terça-feira, 11 de abril de 2023

Se adormecemos no banho é porque a temperatura da água está boa

Numa comunicação apresentada no Instituto "Mais Liberdade" e reproduzida na forma de ensaio no suplemento P2 do PÚBLICO de 19 de Março, João Miguel Tavares estabelece uma metáfora entre o equilíbrio no confronto das forças e ideias políticas e a temperatura ideal da água para tomar banho. Embora o autor faça dessa metáfora quase um programa político, a mesma parece-me bastante simplista e redutora. Para esta conclusão, basta considerar alguns casos onde ela é aplicada referidos no mesmo artigo. 
Com efeito, a temperatura com a qual se atinge o conforto térmico, salvo pequenas variações, é mais ou menos a mesma para todos os seres humanos. Pode haver pessoas mais e menos friorentas ou encaloradas, mas é seguramente muito mais fácil encontrar um consenso para a temperatura da água do banho do que para uma política a seguir. Não é preciso um grande conhecimento de canalização para regular a temperatura da água do banho: com torneiras e esquentador funcionais é um problema simples. Mas governar é tudo menos simples, e uma das razões para isso é a enorme disparidade de ideias e pontos de vista, não traduzíveis numa dicotomia simplista de água fria ou quente. (É curioso que o autor classifique como redutora a dicotomia esquerda-direita, para depois acabar por resumir o seu pensamento político a uma dicotomia bem mais redutora.) Genericamente, a "metáfora do duche" parece pretender defender as virtudes do compromisso político. Essas virtudes são bem reconhecidas, mas esse compromisso tem que se estabelecer com base em convergências e pontos de vista comuns. Esses pontos de vista nunca são universais. 
 A primeira falha da metáfora está neste ponto: Tavares pretende convencer-nos de que toda a gente deve partilhar a bondade das suas ideias, como se fosse a temperatura da água do banho (daí o título: Portugal precisa de abrir a água fria, como se fosse um facto). Para nos demonstrar essa bondade e que ele próprio é um "centrista moderado" que toma banho em água morna, Tavares manifesta a sua admiração por Obama e demarca-se do pior dos EUA, o capitalismo selvagem e a total ausência de um Estado Social ou, na sua metáfora, a água gelada. Para os EUA Tavares aceita, portanto, um duche de água quente. Pela mesma lógica da metáfora, o duche de água fria deveria destinar-se a países com a água muito quente. O curioso é que os exemplos do que seria água muito quente são muito genéricos: países "de constituição de matriz marxista". Na verdade, Tavares defende que em Portugal se abra a torneira da água fria, mas não julga que a temperatura da água do banho esteja muito alta! É o próprio autor que reconhece - e acusa - o governo e a esquerda que antes o apoiava de manterem o país "adormecido", ou seja, necessariamente em conforto térmico. Não que eu concorde com este diagnóstico, pelo menos no presente, mas o que me importa aqui sublinhar é que Tavares defende que baixemos a temperatura da água do nosso banho, não por esta estar excessivamente quente, mas por achar que devemos tomar banho em água mais fria, independentemente de vivermos numa casa com aquecimento central, numa casa sem conforto térmico ou de sermos sem-abrigo. Esta opinião do autor é democrática e legítima, mas é uma opinião. Querer disfarçá-la como moderada, "de centro" e de equilíbrio é que me parece enganador e errado. 
A justificação para esta opinião é a habitual ("não há dinheiro"), mas mais uma vez disfarçada: "a esquerda é mais cara do que a direita". Leia-se: não há dinheiro para conforto térmico para todos; há quem, tendo aquecimento central em casa, não queira mais contribuir para o aquecimento geral da água do banho. A política do governo de Passos Coelho é descrita como tendo-se limitado a aplicar o memorando da troika e não podendo ter procedido de forma diferente (mesmo tendo em conta a miséria, o desemprego e a emigração em valores recorde): nas palavras de Tavares, tudo isso foi um "duche de água fria obrigatório", preferindo assim ignorar os aspetos desse duche que apesar de tudo não eram nada obrigatórios: nomeadamente as privatizações, muito além do previsto, e os cortes nos salários e nas pensões, que a troika exigiu que fossem temporários mas que Passos quis tornar permanentes. 
Só estes exemplos bastariam para demonstrar que, ao contrário do que Tavares vem afirmando há mais de dez anos, as políticas do governo de Passos foram uma opção ideológica (de direita), e não uma inevitabilidade. Se João Miguel Tavares não consegue ver isto, é porque provavelmente para si não há opção às políticas de direita: tais políticas são sempre uma inevitabilidade. É por isso que classifica as suas propostas como centristas e moderadas, quando de centristas e moderadas não têm nada. Tenta apresentá-las como um duche de água fria quando na verdade pretende baixar definitivamente a temperatura, independentemente do conforto térmico dos portugueses. A metáfora "Portugal precisa de abrir a torneira de água fria" traduz-se de uma forma muito mais simples, menos enganadora, como "só sairemos desta situação empobrecendo". Onde é que já ouvimos isto?

1 comentário :

tempus fugit à pressa disse...

não sei onde ouvimos iste, mas num país que terá em breve 4 milhões de sexagenários e outros mais velhinhos nã parece que enriqueça muito, só se aparecer uma revoada de unicórnios como quer o moedas