«entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprime, et la loi qui affranchit.»
(Lacordaire)
A apresentação de Paul De Grauwe relembrou aquilo que já é claro para quase todos os que estão por dentro do assunto: a resposta da Europa (em particular dos países da zona euro) à crise foi patética*, absurda, monstruosa nas suas consequências. Os países europeus fora da zona euro, os EUA, e outros países ricos e desenvolvidos afectados por esta crise tiveram respostas muito mais adequadas.
A razão: a "austeridade" à escala europeia. Criou um problema de procura agregada, que levou a um "ciclo vicioso": como os estados gastaram menos e cobraram mais impostos, os rendimentos das pessoas diminuíram, o que por sua vez afastou investimento, diminuindo ainda mais a procura, e ainda mais os rendimentos, e por aí fora.
Os adeptos da austeridade à escala europeia interpretaram os problemas como sendo problemas do lado da oferta, e a crise como uma oportunidade para fazer "reformas estruturais" que supostamente aumentariam as perspectivas de crescimento de longo prazo. Paul De Grauwe mostrou que não é razoável afirmar que as "reformas estruturais" tiveram esse efeito, mas que a política "austeritária" como um todo (diminuição da procura agregada e "reformas estruturais") teve o efeito oposto, de agravar as perspectivas de crescimento.
Claro que hoje, à excepção de um extremista ou outro, já todos aqueles mais versados em economia compreendem que a austeridade à escala europeia foi um erro crasso. O problema é que politicamente se torna muito inconveniente admitir certos erros. Nesse sentido, vai-se tentado mudar de política sem que se note, o que implica manter uma grande parte das políticas erradas (e que se sabe serem erradas), só para não perder a face. É isto que Merkel está a fazer.
Muitos respondem a estas evidências alegando que a austeridade à escala europeia foi muito má, mas que era inevitável. Isso é completamente falso. Nos EUA fez-se o contrário daquilo que se fez na Europa (só agora se começa a fazer, timidamente e tarde): um programa de estímulo, que a direita muito combateu. Quando comparamos os resultados, as conclusões são muito claras.
Culminei a última série de textossobre o RBI com a apresentação das razões pelas quais a defesa de uma solução deste tipo ao nível europeu seria a melhor opção.
O André Barata escreveu no Irrevogável um texto sobre este mesmo assunto, e estas questões são bastante aprofundadas. Para os leitores que se interessam por este tema, não posso deixar de recomendar sem reservas.
O Miguel Madeira também escreveu (no Vento Sueste e no Vias de Facto) sobre este assunto, pensando numa possibilidade de usar o RBI como instrumento de política monetária, pelo menos de forma esporádica quando medidas heterodoxas são necessárias.
Se bem que, logo na altura, a possibilidade de injectar liquidez desta forma me tenha parecido mais justa e elegante que o «quantitative easing», parece-me um pouco enganador chamar a isto um RBI ocasional. A meu ver, o RBI pressupõe alguma continuidade e previbilidade - afectando as decisões das pessoas em relação às suas opções profissionais.
Já a conjugação de uma reforma como a considerada na Islândia com uma ferramenta deste tipo, podia exigir injecções permanentes que dessem alguma continuidade a um rendimento deste tipo, que hipoteticamente aumentariam o controlo do Banco Central sobre a massa monetária, ajudando-o a evitar desequilíbrios. Será que neste caso já se poderia mesmo falar num RBI? Creio que sim, mas não tenho uma opinião muito informada sobre se a opção islandesa é uma boa solução (esquecendo a questão do RBI). Se forem em frente com essa reforma, estarei muito atento aos resultados.
No texto anterior argumentei que o RBI
corresponde a uma solução importante para os problemas que a revolução
tecnológica ao virar da esquina irá colocar.
É possível argumentar que a revolução tecnológica já coloca estes problemas
- que nos últimos anos a tendência de aumento de desemprego e diminuição do
tempo de lazer se substituiu à anterior tendência de conquista de direitos
sociais e constante melhoria da qualidade de vida, que há algumas décadas atrás
aqueles que olhavam para o futuro imaginavam uma sociedade onde as pessoas
trabalhariam muito menos horas, e se isso acontece hoje é apenas sob a forma
de desemprego excessivo.
Mas seja como for, pelas razões expostas no texto anterior, é claro que na
sua forma de implementação mais directa, o RBI ainda é uma ideia à frente do
seu tempo, sem condições políticas, sociais ou financeiras para ser
implementadasem mais.
E no entanto, como mencionei nesse texto, as linhas programáticas da
candidatura LIVRE/Tempo de Avançar dizem o seguinte:
«3.24. Defendemos também a existência de um rendimento básico, assente
numa filosofia de assunção da cidadania e não de assistencialismo. Tal como a
educação, a saúde e a proteção social, também um rendimento básico deve ser
incondicionalmente atribuído a todos os cidadãos. A introdução deste
instrumento deverá ser precedida de uma avaliação dos seus pressupostos, da sua
articulação com outras medidas de combate à pobreza e da sua sustentabilidade.»
Neste momento o programa da candidatura está em processo de construção, e
este debate é um debate importante.
Existem duas soluções extremas que a candidatura pode adoptar, e discordo
de qualquer delas:
a) Propor a criação de um RBI «a sério», no imediato.
Discordo desta proposta, pelas razões já explicadas. O aumento das despesas
do estado em cerca de 50% parece-me um "aventureirismo" que não se
coaduna com as dificuldades que o país tem vindo a sentir nos últimos anos.
Seria irresponsável avançar com uma proposta assim. Ela seria punida nas urnas,
e com razão.
b) Rejeitar a instauração do RBI.
A candidatura poderia alegar que, após o estudo do impacto orçamental das
diferentes medidas propostas, não existe espaço para incluir também esta
prestação cumprindo os objectivos orçamentais compatíveis com outras propostas
importantes das mesmas linhas programáticas (nomeadamente a renegociação da
dívida, que exige um saldo primário positivo para que exista maior força
negocial face aos credores).
É verdade que se poderia estabelecer uma tributação que fizesse face à
despesa acrescida, nos tais moldes em que 95% da população aumentasse o seu
rendimento líquido, mantendo-se o actual perfil de vencimentos. No entanto,
poder-se-ia sempre alegar que não nos podemos dar ao luxo de lidar com uma
hipótese tão incerta, até improvável.
Também discordo desta solução. Discordo porque ela não leva em linha de
conta o enorme potencial do RBI no longo prazo, e porque ela esquece a
possibilidade de soluções intermédias.
E que soluções intermédias pode a candidatura adoptar?
Eu imagino três, que gostaria de expor por ordem crescente de preferência pessoal:
1- O RBIzinho
A ideia do RBIzinho é realizar uma transformação gradual da economia até
uma economia com um RBI «a sério».
Instaurava-se uma prestação simbólica, como por exemplo 60€ anuais para
cada português (por hipótese metade deste valor para menores). O impacto
orçamental imediato de uma medida deste tipo ainda é relativamente comportável
no curto prazo, e o ritmo da transformação poderia ser adequado às
possibilidades socais e financeiras. Quando «chegasse a hora» do RBI, a
transição da situação de elevado desemprego, falta de procura, miséria, para
uma situação equilibrada de maior produtividade e lazer seria muito mais rápida
e fácil, pois a estrutura adequada para a realização desta transformação já
estaria construída.
Existem dois pontos fracos desta proposta: a primeira é que será recebida
por muitas pessoas como ridícula e absurda, e é compreensível que assim seja.
Afinal, se a intenção não fosse aumentar significativamente esta prestação no
futuro, para quê manter uma máquina burocrática capaz de efectuar esta
transferência, e fiscalizar possíveis abusos, se a prestação em causa é tão
insignificante?
O segundo ponto fraco será explicado quando expuser a terceira solução
intermédia.
2- As «experiências piloto»
A alegação associada a esta proposta é que seria irresponsável implementar
um RBI sem primeiro estudar o seu impacto nos comportamentos e escolhas das
pessoas.
Como tal, escolhem-se pequenas comunidades e realizam-se
«experiências-piloto» para realizar estes estudos.
As vantagens desta solução são claras: por um lado o impacto orçamental é
negligenciável, e dificilmente lhe podem ser apontados riscos relevantes. Por
outro lado, ela coloca na agenda a discussão sobre o RBI e ajuda a criar as
condições políticas para que esta prestação seja implementada quando a sua
necessidade for premente. Adicionalmente, ela permite fazer aquilo a que se
propõe: aumentar o nosso conhecimento sobre o impacto do RBI numa pequena
comunidade.
O ponto fraco desta medida é que não é assim tão relevante conhecer o
impacto do RBI numa pequena comunidade: já existem várias «experiências-piloto»
pelo mundo fora, e o seu problema é sempre o da «falta de escala».
3- Um RBI à escala europeia
No texto anterior procurei demonstrar como os trabalhadores em geral
tenderiam a beneficiar do RBI: quer os que privilegiam o trabalho face ao lazer
- que teriam menos concorrência dos restantes e veriam seus salários subir -
quer os que privilegiam o lazer face ao trabalho, que poderiam assim optar por
utilizar uma maior fatia do seu tempo conforme as suas preferências.
No entanto, estes custos salariais acrescidos, se ocorressem unicamente à
escala de um pequeno país, poderiam tornar o investimento nesse país muito
pouco apelativo. Ao afastar o investimento, a produtividade acabaria por
diminuir, e as subidas salariais acabariam por não se manter. A prosperidade
diminuiria, e o rendimento líquido da população poderia acabar por diminuir.
Este risco poderia ser quase totalmente eliminado com um RBI implementado à
escala europeia.
Poder-se-ia alegar que o mesmo fenómeno ocorreria à escala europeia: o
capital fugiria para outras paragens. No entanto, isso estaria sempre nas mãos
dos europeus, e do enquadramento que preferissem adoptar - até em relação às
taxas aduaneiras. Muito capital e investimento escolheria a Europa como destino
simplesmente para ter acesso aos consumidores europeus.
Neste sentido, a escala europeia é muito diferente da escala nacional:
enquanto o capital pode fugir do nosso país para outro no mesmo mercado comum e
ainda assim ter acesso aos consumidores portugueses, a situação análoga à
escala europeia já poderá ser facilmente evitada se existir alguma concertação.
Um RBI à escala europeia tem outras vantagens: a prestação mínima
necessária à sobrevivência constitui uma proporção muito menor do salário médio
europeu do que do salário médio nacional, e nesse sentido exige um esforço
fiscal que se apresenta como muito mais suportável.
Uma vantagem acrescida é que uma prestação deste tipo acabaria por
constituir uma forma de redistribuição dos países mais ricos para os mais
pobres que reforçaria os laços de solidariedade neste momento tão frágeis entre
os povos europeus. E se poderíamos observar que os países mais ricos poderiam
por essa razão ser mais renitentes face a uma medida deste tipo, é fácil de
contrapor que nesses mesmos países o apoio a uma solução deste tipo é muito
mais amplo que nos países menos ricos (possivelmente por causa da relação entre
a prestação e salário médio já mencionada).
O ponto fraco desta medida é que olhando para as actuais instituições
europeias, para a forma patética como têm gerido a crise, para os egoísmos
nacionais, e os desequilíbrios de poder, é difícil confiar no enquadramento
europeu seja para o que for - principalmente nesta fase.
Em jeito de conclusão, parece-me que não existe nenhuma solução perfeita.
Assim, qualquer opção tem riscos, e a opção de ignorar o problema parece-me
das mais arriscadas.
Não sei qual será a escolha da candidatura LIVRE/Tempo de Avançar, mas
estou confiante que dentro de algumas décadas, em retrospectiva, a
implementação do RBI vai parecer uma conquista tão elementar e essencial como o
foram as jornadas de 12h, 10h e 8h, as férias e os fins-de-semana.
Oxalá se faça essa conquista com o mínimo de sofrimento e desperdício -
precisamente o contrário da forma como a zona euro respondeu à crise das
dívidas soberanas.
Algumas das críticas que fez eram bastante demagógicas e até impróprias de um defensor consistente do estado social (por exemplo, quando se indigna com o facto dos ricos também receberem uma prestação social, como se não fosse essa a argumentação da direita para atacar o SNS e o sistema público de ensino ou pensões), mas não podemos negar a força do seu argumento fundamental: ou bem que um RBI levaria ao quase total desmantelamento do estado social, ou bem que levaria a uma tributação acrescida monstruosa.
Eu já vi mais do que um estudo sobre o impacto do RBI, todos apresentados pelos próprios defensores desta medida, e confirmam as críticas de Louçã: mesmo que algumas prestações sociais sejam reduzidas a um ponto verdadeiramente inaceitável, a carga fiscal teria de disparar. Para a classe média, o IRS poderia entrar na casa dos 70% do vencimento.
Responderão os defensores do RBI que faz pouco sentido fazer as contas desta forma. Sim, a carga fiscal sobe, mas a pessoa agora recebe uma prestação adicional. Assim, o que importa saber é se, fazendo o balanço aos dois efeitos, as pessoas ficam a ganhar ou a perder dinheiro. Que importa que os impostos subam, se em última análise ficamos mais dinheiro ao fim do mês?
E não é nenhum milagre da multiplicação, mas sim pura redistribuição: com alguma progressividade é possível implementar o RBI de forma a que 95% da população fique a ganhar dinheiro, e apenas 5% a perder, isto - claro está - desde que o perfil de rendimentos não mude.
Este contra-argumento é realmente muito forte. Mas acaba por ser muito pouco convincente. As pessoas não acreditam nesse "claro está" - pensam que uma prestação desse tipo alteraria significativamente o perfil de rendimentos. Geralmente estão convencidas que assim que uma prestação dessas fosse implementada, as pessoas teriam muito menos incentivo para trabalhar.
Porquê trabalhar, quando é possível ganhar dinheiro suficiente para sobreviver sem fazer nada? Pior, existe um sentimento de injustiça quase visceral: os que não trabalham estão a viver à custa dos "patetas" que preferem trabalhar.
A isto, os defensores do RBI respondem com uma visão diferente sobre a natureza humana. As pessoas - alegam - gostam de trabalhar, e trabalhariam mesmo que não tivessem de o fazer para sobreviver. Se calhar, trabalhariam a compor músicas, poesias, histórias. Alguns inquéritos - relembram - mostram que cada pessoa assume que as outras apresentariam um comportamento menos industrioso, mas quando falam sobre elas próprias, o rendimento adicional não as levaria a ficar o dia todo sem fazer nenhum: o ser humano gosta de ser útil. As pessoas não teriam menos vontade de trabalhar, talvez até mais.
Neste ponto, não concordo com a generalidade dos defensores do RBI: o senso comum é muito mais certeiro. As respostas das pessoas em inquéritos são enganadoras: além de mecanismos de protecção do ego que levam as que as pessoas se vejam a agir de forma mais decente do que aquela que efectivamente agiriam, ainda temos todos constrangimentos sociais presentes mesmo num inquérito anónimo. Mas se estudarmos o comportamento efectivo das pessoas, e as suas escolhas de profissão/carreira, verificamos que aquelas que recebem algum rendimento não proveniente do trabalho (seja algum tipo de pensão ou prestação social, rendimentos do capital, ou mesmo prémios/heranças) tendem a estar menos dispostas a abdicar do seu tempo de lazer para receber um rendimento acrescido, do que aquelas cujo rendimento provém exclusivamente do trabalho.
Sim, o senso comum está certo: se um RBI surgisse, as pessoas iriam estar menos dispostas a trabalhar. Algumas, mais sóbrias e menos gastadoras, iriam viver exclusivamente dessa prestação.
É verdade que isso não resultaria necessariamente em menos actividade: poderiam estar a escrever os tais poemas, ou fazer voluntariado. Mas no que diz respeito à actividade que queremos pagar para usufruir, desde a recolha do lixo e segurança das ruas até à gestão da base de dados que maximiza a eficácia do armazenamento num qualquer supermercado, existiria realmente uma escassez de mão de obra.
Mas a ironia é precisamente esta. A maior crítica que é feita ao RBI revela precisamente o seu maior potencial.
O RBI é a a resposta mais elegante e livre à questão colocada no texto anterior.
Como responder à nova revolução industrial, à automação cada vez mais prevalecente, já ao virar da esquina? Através do Rendimento Básico Incondicional.
Tal como na revolução industrial anterior, a automação vai destruir inúmeros empregos, e resultar numa diminuição imediata dos salários. Ambos estes fenómenos resultarão numa diminuição da procura agregada que provocará diminuições de salários e empregos adicionais. A redução dos salários levará as pessoas a trabalhar mais horas em piores condições, destruindo ainda mais empregos no processo. A procura agregada desce ainda mais.
Esta situação só pode ser revertida como na revolução industrial anterior: com uma luta social pela mudança das regras do jogo. Mas desta vez, uma redução da jornada de trabalho não resultará: muitos trabalhos são avaliados em termos de objectivos cumpridos, não em termos do número de horas passado nestas ou naquelas instalações.
Mas se um RBI for implementado, menos gente vai querer trabalhar. E se isso acontecer, os salários vão subir. Não são os "trabalhadores" que vão pagar aos "preguiçosos", não será essa a dinâmica: será um processo em que os detentores de riqueza terão de pagar salários superiores, e terão como tal incentivos ainda maiores para automatizar os trabalhos mais desagradáveis e desinteressantes, agora que as pessoas têm muito maior escolha em relação à profissão que querem desempenhar.
A tecnologia conduzirá a um aumento da qualidade de vida e do tempo de lazer e não ao contrário.
Aqueles que dão mais valor à prosperidade do que ao lazer ficarão a ganhar com a subida dos salários, agora que não têm a concorrência daqueles que dão mais valor ao lazer que aos rendimentos, que também ficam a ganhar. E os empreendedores terão vantagem na maior procura agregada que este sistema gera face à alternativa distópica de uma uma sociedade de milhões e milhões de desempregados sem rendimento.
Só os rentistas ficarão a perder - não se pode agradar a todos.
Infelizmente, esta situação só se tornará clara para a maioria da população quando os efeitos da automação forem mais evidentes.
Actualmente é perfeitamente impossível defender, em Portugal, uma medida que levasse a um aumento brutal da carga fiscal, mesmo com a promessa incerta de que os rendimentos líquidos iriam ser muito maiores para 95% da população.
Em Portugal já é difícil defender as prestações sociais que existem, depois de toda a propaganda feita pelos mais poderosos alegando a insustentabilidade destas. Uma prestação que aumentaria a despesa do estado em cerca de 50%, quando tantos cortes inaceitáveis têm sido feitos em nome de poupanças de 0.1% ou 0.2%, não tem qualquer hipótese de ser implementada.
O RBI é uma excelente ideia - e acabará inexoravelmente por ser uma realidade - mas está um pouco à frente do seu tempo.
Como resolver este problema?
Muitas pessoas não vêem na automação uma ameaça para o emprego. E as razões são várias: olhamos para a revolução industrial com alguma distância, e vemos que a nossa qualidade de vida aumentou significativamente, vemos que novos empregos foram criados em áreas em que ninguém imaginava, e que a tecnologia tornou a vida mais próspera e fácil.
Por outro lado, quando olhamos para o passado a tendência é para ter um olhar complacente para com os «luditas» os tolos que andaram a destruir máquinas como resposta aos empregos destruídos por estas: como que velhos do Restelo incapazes de aceitar o inevitável, ninguém quer fazer o papel análogo nos dias de hoje.
E quem for mais versado nalguns modelos económicos muito comuns até pode explicar porque é que a automação não destrói o emprego: no curto prazo pode realmente diminuir a procura* de trabalho, e levar a uma redução dos salários. Mas isso leva a um aumento da rentabilidade do capital, o que faz com que este cresça mais rápido. À medida que o capital cresce mais rápido que a população (e consequentemente do que o "factor trabalho"), eventualmente isso levará a uma descida da rentabilidade do capital e um aumento dos salários - o salário acabará por corresponder à «produtividade marginal do trabalho», e como esta sobe com a automação, também os salários acabarão por subir. E o desemprego voltará a ser marginal.
Esta é a versão dominante sobre o impacto da automação no trabalho, e pretendo demonstrar que está errada, porque incompleta.
Importa compreender quais são os erros no raciocínio exposto, e depois olhar para a história e ver quais foram as consequências do extraordinário processo de automação que aconteceu durante a revolução industrial.
É fácil compreender porque é que numa primeira fase a automação leva a uma descida dos salários: é oferta e procura pura e simples. Se assumirmos uma oferta* de trabalho constante, o primeiro impacto de automação é deslocar a curva da procura. Onde antes as fábricas precisavam de uma determinada quantidade de pessoas, agora passam a precisar de muito menos gente. O ponto de intercepção corresponde a um salário menor, e a um menor número de horas transaccionadas.
Esta mudança vai ter três consequências:
a) a rentabilidade do capital vai aumentar, e os salários vão diminuir. Se os capitalistas tivessem a mesma propensão para gastar dos seus rendimentos acrescidos que os trabalhadores, a procura agregada não se alteraria. No entanto, empiricamente verifica-se que os trabalhadores tendem a gastar uma fatia superior dos seus rendimentos, o que faz com que esta alteração conduza a uma diminuição da procura agregada. Essa diminuição da procura agregada levará a curva da procura a deslocar-se ainda mais, acentuando a tendência anterior.
b) grande parte dos trabalhadores precisa de sobreviver. Assim, a descida do salário abaixo de um determinado nível leva a que se disponham a trabalhar mais horas (e não menos) para garantir a sua subsistência. Isto quer dizer que ao invés de se manter constante, a curva da oferta tende a deslocar-se para a direita. Isto leva a reduções adicionais no salário, mas a um aumento no número de horas de trabalho transaccionadas. No entanto, este aumento não se traduz numa redução do desemprego: visto que cada trabalhador agora trabalha mais horas, o número de pessoas empregadas reduz-se mesmo com o aumento de horas trabalhadas. Ambos estes efeitos (maior desemprego e redução acrescida do salário) acentuam a tendência para a redução da procura agregada explicada no ponto anterior.
c) se a rentabilidade do capital aumentar o suficiente (coisa que logo à partida se torna difícil quando existe um problema de procura agregada), a certo ponto esperar-se-ia que a taxa de lucro se reduzisse sucessivamente. Com tanto capital disponível, os salários voltariam a subir. O problema é que, como Piketty demonstrou, este quadro é um tanto ingénuo. Mesmo quando a economia cresce muito pouco, a rentabilidade do capital mantém-se relativamente elevada. A riqueza vai-se concentrando em cada vez menos mãos, que acabam por ter um controlo político e social suficientemente alto para criar uma espécie de «cartel do capital» e encontrar formas de manter uma elevada rentabilidade para os seus activos. Como a riqueza se concentra em menos mãos, a sociedade funciona menos como uma «economia de mercado» com inúmeros agentes em concorrência.
Ao contrário da visão ingénua antes exposta, a proporção dos rendimentos para o capital e trabalho não é uma constante no longo prazo, mas sim algo que pode variar significativamente.
Expostos estes argumentos, importa olhar para a realidade.
Não é verdade que depois da revolução industrial nós temos sociedades menos desiguais, e salários muito mais altos? Não é verdade que a nossa qualidade de vida é muito superior?
Tudo isso é verdade, mas importa atentar para o que aconteceu entretanto.
Adam Smith viveu o início da revolução industrial. Na sua obra magistral (que recomendo sem reservas) "A Riqueza das Nações" nós podemos intuir as previsões optimistas descritas no início. A rentabilidade do capital tenderia para zero, e os salários acabariam por disparar.
Mas enquanto Adam Smith viu o capitalismo a funcionar no seu melhor, cerca de um século depois Carl Marx viu o capitalismo a funcionar no seu pior. O que é aconteceu entretanto?
Não é fácil estimar a evolução dos salários reais. Não existiam na altura estimativas frequentes do "cabaz de preço para os consumidores" nem a recolha de informação era tão sistematizada. Na realidade, existem estimativas muito díspares a respeito da evolução dos salários reais, sendo que muitos acreditam que na fase inicial da revolução industrial, eles estagnaram ou regrediram.
Existem, no entanto, outros indícios que podemos usar para apurar a qualidade de vida da maioria da população durante estes anos. Quando a nutrição não é abundante, a altura da população reflecte a maior ou menor prosperidade da população.
Vale a pena portanto atentar nos registos da atura dos soldados, que podem dizer-nos bastante sobre o nível de vida da população após a revolução industrial:
Perante estes dados, é mais fácil compreender porque é que Marx tem uma perspectiva tão diferente da de Adam Smith.
No entanto, irónica e inadvertidamente, o próprio Marx explica porque é que, mesmo dentro do próprio sistema capitalista, a situação acabou por se inverter - os salários vieram a subir, a qualidade de vida acabou por aumentar, a população acabou por partilhar a prosperidade criada pela automação. A revolução generalizada que previa acabou por não tomar lugar.
Vejamos: numa primeira fase Marx descreve como o mecanismo exposto em b) ocorreu. As pessoas tinham de trabalhar cada vez mais horas para sobreviver, e o desemprego era uma situação cada vez mais comum. A situação atingiu a um ponto onde se chegou a ilegalizar o desemprego e enforcar pessoas pelo crime de serem "desempregadas", como forma desesperada de aliviar a pressão social causada por um exército de desempregados que aumentava de dia para dia (não nos podemos esquecer que os processos que exigiam menos mão de obra não aconteceram apenas nas fábricas mas também nos campos, e que muitas pessoas foram expulsas dos seus próprios terrenos, expropriadas para aumentar os latifúndios dos mais ricos e influentes).
Mas Marx também descreve a resposta social a esta situação de desespero. Os trabalhadores dispuseram-se a arriscar a sua vida e segurança em greves ilegais e outras formas de luta, acabando por conquistar uma lei que impedia jornadas de trabalho superiores a 12h, lei essa que foi acolhida pelos industriais e capitalistas com enorme resistência. Alegavam que as suas indústrias se tornariam pouco competitivas, que o capital se iria deslocar para outros países com leis menos rigorosas, que era uma injustiça e uma afronta anti-natural impedir alguém mais industrioso de trabalhar tanto quanto quisesse, e por aí fora.
Agora peço ao leitor que pause o texto para pensar sobre esta situação: uma lei que vem limitar as jornadas de trabalho às 12h foi um importante avanço social. Importa dizer que a jornada de trabalho não incluía o tempo destinado às refeições, que não existiam férias estabelecidas por lei, nem fins de semana. Mesmo numa altura em que a população era significativamente mais religiosa, e o trabalho ao Domingo de certa forma um tabu, a burguesia urbana lamentava publicamente a influência destes preconceitos da Igreja na população rural, que ainda se abstinha de trabalhar ao Domingo - acreditavam que a Igreja tinha de se modernizar, permitindo à população rural contribuir tanto para a criação de riqueza como a população urbana. A esmagadora maioria da população empregada trabalhava mais que 12h diárias, todos os dias, sem fins de semana, férias ou reforma, sem parar. Vale a pena pensar nisto.
Depois desta conquista em vários países industriais importantes, começou a luta pela jornada de trabalho de 10h. Na altura em que Marx escreve, não só muitos trabalhadores já tinham realizado essa conquista nos seus respectivos países, como nos EUA já se tinham finalmente conquistado as 8h de trabalho.
E sabemos que nos mais tarde vieram outras conquistas: férias, fins de semana, etc. Tudo aquilo que damos por garantido foram conquistas duras dos nossos antepassados.
Com esta cartelização da mão de obra, criada pelas leis conquistadas pela luta dos trabalhadores, a situação muda de figura. No imediato, os salários sobem. E, apesar do número de horas de trabalho transaccionadas descer, o facto de cada trabalhador exercer a sua actividade durante menos tempo leva também a uma descida do desemprego. Ambas estas circunstâncias levam a um aumento da procura agregada, que acabará também por levar a um aumento da procura de trabalho, que por sua vez leva a acrescidos aumentos de salário e emprego, num ciclo virtuoso que leva a um aumento significativo da qualidade de vida.
E foi exactamente aquilo que aconteceu:
Ou seja, não foi a automação, por si só, que levou a um importante aumento da qualidade de vida para a maioria da população.
Foi a automação em conjunto com uma bem sucedida e muito difícil e corajosa luta popular por melhores condições de vida. As duas coisas em conjunto - aumento da produtividade e estabelecimento de limites à oferta de trabalho - vieram a resultar numa maior prosperidade e qualidade de vida.
O problema que se coloca é o seguinte: e hoje?
Uma nova vaga de automação, quase que como uma terceira revolução industrial, está aí ao virar da esquina. Mas desta vez faz sentido limitar-mo-nos a reduzir a jornada? Será que essa solução ainda funciona?
Dir-se-ia que será sempre uma solução insuficiente. Se a jornada de trabalho desce muito, várias pessoas podem procurar mais de um emprego para assegurar maiores rendimentos.
Por outro lado, em grande parte dos empregos actuais a entidade patronal dá mais importância aos objectivos atingidos pelo trabalhador, do que ao número de horas passadas no escritório. Isto faz com que muitas pessoas acabem por ignorar os horários estabelecidos, trabalhando muito mais do que o número de horas semanais permitidas por lei. E como podem fazê-lo em casa ou noutros locais, a legislação laboral nunca poderá impedir esta prática, e assim não poderá garantir uma redução efectiva da oferta de trabalho.
Mas se, por si só, uma redução do número de horas de trabalho permitidas por lei não conseguirá diminuir com eficácia a oferta de trabalho e garantir que a automação ao virar da esquina gera mais prosperidade e não mais desemprego, o que poderáresultar?
A distância que vai entre a falta de tacto e o mau gosto, e o abuso de poder criminoso é a mesma distância que vai do decoro à falta de pudor que estas "virgens ofendidas" demonstram quando criticam António Costa.
Critiquem à vontade, que é sempre bom ver defender a Liberdade de expressão. Mas quando me lembro que as mesmas pessoas se mantiveram silenciosas perante um ataque incomparável, apercebo-me que a sua hipocrisia não conhece limites.
O EsquerdaRepublicana é um blogue à esquerda, independente dos partidos mas não de valores e causas, republicano, laicista, democrata e plural. Foi fundado em Março de 2005.