Se a sociedade fosse feita de agentes e instituições racionais, criativas e com uma razoável capacidade de previsão e extrapolação, todos os debates políticos relevantes seriam jogos de soma-zero.
Isto porque todas as propostas de soma positiva já teriam sido implementadas (com as devidas contrapartidas para que todas as partes lhes fossem favoráveis), e as propostas de soma negativa seriam preteridas face às de soma nula.
Assim, diferentes partidos representariam diferentes perspectivas e valores, cujas propostas beneficiariam tanto um determinado grupo quanto prejudicariam outro. Nesse mundo hipotético, se algo fosse favorável aos trabalhadores seria necessariamente desfavorável aos empregadores, e vice-versa.
A diferença entre esse mundo e o nosso é particularmente gritante com a eleição de Trump. Vejo muitas pessoas à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do BE) salientarem o como Trump acaba por ser uma boa notícia para os milionários e ricos deste mundo (por exemplo, desvalorizando a queda dos mercados que se seguiu imediatamente à sua eleição, e salientando a «correcção» subsequente).
Por outro lado, também à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do PCP), muitos discordam desta perspectiva, considerando que a eleição de Clinton podia ter sido uma notícia mais agradável para os mais ricos e poderosos. No entanto, estes manifestaram muito menor preocupação e contrariedade com a eleição de Trump, insistindo na debilidade da alternativa que Clinton representava, e ignorado ou minorando as profundas diferenças entre ambos os candidatos.
Creio que ambas as partes estão erradas, e o erro resulta da assumpção implícita acima. Presume-se que Trump é tanto pior do que Clinton para o mundo (e em particular para «os trabalhadores») quando melhor for para os ricos e poderosos. Presume-se uma soma zero.
Entre Clinton e Trump, não é claro qual destes líderes seria a escolha dos ricos e poderosos. Donald Trump será certamente melhor para a indústria petrolífera, e presumo que também para a indústria de armamento. Mas eu diria que as grandes multinacionais, o gigantesco sector financeiro, e o poderoso sector tecnológico teriam (e tiveram) uma clara preferência por Hillary Clinton. E isto não é só um palpite: o balanço das contribuições de campanha por parte dos mais ricos e poderosos foi muito favorável a Hillary Clinton. Os EUA pareciam uma oligarquia tão podre quanto estável, mas Trump é um factor de instabilidade poderoso. Nesse sentido, parece-me natural que «os 1%» preferissem Hillary Clinton.
Mas nada disto implica que Clinton fosse pior para as pessoas em geral (e para os trabalhadores em particular) a comparar com Trump. Por exemplo, a incompetência doentia que Trump tem para manter a administração pública a fazer o seu trabalho não beneficia nem aqueles que usufruem dos serviços públicos ou prestações sociais, nem aqueles que querem ser tributados ao mínimo. A incerteza criada pelo seu comportamento errático no plano internacional não favorece nem os investidores que querem planear os seus investimentos, nem os soldados ou civis que podem ser vitimados por uma guerra sem sentido*.
Um exemplo particularmente gritante refere-se à atitude face à divida dos EUA: pagar ou não pagar a dívida são decisões que afectam de forma diferente as duas partes em causa (credores e devedores), mas anunciar gratuitamente a possibilidade de não pagar (continuando a pagar, note-se!) prejudica ambas as partes. Uma porque enfrenta juros superiores, outra porque enfrenta um maior grau de incerteza.
Trump não é um agente racional e é a demonstração cabal de que esta forma de ver a política baseada em jogos de soma zero é profundamente simplista, imatura e desadequada.
Post também publicado no Espaço Ágora.
Isto porque todas as propostas de soma positiva já teriam sido implementadas (com as devidas contrapartidas para que todas as partes lhes fossem favoráveis), e as propostas de soma negativa seriam preteridas face às de soma nula.
Assim, diferentes partidos representariam diferentes perspectivas e valores, cujas propostas beneficiariam tanto um determinado grupo quanto prejudicariam outro. Nesse mundo hipotético, se algo fosse favorável aos trabalhadores seria necessariamente desfavorável aos empregadores, e vice-versa.
A diferença entre esse mundo e o nosso é particularmente gritante com a eleição de Trump. Vejo muitas pessoas à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do BE) salientarem o como Trump acaba por ser uma boa notícia para os milionários e ricos deste mundo (por exemplo, desvalorizando a queda dos mercados que se seguiu imediatamente à sua eleição, e salientando a «correcção» subsequente).
Por outro lado, também à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do PCP), muitos discordam desta perspectiva, considerando que a eleição de Clinton podia ter sido uma notícia mais agradável para os mais ricos e poderosos. No entanto, estes manifestaram muito menor preocupação e contrariedade com a eleição de Trump, insistindo na debilidade da alternativa que Clinton representava, e ignorado ou minorando as profundas diferenças entre ambos os candidatos.
Creio que ambas as partes estão erradas, e o erro resulta da assumpção implícita acima. Presume-se que Trump é tanto pior do que Clinton para o mundo (e em particular para «os trabalhadores») quando melhor for para os ricos e poderosos. Presume-se uma soma zero.
Entre Clinton e Trump, não é claro qual destes líderes seria a escolha dos ricos e poderosos. Donald Trump será certamente melhor para a indústria petrolífera, e presumo que também para a indústria de armamento. Mas eu diria que as grandes multinacionais, o gigantesco sector financeiro, e o poderoso sector tecnológico teriam (e tiveram) uma clara preferência por Hillary Clinton. E isto não é só um palpite: o balanço das contribuições de campanha por parte dos mais ricos e poderosos foi muito favorável a Hillary Clinton. Os EUA pareciam uma oligarquia tão podre quanto estável, mas Trump é um factor de instabilidade poderoso. Nesse sentido, parece-me natural que «os 1%» preferissem Hillary Clinton.
Mas nada disto implica que Clinton fosse pior para as pessoas em geral (e para os trabalhadores em particular) a comparar com Trump. Por exemplo, a incompetência doentia que Trump tem para manter a administração pública a fazer o seu trabalho não beneficia nem aqueles que usufruem dos serviços públicos ou prestações sociais, nem aqueles que querem ser tributados ao mínimo. A incerteza criada pelo seu comportamento errático no plano internacional não favorece nem os investidores que querem planear os seus investimentos, nem os soldados ou civis que podem ser vitimados por uma guerra sem sentido*.
Um exemplo particularmente gritante refere-se à atitude face à divida dos EUA: pagar ou não pagar a dívida são decisões que afectam de forma diferente as duas partes em causa (credores e devedores), mas anunciar gratuitamente a possibilidade de não pagar (continuando a pagar, note-se!) prejudica ambas as partes. Uma porque enfrenta juros superiores, outra porque enfrenta um maior grau de incerteza.
Trump não é um agente racional e é a demonstração cabal de que esta forma de ver a política baseada em jogos de soma zero é profundamente simplista, imatura e desadequada.
Post também publicado no Espaço Ágora.