcialmente sobre os consumidores americanos, e parcialmente sobre os produtores europeus (a proporção depende da elasticidade das curvas de procura e oferta de cada produto), ou seja, poderão hipoteticamente conseguir uma receita fiscal que ultrapasse aquilo que os seus cidadãos pagam. Na UE faz-se o oposto, escolhe-se aceitar esta assimetria que torna a indústria europeia contribuinte líquida para o orçamento dos EUA. No curto prazo trata-se de uma espécie de "tributo" que os europeus pagam ao governo dos EUA; no longo prazo viria reforçar a narrativa relativa à eficácia de uma liderança política de extrema direita, destruindo em simultâneo a crença de que a coesão europeia conduz a melhores acordos comerciais. A nível comercial, isto vem convidar um acentuar deste tipo de assimetrias. A nível político, vem degradar a integração europeia e a confiança das instituições, bem como o apreço pela Democracia.

É nesta nota que importa dizer o seguinte: mesmo que o acordo nunca venha a ter lugar, a ilusão de que se trata de algo que a UE aceitaria tem em si uma gravidade imensa, num ambiente político onde a extrema direita está em ascensão e o apreço pelas instituições democráticas em declínio; perder esta oportunidade de aumentar a coesão europeia e tornar claro para a população europeia a importância de algum grau de integração política para evitarmos ser dominados por superpotências como os EUA e a China - e ao invés criar a percepção diametralmente oposta - tem uma gravidade bem superior a um declínio temporário nas relações comerciais atlânticas. Mesmo que a ideia seja não aprovar o acordo, este triste espectáculo de fingir que sim mostra uma preocupante miopia por parte dos nossos líderes políticos, sobrevalorizando os impactos económicos de curto prazo face à sobrevivência das condições estruturais (confiança nas instituições, respeito pelo estado de direito, etc.) que garantem algum grau de prosperidade. Devo dizer que alguns desmentidos da Comissão Europeia quanto às três primeiras condições descritas, longe de me provocar algum tipo de alívio, reforçam a desconfiança e o receio. Ao não estarem presentes em nenhum acordo escrito tornam mais plausível a aprovação do que estiver escrito, já de si para lá do razoável ou sequer aceitável, e colocam dúvidas sobre a existência de compromissos informais "por baixo da mesa" que venham a condicionar de forma não escrutinável a política europeia. Mesmo que nada disso aconteça, a percepção pública sobre esta negociação não melhora.  

Tenho lido por vezes alguma compreensão para com esta capitulação revoltante, alegando-se que os EUA estariam numa posição negocial mais forte, dado o défice comercial que vinham mantendo com a UE. Alega-se que uma guerra comercial iria favorecer os EUA na medida em que taxas aduaneiras muito elevadas de parte a parte iriam ter um impacto muito mais perverso sobre os exportadores europeus do que sobre os exportadores americanos. 
Este argumento parece-me completamente equivocado. Bem pelo contrário, a União Europeia estava perante um contexto negocial particularmente desejável, e muito mais favorável que o americano. 

Um indício do seu equívoco é olhar para 2022, quando a Rússia deu início à invasão em larga escala da Ucrânia. Como sabemos, a relação comercial entre a Rússia e a UE era extremamente assimétrica, sendo a UE o parceiro comercial deficitário. Além de um forte volume das relações comerciais no qual a Rússia era o parceiro superavitário, a flexibilidade da Rússia para encontrar outros clientes era muito inferior à da Europa para encontrar outros fornecedores, dada a inexistência de infra-estrutura necessária para liquefazer muito do gás exportado para a Europa, que não pode ter outros compradores (inicialmente também faltava às economias europeias infra-estrutura para comprar maiores quantidades de gás liquefeito, mas essa insuficiência foi rapidamente suprida). De acordo com esse argumento, a UE rapidamente poria a Federação Russa de joelhos, dada a força negocial que advém de uma balança comercial deficitária. Ao invés, nas fases iniciais da guerra foi a Rússia quem ameaçou (e por vezes cumpriu) interromper os fluxos comerciais, o que repetidamente condicionou a política europeia.

A realidade é que se é verdade que taxas aduaneiras elevadas iria prejudicar muito mais os exportadores europeus do que os exportadores americanos (tendo em conta a balança comercial deficitária dos EUA), pela mesma razão iriam prejudicar muito mais os consumidores americanos do que os consumidores europeus. Esta situação seria particularmente (e assimetricamente) desfavorável a Donald Trump tendo em consideração que a expectativa de que a sua administração fosse mais eficaz no combate à inflação foi uma das causas mais importantes da sua eleição. Mesmo que não tivesse sido esse o caso, e mesmo que os impactos inflacionários fossem iguais dos dois lados do Atlântico, ainda assim teríamos uma outra assimetria favorável à UE, pelo facto de Trump ter iniciado esta guerra comercial: enquanto que eventuais impactos inflacionários elevados sentidos nos EUA na sequência de uma guerra comercial seriam lidos como sendo da responsabilidade de Trump, que a iniciou, qualquer impacto económico perverso sentido na Europa (nos preços, no emprego, nas exportações) iria ser encarado politicamente com maior compreensão, como uma custosa mas necessária defesa perante uma agressão não provocada. Foi isso que se viu no Canadá, na Austrália, e mais recentemente no Brasil: os eleitores recompensarem politicamente os líderes que percepcionam como tendo a coragem de enfrentar o bullying de Trump. Dentro de um ano os EUA vão realizar eleições intercalares nas quais Trump se arrisca a perder a maioria do Congresso (o que até poderia abrir portas à sua destituição), pelo que é Trump quem não tem condições políticas para enfrentar taxas aduaneiras muito elevadas com o seu principal parceiro comercial. 

Bem pelo contrário. Se a UE reconhece (e bem) a necessidade de reformar a legislação relativa ao mercado dos serviços digitais no sentido de melhor proteger a sua soberania (naturalmente de forma desfavorável às multinacionais americanas no sector), seriam de compreender hesitações em avançar num contexto onde se esperaria uma retaliação dos EUA que fosse disruptiva face às relações comerciais entre os dois blocos com prejuízos económicos de parte a parte cuja culpa seria colocada nos líderes europeus, vistos como quem iniciou o conflito. Mas eis que Trump ofereceu à UE uma excelente oportunidade: ao iniciar as hostilidades com as taxas aduaneiras a 10%, permitiu que a UE pudesse fazer o que tem de ser feito para garantir a nossa segurança e soberania, permitindo enquadrar aos olhos da população tal legislação como "retaliatória", e precisamente num contexto onde qualquer grau de escalada do conflito seria muito menos comportável por parte de Trump, dadas as assimetrias mencionadas. Pelo caminho, iria fortalecer-se a identidade europeia, que ganha força precisamente no contexto de agressões externas, e a confiança nas instituições. 

Foi esta a oportunidade que, por gritante cobardia, os nossos líderes à escala europeia decidiram perder. 
Urge suprir o défice democrático europeu. 

terça-feira, 1 de julho de 2025

A religião é uma liberdade, mas não um serviço público

A 2ª República portuguesa não tem religião oficial, não refere nenhuma religião na sua Constituição e, portanto, não existe qualquer religião que se possa presumir natural ou estrangeira para quem viva em Portugal. Todas as religiões são igualmente autorizadas, e praticá-las ou não é uma liberdade fundamental: a liberdade de consciência inclui o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar de religião ou de manter privada a opção religiosa.

Por outro lado, a Constituição impõe ao Estado o dever de assegurar serviços na educação, na saúde, na assistência social, na habitação económica, e até na cultura e no desporto, mas significativamente não impõe qualquer dever de subsidiar serviços religiosos.

Constitucionalmente, a religião é uma liberdade, mas não um serviço público.

Recentemente, os vereadores da Câmara Municipal de Benavente pronunciaram-se verbalmente contra a construção de uma mesquita em Samora Correia. Acontece que a construção de um templo, seja de que religião for, só depende de autorização camarária nos mesmos termos que outro qualquer edifício destinado a utilização pública. Se um dia o executivo de uma câmara municipal deliberar proibir a construção de locais de culto de uma ou várias religiões, mesmo que com a concordância maioritária dos munícipes, Portugal já não será um país livre.

Mais a norte, a Câmara Municipal do Porto decidiu ceder dois imóveis devolutos a duas associações islâmicas para construção de mesquitas, um apoio estimado em largas centenas de milhares de euros. Poucos dias depois, perante o desagrado da multidão das redes sociais, a Câmara recuou, tomando a decisão certa pela razão errada: decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora).

Continuemos pelo Porto: no mês anterior, Rui Moreira afirmara a sua determinação de «não (…) contribuir com o que quer que seja para a Igreja Católica» após a diocese se comportar como «um qualquer agente imobiliário» em vários negócios. E recordou que essa igreja goza do privilégio de explorar comercialmente monumentos nacionais. O episódio ilustra como os interesses das comunidades religiosas são muitas vezes bem deste mundo.

Há, aliás, numerosos casos de financiamento autárquico da construção ou reparação de igrejas católicas, contra os quais a Associação República e Laicidade tem protestado (recorde-se, por exemplo, os apoios à jornada da juventude católica em 2023).

Uma última paragem em Sintra, onde a justa separação entre o financiamento público a um refeitório e uma escola, e o financiamento privado a uma mesquita no mesmo edifício, não evitou que a extrema-direita que não critica o financiamento sistemático da Igreja Católica gritasse contra o inexistente financiamento a uma mesquita.

A concluir: a entrada de imigrantes não católicos e a manutenção de um regime de privilégio da Igreja Católica potenciam conflitos de religião, e a exposição de favoritismos e clientelismos religiosos.

O futuro será muito conflituoso, a menos que os responsáveis políticos tenham a coragem de aplicar um entendimento estrito da laicidade. Que significa reconhecer a liberdade de praticar qualquer religião (dentro dos limites legais), não subsidiar nenhuma, e separar rigorosamente o financiamento de atividades assistenciais (obviamente lícito) e o de atividades ou edifícios religiosos (ilícito).

(Ricardo Alves, Expresso, 1 de Julho de 2025)

sábado, 7 de junho de 2025

Esquerdas: do falhanço à renovação necessária

A esquerda teve nas eleições de 18 de Maio o seu pior resultado de sempre: tem menos de um terço dos deputados, o seu maior partido será, ineditamente, o terceiro em número de deputados, dois dos pequenos partidos de esquerda estão em mínimos históricos, enquanto o único que subiu, só após uma década ultrapassou os 4%. Pior: dada a rápida subida da extrema-direita, não parece impossível que o sistema partidário português, à semelhança de outros países europeus, se polarize entre esse extremo e um partido do centro, o que será inevitável se a imigração continuar a ser a motivação de uma grande parte do eleitorado.

Vale a pena analisar a estrutura eleitoral atual. O CH é o maior partido no eleitorado masculino abaixo dos 55 anos, sendo mais fraco apenas entre os diplomados do ensino superior; é mais forte nos concelhos com mais imigrantes, mais crime ou mais beneficiários do RSI. Pode caracterizar-se o seu eleitorado como «perdedores da globalização»: aqueles que se esperava que votassem à esquerda e pelo Estado social, mas que votam à direita e contra os imigrantes. A AD, que aspira ser o grande partido do centro, tem o eleitorado mais transversal, salientando-se apenas o seu apoio entre os diplomados do ensino superior, e nos concelhos mais católicos ou com mais empresas. Já o PS destaca-se por ter o eleitorado mais idoso, menos instruído e mais feminino. A IL e o LIVRE (partido do qual fomos fundadores e militantes até 2019) partilham um eleitorado muito jovem, instruído e urbano (especialmente onde as rendas são mais elevadas), mais masculino no primeiro caso.

A esquerda só conseguirá recuperar os votos perdidos para a direita e extrema-direita, se se dirigir às preocupações dos que se sentem esquecidos e excluídos. O país mudou, a estrutura socioeconómica alterou-se profundamente e a esquerda não acompanhou esta evolução, não compreendendo os cidadãos e usando uma linguagem tão académica que a mensagem não passa. Vejamos a questão do trabalho. A extrema-direita apresenta soluções fáceis para problemas complexos, fazendo o eleitor acreditar que se expulsar todos os imigrantes a economia recuperará por artes mágicas. E a esquerda não consegue combater estas ideias porque dirige-se principalmente aos trabalhadores que trabalham em grandes empresas, por conta de outrem ou são funcionários públicos. Na realidade, se consultarmos os últimos dados da Pordata, verificamos que o tecido empresarial em Portugal é composto por microempresas de menos de 10 trabalhadores, sendo a maioria até empresas unipessoais. São os cafés, as papelarias, os escritórios de contabilidade, as lojas de roupa que, em média, trabalham 41 horas por semana. Que propostas apresentou a esquerda para estes trabalhadores? Junte-se o número de falências de empresas que tem vindo a crescer desde 2022, e que deixa estes trabalhadores desamparados.

São os novos excluídos de uma esquerda que os ignora, tratando fiscalmente as micro e pequenas empresas como trata as grandes, ignorando completamente este tecido social e empresarial. Junte-se a proliferação de empresas de trabalho temporário, que celebram contratos com empresas de turismo, por exemplo, em que os trabalhadores não pertencem à empresa onde se apresentam para trabalhar, mas sim a outra onde são pagos pelos dias em que trabalham, sem folgas, sem extras, sem fins de semana. Onde está a esquerda para estes trabalhadores? Não será certamente a semana dos quatro dias que os motivará a votar. Onde está a esquerda que não vê que estes trabalhadores do turismo vivem das gorjetas, porque os ordenados são na ordem dos 929 euros mensais?

Onde está a esquerda que, sobre o problema da habitação, aponta o dedo apenas aos fundos imobiliários, que são um problema crescente, mas ainda residual, e não aplica medidas imediatas para baixar a prestação das casas pressionando a banca, permitindo que os juros com o crédito à habitação sejam deduzidos no IRS, possibilidade que terminou após 2010?

Onde estão as propostas da esquerda para os cidadãos endividados, que ao não conseguirem pagar os impostos ou prestações sociais, caem numa espiral de aumento de juros e de dívidas em que o Estado é apenas carrasco? Em 2024, as dívidas incobráveis diminuíram porque os cidadãos já não têm qualquer bem, ou valor líquido, para as liquidar.

Onde está a esquerda que abdicou da regionalização para ver as regiões mais esquecidas a votarem na extrema-direita?

Na verdade, onde está a esquerda? Não é por isso de estranhar que o voto na extrema-direita suba à custa do eleitorado do PS não apenas porque este não os entendeu, mas porque efetivamente os abandonou (o Estado social, só por si, não garante prosperidade). Partidos como o LIVRE sobem apenas porque captam o voto de cidadãos materialmente confortáveis, evidentemente longe de serem a maioria da população portuguesa. Para voltar a crescer, a esquerda terá de mudar estruturalmente as suas propostas perante os trabalhadores.

(Artigo de Ricardo Alves e Marisa Galiza no Observador, 6/6/2025)

domingo, 18 de maio de 2025

Um fim pode ser um princípio

A noite eleitoral de hoje pode ser o pior resultado de sempre para a esquerda: em 1987, a esquerda parlamentar teve 34% dos votos (e a direita parlamentar 55%), mas com um partido do centro (o PRD) com 5%. Hoje, a esquerda deverá ter cerca de um terço dos votos, e a direita quase dois terços. Pode até ter maioria de revisão constitucional, e à hora a que escrevo (com 95% dos votos contados) é possível que os dois maiores partidos em votos e mandatos sejam de direita.

A queda foi rápida: há pouco mais de três anos, a esquerda ainda tinha mais de metade dos votos, e uma maioria absoluta. O que aconteceu? A razão principal da ascensão da extrema direita é a imigração. Que é um filão inesgotável: mesmo que metade dos imigrantes saíssem de Portugal num ano (o que só aconteceria com uma crise económica muito grave), a extrema direita continuaria a exigir a saída dos que ficassem. A xenofobia é uma paixão insaciável.

À semelhança de boa parte da Europa, vamos ter o xadrez partidário polarizado entre a extrema-direita e o bloco central. Como acontece em França e na Alemanha, e pode acontecer no Reino Unido. Nesse cenário, os partidos à esquerda do PS (e a própria IL) tornam-se irrelevantes. Porque existiam para «completar» as maiorias do PS, arrancar cedências pontuais, e num regime de Bloco Central isso não será relevante.

O que fazer? Se houve uma mudança estrutural, a esquerda tem que se reestruturar. Tem que se reconstruir radicalmente. O que pode implicar novos partidos, federar alguns dos existentes, mas principalmente abrirem-se à sociedade civil. Porque não se pode continuar a fazer tudo como se fez até aqui.