quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A "Obsessão" do Défice e a "Nova Teoria Monetária"


A revista "A Gralha" publicou um artigo que escrevi chamado "A Obsessão do Défice".

Nele argumento que a preocupação com a consolidação orçamental é a única forma de alcançar objectivos de esquerda no médio/longo prazo, e que a esquerda deveria ser mais «obcecada com o défice» do que a direita.

O argumento principal é que receitas fiscais superiores às despesas correntes (e depreciação) aumentam o património público e vice-versa.

Depois, tal como um património positivo tende a originar rendimentos, que podem aliviar a carga fiscal, um património negativo tem associados encargos, que vão acentuar a carga fiscal. Como uma proporção relevante das receitas fiscais do Estado provém de impostos sobre o trabalho, um Estado cujo património líquido seja muito negativo é um Estado que cobra impostos aos trabalhadores para pagar juros aos credores, redistribuindo do factor trabalho para o factor capital, exactamente o oposto daquilo que a esquerda tenciona fazer.

No texto esclareço o que está em causa é o saldo médio, não existência de políticas contra-cíclicas (que se recomendam). Também argumento que, por muitas críticas justas e legítimas ao euro e BCE, este mecanismo teria lugar (e teve lugar, e frequentemente tem lugar) em contextos de completa autonomia monetária.

O texto nunca refere a "Nova Teoria Monetária" (NTM), mas queria dizer ainda algumas palavras sobre a relação entre essas ideias e as do texto (carregue em "ler mais" para continuar). 



Este texto parece opor-se à NTM, mas na realidade eu não tenho muito a apontar - em termos descritivos - à NTM pois parece-me que muito do que esta teoria defende corresponde exactamente ao que é defendido pela teoria neoclássica, simplesmente com um foco diferente. Naquilo em que esta teoria se diz opor à teoria neoclássica, em termos descritivos, existe ou uma distorção do que é a teoria neoclássica (por exemplo, quando alega que a teoria neoclássica diz que a inflação vem apenas das questões associadas à procura agregada; enquanto a NTM reconhece a importância da oferta agregada; quando na verdade a teoria neoclássica apenas diz que é da discrepância entre ambas que pode vir o problema, e a NTM se formos bem a ver diz o mesmo); ou uma questão com pouca relevância efectiva (por exemplo, a NTM insiste que o estado gasta o dinheiro primeiro e depois é que o cobra em impostos; uma observação que a meu ver tem a relevância de dizer que o ovo vem antes da galinha e não o oposto: num ciclo contínuo de ovos e galinhas ao longo de milénios, pode ter alguma importância histórica saber quem veio primeiro, mas pouco mais). 

Já em termos prescritivos, a NTM é compatível com políticas de esquerda no médio-longo prazo apenas se os tais "défices continuados" corresponderem a bom investimento público líquido de depreciação superior a esses défices. Nesse caso é possível ter o património público a aumentar de forma sustentada. A tendência natural, no entanto, é a oposta: saldos orçamentais negativos tendem a estar associados a receitas inferiores à soma da despesa corrente com a depreciação. Saldos orçamentais negativos tendem a estar associados a um património público decrescente, algo que é o oposto de um objectivo de esquerda de médio/longo prazo no actual contexto. 

Pelo contrário: a afirmação de que saldos orçamentais positivos continuados correspondem a um endividamento do sector privado, como se fosse algo preocupante, exige alguma reflexão. Vejamos: é perfeitamente compatível que o sector privado esteja a aumentar o seu património num contexto de saldos orçamentais positivos: basta que o consumo privado (somado à depreciação do património privado) seja inferior ao rendimento disponível, algo que se verifica em praticamente todas as economias, praticamente sempre. Se o sector privado está a aumentar o seu património e a endividar-se, isso apenas nos diz que o investimento é superior às poupanças, algo que dificilmente traz problemas de cariz macroeconómico (se trouxer outros, deve existir legislação específica para os combater). Em resultado desse endividamento privado, parte dos lucros desse investimento vai ser distribuído dos investidores para o colectivo. Porque é que isto seria considerado indesejável pela esquerda? Saldos orçamentais positivos continuados não tem nada de insustentável ou indesejável, de uma perspectiva de esquerda. O oposto sim. 

Sem comentários :