domingo, 25 de agosto de 2019

Pelos seus frutos os conhecereis? O paradoxo das ditaduras comunistas

Um prefácio que se impõe a este texto é o de que eu pessoalmente não sou marxista. Li os dois primeiros volumes do Capital e considero ambos uma leitura muito interessante, mas não estou de acordo com a análise que Marx faz da realidade em vários aspectos cruciais.

Dito isto, e sendo verdade que hoje o panorama do pensamento e ideologia marxista é extremamente amplo e diverso, é notável que uma enorme proporção (que me parece mais do que maioritária, mas nem insisto nesse ponto - é inequívoco que será uma proporção relevante) não só não tem propensões autoritárias, como inclusivamente tende a ter propensões anti-autoritárias, e em muitos casos inequivocamente libertárias.

Mas neste caso impõe-se a questão: então porque é que quando um partido ou movimento comunista conquistou o poder, sempre ou quase sempre o exerceu de forma extremamente autoritária ou mesmo totalitária?
Muitos anti-marxistas têm a resposta: "pelos seus frutos os conhecereis". O pensamento marxista - afirmam - é intrinsecamente e inexoravelmente autoritário, por muito que afirme o oposto, e a prova está aí: se tantos e tão diversos movimentos marxistas diferentes, todos eles (ou certamente quase todos eles) exerceram o poder de forma tão autoritária, temos uma "amostragem" mais que suficiente para concluir que o marxismo é intrinsecamente autoritário.

Eu creio que existe neste argumento um erro crasso. Aquilo que se chama em estatística "um problema de selecção da amostra".

Vejamos o seguinte, imaginemos que eu estou a debater com um amigo qual o perfil das pessoas que gostariam de ter um Ferrari. Vamos supor que ele defende que 95% das pessoas que gostariam de ter um Ferrari têm um rendimento mensal superior a 2000€ por mês, enquanto que eu alegaria que a proporção de pessoas com rendimentos inferiores que quer ter um Ferrari é muito superior a 5% do total de pessoas com essa vontade. Agora imaginemos que o meu amigo apresenta como prova o facto das pessoas que efectivamente compraram um Ferrari terem, 95% delas, um rendimento superior aos tais 2000€. É fácil identificar o erro da "prova": a amostra das pessoas que adquiriam o automóvel não é uma amostra aleatória das pessoas que o desejam. Um rendimento elevado aumenta a probabilidade de aquisição dado que essa vontade já existe.
Na verdade, tanto quanto sabemos, as pessoas nessa categoria de rendimento podiam ser apenas 2% das que quer comprar um Ferrari, e ainda assim 95% das que efectivamente o compram.
Este erro - assumir a amostra como aleatória - distorce completamente as conclusões que o hipotético e falacioso amigo tira dos dados a que tem acesso.

Voltemos ao marxismo. A "população" de partidos e movimentos marxistas será muito diversa, e existirá uma proporção com tendências mais autoritárias e uma proporção com tendências mais anti-autoritárias.
Sucede-se que em Democracia a população geralmente tende a desgostar de propostas que apresentem um projecto de transformação social muito rápido, amplo e imprevisível. Há N razões psicológicas e sociais que explicam esta tendência, mas a verdade é que muito raramente conquista o poder por via democrática quem propõe transformações económicas radicais, principalmente se não for apoiado à partida por fortes interesses económicos.
Este contexto torna quase impossível um movimento marxista com tendências anti-autoritárias conquistar o poder.
Para um movimento marxista com tendências autoritárias, no entanto, existem outras formas de conquistar e manter o poder que não exigem a conivência da maioria da população.
Assim, quando olhamos para o panorama de movimentos marxistas que conquistaram o poder não vemos uma amostra dos movimentos marxistas em geral.

Assim sendo, não seria expectável que se um partido marxista que tenha, ao longo de décadas, participado pacificamente no "jogo democrático", se tornasse autoritário caso chegasse ao poder por via democrática. A amostra que justificaria tal receio não se aplicaria neste caso.

E já agora, a aversão das pessoas em geral face a transformações sociais rápidas, amplas e imprevisíveis não seria, por si, razão para as evitar. O fim da escravatura, o sufrágio universal ou até o fim da monarquia absoluta já todas se encontraram nesta categoria algures no passado.

No actual contexto democrático (que defendo), qualquer transformação ampla deve ter a conivência da maioria da população, mas isso pode eventualmente exigir um esforço de persuasão caso essa transformação seja desejável.

Há boas razões para rejeitar muitas propostas de transformação social marxistas, mas assumir que quem as propõe tem necessariamente tendências autoritárias não é uma delas.

É mais complicado que isso. 

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Petição contra “tribunais privados” com mais de 4000 assinaturas portuguesas

Mais de 4000 assinaturas portuguesas na petição contra o ISDS

A petição europeia “Direitos para as pessoas, regras para as multinacionais”  - em cuja divulgação me tenho empenhado pessoalmente - já contém mais de 4000 assinaturas portuguesas.

A iniciativa europeia, que foi lançada em Janeiro, conta com quase 600 mil assinaturas em toda a Europa. Ontem ultrapassou as 4000 assinaturas de cidadãos portugueses.

Se é verdade que, em proporção do número total de assinaturas, o número de assinaturas portuguesas não pareça extraordinário, também é verdade que a população portuguesa é, na Europa, aquela que maior desinteresse apresenta por questões de política e cidadania, o que muito prejudica o país.

Por exemplo, muito poucos portugueses têm conhecimento de como o ISDS afecta as suas vidas, nomeadamente por via da relação entre este mecanismo e as chamadas “rendas excessivas” de que a EDP usufrui.

O valor das 4000 assinaturas é simbólico na medida em que é este o número que uma petição nacional tem de atingir para ser discutida em plenário na Assembleia da República. É um valor que muitas petições não conseguem atingir. É um valor que demonstra que existe suficientemente interesse por parte da população para que estas questões mereçam espaço no debate público.

Existe um sistema paralelo de justiça, chamado ISDS, que não é mais que um sistema de justiça privada que representa uma perigosa ameaça para o ambiente, a democracia e os Direitos Humanos. Apesar desta ameaça sobre o planeta e as pessoas, infelizmente poucos estão a par. É necessário promover a discussão pública deste assunto tão importante. Em grande medida é esse o objectivo desta petição: conseguir que se discuta uma questão tão importante para todos.

A rede europeia pretende continuar a recolher assinaturas, tendo também previstas outras iniciativas para alertar a população relativamente aos “perigos do ISDS”.

A TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo, de que faço parte, vai continuar a fazer todos os esforços para que as pessoas saibam o que é o ISDS e estejam a par de outras questões associadas ao comércio internacional que podem afectar as nossas vidas de forma mais indirecta, mas não por isso menos intensa.


Post também publicado no Espaço Ágora.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Os problemas da política identitária e as alternativas possíveis

A política identitaria original é de direita: afirma que a nação é branca e cristã, e que os outros são minorias toleradas. Perdeu a hegemonia há muito, e em Portugal só na direita mais extrema se encontra quem articule politicamente que alguém é menos português do que os outros por ser de origem africana ou de cultura cigana. A política identitaria de esquerda opõe-se à da direita erigindo a "mulher negra lésbica" em arquétipo da vítima de todas as discriminações e opressões do "homem branco heterosexual". Ambas desvalorizam a classe social quer como causa de exclusões e privações quer como solução para aspirações frustradas. E ambas esquecem que todos os indivíduos têm necessidades, ambições e interesses comuns, independentemente dessas diferenças.

De direita ou de esquerda, a política da identidade tem como pressuposto que o lugar de cada indivíduo nas hierarquias sociais é especificado pela identidade de género, ou a religião, ou a pertença étnica (ou «racial»), ou a orientação sexual. Na versão de direita, as mulheres não devem tomar decisões nem assumir grandes responsabilidades, os bichas que se fechem em casa, e os pretos e ciganos que desapareçam. Na versão de esquerda, só tem direito a definir (vulgo, ter «lugar de fala») o anti-racismo quem é negro ou cigano, a falar de direitos LGBT quem o for, e o feminismo é das mulheres. Ambas as versões são portanto excludentes ou, no mínimo, hierarquizantes das relações entre indivíduos. Negam a palavra ou a dignidade a pessoas por critérios de género, etnia, opção religiosa ou orientação sexual. Nenhuma tem como objectivo uma sociedade igualitária, que seja cega, surda e muda quanto às características tribais atrás referidas.

A politização das identidades representa um perigo para a democracia representativa que não se coloca com a classe social. Porque rejeita que partidos, deputados e governos representem ideologias e interesses sociais, e os reduz a montras de identidades. Todavia, não há qualquer razão para que um branco gay não se sinta representado politicamente por uma negra hetero, ou vice versa, ou qualquer cidadão por outro cidadão de "identidades" diferentes. E felizmente, a maioria das pessoas em países civilizados tem o bom senso de não escolher em quem vota por critérios de cor de pele, orientação sexual ou afins. Mas os dois lados da política identitaria alimentam-se mutuamente, e nos países democráticos envenenados pelos choques de identidades verifica-se que quem ganha é a identidade maioritária, não as oprimidas.

Há em Portugal trabalhadores precários que todos os dias se esmifram para ganhar o salário mínimo antes de voltarem de transportes públicos para os subúrbios. Se lhes disserem que serem homens ou brancos ou heterossexuais os transforma a eles (ou a elas) em privilegiados ou até opressores, a reacção será entre o sorriso irônico e a irritação. A reacção será porém mais agreste se lhes explicarem paternalmente que usar com desleixo certas palavras em que nunca pensaram muito tipifica machismo, racismo e homofobia. Não se voltarão imediatamente para os santos protectores das identidades tradicionais, que só têm para oferecer a caridade e o orgulho num passado que passou. Mas será sempre melhor tratar cada cidadão como um indivíduo provido de razão e capaz de articular a relação entre as suas circunstâncias e as suas opções políticas livre das suas "identidades", e que no fundo só quer viver melhor.