Um prefácio que se impõe a este texto é o de que eu pessoalmente não sou marxista. Li os dois primeiros volumes do Capital e considero ambos uma leitura muito interessante, mas não estou de acordo com a análise que Marx faz da realidade em vários aspectos cruciais.
Dito isto, e sendo verdade que hoje o panorama do pensamento e ideologia marxista é extremamente amplo e diverso, é notável que uma enorme proporção (que me parece mais do que maioritária, mas nem insisto nesse ponto - é inequívoco que será uma proporção relevante) não só não tem propensões autoritárias, como inclusivamente tende a ter propensões anti-autoritárias, e em muitos casos inequivocamente libertárias.
Mas neste caso impõe-se a questão: então porque é que quando um partido ou movimento comunista conquistou o poder, sempre ou quase sempre o exerceu de forma extremamente autoritária ou mesmo totalitária?
Muitos anti-marxistas têm a resposta: "pelos seus frutos os conhecereis". O pensamento marxista - afirmam - é intrinsecamente e inexoravelmente autoritário, por muito que afirme o oposto, e a prova está aí: se tantos e tão diversos movimentos marxistas diferentes, todos eles (ou certamente quase todos eles) exerceram o poder de forma tão autoritária, temos uma "amostragem" mais que suficiente para concluir que o marxismo é intrinsecamente autoritário.
Eu creio que existe neste argumento um erro crasso. Aquilo que se chama em estatística "um problema de selecção da amostra".
Vejamos o seguinte, imaginemos que eu estou a debater com um amigo qual o perfil das pessoas que gostariam de ter um Ferrari. Vamos supor que ele defende que 95% das pessoas que gostariam de ter um Ferrari têm um rendimento mensal superior a 2000€ por mês, enquanto que eu alegaria que a proporção de pessoas com rendimentos inferiores que quer ter um Ferrari é muito superior a 5% do total de pessoas com essa vontade. Agora imaginemos que o meu amigo apresenta como prova o facto das pessoas que efectivamente compraram um Ferrari terem, 95% delas, um rendimento superior aos tais 2000€. É fácil identificar o erro da "prova": a amostra das pessoas que adquiriam o automóvel não é uma amostra aleatória das pessoas que o desejam. Um rendimento elevado aumenta a probabilidade de aquisição dado que essa vontade já existe.
Na verdade, tanto quanto sabemos, as pessoas nessa categoria de rendimento podiam ser apenas 2% das que quer comprar um Ferrari, e ainda assim 95% das que efectivamente o compram.
Este erro - assumir a amostra como aleatória - distorce completamente as conclusões que o hipotético e falacioso amigo tira dos dados a que tem acesso.
Voltemos ao marxismo. A "população" de partidos e movimentos marxistas será muito diversa, e existirá uma proporção com tendências mais autoritárias e uma proporção com tendências mais anti-autoritárias.
Sucede-se que em Democracia a população geralmente tende a desgostar de propostas que apresentem um projecto de transformação social muito rápido, amplo e imprevisível. Há N razões psicológicas e sociais que explicam esta tendência, mas a verdade é que muito raramente conquista o poder por via democrática quem propõe transformações económicas radicais, principalmente se não for apoiado à partida por fortes interesses económicos.
Este contexto torna quase impossível um movimento marxista com tendências anti-autoritárias conquistar o poder.
Para um movimento marxista com tendências autoritárias, no entanto, existem outras formas de conquistar e manter o poder que não exigem a conivência da maioria da população.
Assim, quando olhamos para o panorama de movimentos marxistas que conquistaram o poder não vemos uma amostra dos movimentos marxistas em geral.
Assim sendo, não seria expectável que se um partido marxista que tenha, ao longo de décadas, participado pacificamente no "jogo democrático", se tornasse autoritário caso chegasse ao poder por via democrática. A amostra que justificaria tal receio não se aplicaria neste caso.
E já agora, a aversão das pessoas em geral face a transformações sociais rápidas, amplas e imprevisíveis não seria, por si, razão para as evitar. O fim da escravatura, o sufrágio universal ou até o fim da monarquia absoluta já todas se encontraram nesta categoria algures no passado.
No actual contexto democrático (que defendo), qualquer transformação ampla deve ter a conivência da maioria da população, mas isso pode eventualmente exigir um esforço de persuasão caso essa transformação seja desejável.
Há boas razões para rejeitar muitas propostas de transformação social marxistas, mas assumir que quem as propõe tem necessariamente tendências autoritárias não é uma delas.
É mais complicado que isso.
Dito isto, e sendo verdade que hoje o panorama do pensamento e ideologia marxista é extremamente amplo e diverso, é notável que uma enorme proporção (que me parece mais do que maioritária, mas nem insisto nesse ponto - é inequívoco que será uma proporção relevante) não só não tem propensões autoritárias, como inclusivamente tende a ter propensões anti-autoritárias, e em muitos casos inequivocamente libertárias.
Mas neste caso impõe-se a questão: então porque é que quando um partido ou movimento comunista conquistou o poder, sempre ou quase sempre o exerceu de forma extremamente autoritária ou mesmo totalitária?
Muitos anti-marxistas têm a resposta: "pelos seus frutos os conhecereis". O pensamento marxista - afirmam - é intrinsecamente e inexoravelmente autoritário, por muito que afirme o oposto, e a prova está aí: se tantos e tão diversos movimentos marxistas diferentes, todos eles (ou certamente quase todos eles) exerceram o poder de forma tão autoritária, temos uma "amostragem" mais que suficiente para concluir que o marxismo é intrinsecamente autoritário.
Eu creio que existe neste argumento um erro crasso. Aquilo que se chama em estatística "um problema de selecção da amostra".
Vejamos o seguinte, imaginemos que eu estou a debater com um amigo qual o perfil das pessoas que gostariam de ter um Ferrari. Vamos supor que ele defende que 95% das pessoas que gostariam de ter um Ferrari têm um rendimento mensal superior a 2000€ por mês, enquanto que eu alegaria que a proporção de pessoas com rendimentos inferiores que quer ter um Ferrari é muito superior a 5% do total de pessoas com essa vontade. Agora imaginemos que o meu amigo apresenta como prova o facto das pessoas que efectivamente compraram um Ferrari terem, 95% delas, um rendimento superior aos tais 2000€. É fácil identificar o erro da "prova": a amostra das pessoas que adquiriam o automóvel não é uma amostra aleatória das pessoas que o desejam. Um rendimento elevado aumenta a probabilidade de aquisição dado que essa vontade já existe.
Na verdade, tanto quanto sabemos, as pessoas nessa categoria de rendimento podiam ser apenas 2% das que quer comprar um Ferrari, e ainda assim 95% das que efectivamente o compram.
Este erro - assumir a amostra como aleatória - distorce completamente as conclusões que o hipotético e falacioso amigo tira dos dados a que tem acesso.
Voltemos ao marxismo. A "população" de partidos e movimentos marxistas será muito diversa, e existirá uma proporção com tendências mais autoritárias e uma proporção com tendências mais anti-autoritárias.
Sucede-se que em Democracia a população geralmente tende a desgostar de propostas que apresentem um projecto de transformação social muito rápido, amplo e imprevisível. Há N razões psicológicas e sociais que explicam esta tendência, mas a verdade é que muito raramente conquista o poder por via democrática quem propõe transformações económicas radicais, principalmente se não for apoiado à partida por fortes interesses económicos.
Este contexto torna quase impossível um movimento marxista com tendências anti-autoritárias conquistar o poder.
Para um movimento marxista com tendências autoritárias, no entanto, existem outras formas de conquistar e manter o poder que não exigem a conivência da maioria da população.
Assim, quando olhamos para o panorama de movimentos marxistas que conquistaram o poder não vemos uma amostra dos movimentos marxistas em geral.
Assim sendo, não seria expectável que se um partido marxista que tenha, ao longo de décadas, participado pacificamente no "jogo democrático", se tornasse autoritário caso chegasse ao poder por via democrática. A amostra que justificaria tal receio não se aplicaria neste caso.
E já agora, a aversão das pessoas em geral face a transformações sociais rápidas, amplas e imprevisíveis não seria, por si, razão para as evitar. O fim da escravatura, o sufrágio universal ou até o fim da monarquia absoluta já todas se encontraram nesta categoria algures no passado.
No actual contexto democrático (que defendo), qualquer transformação ampla deve ter a conivência da maioria da população, mas isso pode eventualmente exigir um esforço de persuasão caso essa transformação seja desejável.
Há boas razões para rejeitar muitas propostas de transformação social marxistas, mas assumir que quem as propõe tem necessariamente tendências autoritárias não é uma delas.
É mais complicado que isso.