Na sua viagem à Escócia, Donald Trump encontrou-se com Ursula von der Leyen e ambos anunciaram as linhas mestras de um
futuro acordo entre os EUA e a UE.
Em primeiro lugar importa reforçar esta distinção: não há nenhum acordo sobre a mesa, menos ainda na iminência de ser aprovado. Tipicamente as negociações duram anos, mas o processo de aprovação pode durar muito mais.
Isto significa que o verdadeiro acordo pode ter sido a de dar a Trump uma vitória simbólica e mediática ao criar a ilusão de que se irá assinar um acordo inquestionavelmente desfavorável para a União Europeia, acordo esse que nunca chegará a ser aprovado, e assim suspender as relações comerciais entre a UE e os EUA no actual status quo, que continua a ser desfavorável para a UE, mas em muito menor grau. O verdadeiro acordo seria um "cessar fogo" não assumido, enquanto se protela um processo negocial ou burocrático por pelo menos três anos, até a UE poder negociar com uma administração americana liderada por algo que se aproxime de um estadista; com eventuais "vinganças" resultantes de um número variado de queixas na Organização Mundial do Comércio (OMC) resultantes de todas as ilegalidades que a administração Trump tem cometido neste domínio.
Devo dizer que, mesmo que seja este o caso, não deixa de ser lamentável a postura da UE, por razões que desejo expor perto do final do texto. Para já, importa analisar o conteúdo do tal futuro acordo, de acordo com o que foi inicialmente declarado à imprensa. Estas são as linhas mestras, seguidas de alguns comentários:
-A UE compromete-se comprar energia dos EUA no valor de 750 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 3 anos.
Para pormos este compromisso em perspectiva, importa aferir
quanto é que a UE gasta em energia anualmente: 318 mil milhões de dólares, dos quais 76 mil milhões de dólares são comprados aos EUA. Ora mesmo que o compromisso fosse no sentido de manter o mesmo volume de compras, sem que se previssem quaisquer flutuações na procura, ele seria extremamente prejudicial para a UE, com um impacto fortemente negativo para os preços da energia (se um vendedor sabe que o comprador está contratualmente obrigado a adquirir uma determinada quantidade do seu produto, tem fortes incentivos para aumentar o preço). Ao invés, o compromisso seria no sentido de aumentar a dependência que a UE tem face aos EUA de cerca de 24% para cerca de 80% (ou mais ainda, tendo em conta as obrigações de reduzir o consumo de combustíveis fósseis), criando vulnerabilidades perigosas ao nível geopolítico e devastando o sector industrial europeu com preços energéticos incomportáveis.
Também não é claro como é que, do ponto de vista legal, um acordo comercial poderia impôr uma obrigação deste calibre aos actores privados. Mesmo que não violasse as regras da OMC (e obviamente viola), ultrapassaria as competências das instituições europeias envolvidas na aprovação do acordo.
-A UE compromete-se a aumentar o investimento nos EUA em 600 mil milhões de dólares.
O contexto onde surge este compromisso não poderia ser mais irónico. Ainda não faz
sequer um ano desde a publicação do
relatório Draghi, cujo diagnóstico parece ter sido bem acolhido pelas instituições europeias. Ora o relatório alega que a UE sofre de um grave problema de competitividade, que é necessário um volume anual de investimento de 800 mil milhões de euros (912 mil milhões de dólares), e detém-se sobre as dificuldades em alcançar esse montante, e as reformas e sacrifícios necessários para ter a esperança de atingir esses valores. Concordemos ou não com o conteúdo do relatório, há, da parte das instituições europeias, uma enorme inconsistência entre aceitar as conclusões do relatório e dar início às reformas que propõe para depois impossibilitar o seu sucesso com este tipo de compromissos.
Acrescidamente, considerando que se trata de investimento privado, as mesmas questões legais referidas no ponto anterior também se aplicam a este.
-A UE compromete-se a aumentar os gastos em equipamento militar americano.
Embora não tenha encontrado montantes que enquadrem este compromisso, trata-se também de um compromisso de elevada gravidade, e não apenas pelas questões legais evidentes (são os Estados-membros que tomam as decisões relativas aos gastos em equipamento militar, não é uma competência da UE). Antes de Trump iniciar este mandato, já Macron tinha toda a razão na necessidade da UE ter algum grau de autonomia estratégica, quer pela política externa beligerante e agressiva que os EUA vinham mantendo, e postura prepotente e criminosa patente na recusa em aderir ao Tribunal Penal Internacional, mas também pelo evidente risco - que se veio a materializar - de vitória da extrema direita. Assim sendo, já seria importante ir reduzindo gradualmente o volume de compras de material militar aos EUA.
No entanto, a vitória de Trump elevou os perigos da dependência militar face aos EUA a novos níveis, principalmente com a insistência reiterada nas
ameaças militares à Gronelândia (que acompanharam ameaças a países como o Panamá e o Canadá, estas últimas relativamente mais discretas), um território que faz parte do Reino da Dinamarca, um Estado-membro da UE.
Dado este contexto, as compras militares aos EUA deveriam diminuir tão rápido quanto exequível sem disrupções militares muito graves. Compreende-se que se vá comprando algum equipamento que a UE não produz, enquanto vamos criando capacidade industrial para diminuir essa dependência, mas qualquer compra de equipamento militar americano que não seja estritamente necessária não constitui apenas uma miopia irresponsável e perigosa, mas também um insulto a todos os dinamarqueses, que nos poderá custar caro. Nesse sentido, este compromisso é grave independentemente dos montantes envolvidos, pois assegura uma recusa de implementar a fortíssima redução de compras que se impõe.
-A UE baixa as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 0%, os EUA sobem as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 15%.
Isto significa que os EUA conseguem obter alguma receita fiscal que incide parcialmente sobre os consumidores americanos, e parcialmente sobre os produtores europeus (a proporção depende da elasticidade das curvas de procura e oferta de cada produto), ou seja, poderão hipoteticamente conseguir uma receita fiscal que ultrapasse aquilo que os seus cidadãos pagam. Na UE faz-se o oposto, escolhe-se aceitar esta assimetria que torna a indústria europeia contribuinte líquida para o orçamento dos EUA. No curto prazo trata-se de uma espécie de "tributo" que os europeus pagam ao governo dos EUA; no longo prazo viria reforçar a narrativa relativa à eficácia de uma liderança política de extrema direita, destruindo em simultâneo a crença de que a coesão europeia conduz a melhores acordos comerciais. A nível comercial, isto vem convidar um acentuar deste tipo de assimetrias. A nível político, vem degradar a integração europeia e a confiança das instituições, bem como o apreço pela Democracia.
É nesta nota que importa dizer o seguinte: mesmo que o acordo nunca venha a ter lugar, a ilusão de que se trata de algo que a UE aceitaria tem em si uma gravidade imensa, num ambiente político onde a extrema direita está em ascensão e o apreço pelas instituições democráticas em declínio; perder esta oportunidade de aumentar a coesão europeia e tornar claro para a população europeia a importância de algum grau de integração política para evitarmos ser dominados por superpotências como os EUA e a China - e ao invés criar a percepção diametralmente oposta - tem uma gravidade bem superior a um declínio temporário nas relações comerciais atlânticas. Mesmo que a ideia seja não aprovar o acordo, este triste espectáculo de fingir que sim mostra uma preocupante miopia por parte dos nossos líderes políticos, sobrevalorizando os impactos económicos de curto prazo face à sobrevivência das condições estruturais (confiança nas instituições, respeito pelo estado de direito, etc.) que garantem algum grau de prosperidade. Devo dizer que alguns
desmentidos da Comissão Europeia quanto às três primeiras condições descritas, longe de me provocar algum tipo de alívio, reforçam a desconfiança e o receio. Ao não estarem presentes em nenhum acordo escrito tornam mais plausível a aprovação do que estiver escrito, já de si para lá do razoável ou sequer aceitável, e colocam dúvidas sobre a existência de compromissos informais "por baixo da mesa" que venham a condicionar de forma não escrutinável a política europeia. Mesmo que nada disso aconteça, a percepção pública sobre esta negociação não melhora.
Tenho lido por vezes alguma compreensão para com esta capitulação revoltante, alegando-se que os EUA estariam numa posição negocial mais forte, dado o défice comercial que vinham mantendo com a UE. Alega-se que uma guerra comercial iria favorecer os EUA na medida em que taxas aduaneiras muito elevadas de parte a parte iriam ter um impacto muito mais perverso sobre os exportadores europeus do que sobre os exportadores americanos.
Este argumento parece-me completamente equivocado. Bem pelo contrário, a União Europeia estava perante um contexto negocial particularmente desejável, e muito mais favorável que o americano.
Um indício do seu equívoco é olhar para 2022, quando a Rússia deu início à invasão em larga escala da Ucrânia. Como sabemos, a relação comercial entre a Rússia e a UE era extremamente assimétrica, sendo a UE o parceiro comercial deficitário. Além de um forte volume das relações comerciais no qual a Rússia era o parceiro superavitário, a flexibilidade da Rússia para encontrar outros clientes era muito inferior à da Europa para encontrar outros fornecedores, dada a inexistência de infra-estrutura necessária para liquefazer muito do gás exportado para a Europa, que não pode ter outros compradores (inicialmente também faltava às economias europeias infra-estrutura para comprar maiores quantidades de gás liquefeito, mas essa insuficiência foi rapidamente suprida). De acordo com esse argumento, a UE rapidamente poria a Federação Russa de joelhos, dada a força negocial que advém de uma balança comercial deficitária. Ao invés, nas fases iniciais da guerra foi a Rússia quem ameaçou (e por vezes cumpriu) interromper os fluxos comerciais, o que repetidamente condicionou a política europeia.
A realidade é que se é verdade que taxas aduaneiras elevadas iria prejudicar muito mais os exportadores europeus do que os exportadores americanos (tendo em conta a balança comercial deficitária dos EUA), pela mesma razão iriam prejudicar muito mais os consumidores americanos do que os consumidores europeus. Esta situação seria particularmente (e assimetricamente) desfavorável a Donald Trump tendo em consideração que a expectativa de que a sua administração fosse mais eficaz no combate à inflação foi uma das causas mais importantes da sua eleição. Mesmo que não tivesse sido esse o caso, e mesmo que os impactos inflacionários fossem iguais dos dois lados do Atlântico, ainda assim teríamos uma outra assimetria favorável à UE, pelo facto de Trump ter iniciado esta guerra comercial: enquanto que eventuais impactos inflacionários elevados sentidos nos EUA na sequência de uma guerra comercial seriam lidos como sendo da responsabilidade de Trump, que a iniciou, qualquer impacto económico perverso sentido na Europa (nos preços, no emprego, nas exportações) iria ser encarado politicamente com maior compreensão, como uma custosa mas necessária defesa perante uma agressão não provocada. Foi isso que se viu no Canadá, na Austrália, e mais recentemente no Brasil: os eleitores recompensarem politicamente os líderes que percepcionam como tendo a coragem de enfrentar o bullying de Trump. Dentro de um ano os EUA vão realizar eleições intercalares nas quais Trump se arrisca a perder a maioria do Congresso (o que até poderia abrir portas à sua destituição), pelo que é Trump quem não tem condições políticas para enfrentar taxas aduaneiras muito elevadas com o seu principal parceiro comercial.
Bem pelo contrário. Se a UE reconhece (e bem) a necessidade de reformar a legislação relativa ao mercado dos serviços digitais no sentido de melhor proteger a sua soberania (naturalmente de forma desfavorável às multinacionais americanas no sector), seriam de compreender hesitações em avançar num contexto onde se esperaria uma retaliação dos EUA que fosse disruptiva face às relações comerciais entre os dois blocos com prejuízos económicos de parte a parte cuja culpa seria colocada nos líderes europeus, vistos como quem iniciou o conflito. Mas eis que Trump ofereceu à UE uma excelente oportunidade: ao iniciar as hostilidades com as taxas aduaneiras a 10%, permitiu que a UE pudesse fazer o que tem de ser feito para garantir a nossa segurança e soberania, permitindo enquadrar aos olhos da população tal legislação como "retaliatória", e precisamente num contexto onde qualquer grau de escalada do conflito seria muito menos comportável por parte de Trump, dadas as assimetrias mencionadas. Pelo caminho, iria fortalecer-se a identidade europeia, que ganha força precisamente no contexto de agressões externas, e a confiança nas instituições.
Foi esta a oportunidade que, por gritante cobardia, os nossos líderes à escala europeia decidiram perder.
Urge suprir o défice democrático europeu.