Qual é o número de casas vagas que é normal numa grande cidade europeia? Está muito distante deste valor: em Munique, Frankfurt, Freiburg, Münster, Darmstadt o valor ronda os 0,2%, mas este valor sobe para 3% em Amesterdão ou Dublin, 4% em Londres, 6% em Milão, 8% em Roma ou Viena e até 10% em Atenas, sendo que Paris é a única cidade europeia importante com um valor semelhante a Lisboa, os mesmos 15%.
sábado, 27 de setembro de 2025
Uma bolha imobiliária em Lisboa
Qual é o número de casas vagas que é normal numa grande cidade europeia? Está muito distante deste valor: em Munique, Frankfurt, Freiburg, Münster, Darmstadt o valor ronda os 0,2%, mas este valor sobe para 3% em Amesterdão ou Dublin, 4% em Londres, 6% em Milão, 8% em Roma ou Viena e até 10% em Atenas, sendo que Paris é a única cidade europeia importante com um valor semelhante a Lisboa, os mesmos 15%.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
O Tributo
Reproduzo um texto publicado na página da TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo para cuja redacção contribuí:
No passado dia 21 de Agosto foi publicada uma declaração conjunta sobre as linhas condutoras para um acordo comercial entre os EUA e a UE. Já tinham sido feitas declarações sobre as ditas linhas condutoras no dia 28 de Julho, enquadradas na visita de Donald Trump à Escócia. Na sequência das declarações da altura, houve a percepção generalizada – de que partilho e procurarei fundamentar – de que o acordo representava uma capitulação em toda a linha por parte da União Europeia, de que se tratava de um acordo humilhante no quanto iria subordinar, de forma desequilibrada e injusta, os interesses europeus face aos interesses dos EUA.
Deve dizer-se que o acordo em si não deve estar para breve (a negociação e aprovação nas instituições da UE tipicamente demora vários anos, por vezes décadas), mas há um aspecto do mesmo que teve implementação imediata e já está em vigor. As taxas aduaneiras dos EUA face à União Europeia sobre a generalidade dos produtos subiram para 15% (estavam em cerca de 1,2% antes de Trump iniciar o seu mandato), enquanto as taxas da UE sobre os EUA (que eram cerca de 3% antes do início do mandato de Trump) devem deixar de existir brevemente.
É importante frisar que esta assimetria significa que os negócios europeus que exportam para os EUA vão pagar parte do orçamento de estado deste país. Por vezes diz-se, erroneamente, que quem paga as taxas aduaneiras dos EUA são exclusivamente os consumidores norte-americanos. Desse ponto de vista equivocado, os consumidores europeus são poupados a pagar este imposto sobre o consumo aos governos europeus, enquanto os consumidores americanos terão de pagar os tais 15% ao governo dos EUA. Mas esse ponto de vista ignora que a incidência real dos impostos sobre o consumo é, geralmente, distribuída pelas duas partes que participam na transacção: parte do valor é pago pelos consumidores, cujo produto fica mais caro após as taxas cobradas, mas outra parte do valor é pago pelos produtores, cujo produto fica mais barato antes das taxas serem aplicadas, para não perder competitividade e assim maximizar os lucros (veja-se o exemplo do vinho português). Na realidade, sabemos que a proporção que cabe a cada uma das partes depende da sensibilidade da procura e oferta ao preço do produto: no caso de produtos facilmente substituíveis ou dispensáveis o produtor acaba por pagar uma proporção maior; no caso de produtos essenciais dificilmente substituíveis, o consumidor é quem paga uma maior proporção do custo. Para pequenas economias abertas, é verdade que os consumidores acabam por pagar a quase totalidade das taxas aduaneiras aplicadas; mas os EUA estão longe de ser uma pequena economia aberta, pelo que a receita obtida pelas taxas aduaneiras sobre produtos europeus será, numa parte substancial paga pelos produtores europeus. A estimativa da Goldman Sachs aponta para os 14% para já, podendo chegar aos 25% num prazo mais alargado.
Apesar do ponto anterior ser o único que está em vigor, importa falar nos restantes. Dia 28 de Julho anunciou-se que a UE se comprometeria a comprar bens energéticos no valor de 750 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 3 anos. Para colocarmos este compromisso em perspectiva, importa aferir quanto é que a UE gasta em energia anualmente: 318 mil milhões de dólares, dos quais 76 mil milhões de dólares (em combustíveis fósseis, cujo consumo a UE se comprometeu a reduzir) são comprados aos EUA. O ponto mais positivo deste compromisso é a sua inequívoca ilegalidade: nenhuma instituição europeia tem competências para garantir o seu cumprimento, nem deveria ter. Um compromisso deste cariz poderia levar os produtores americanos a limitarem-se a triplicar o preço dos combustíveis fósseis que vendem, sem aumentar a produção, na certeza de que os agentes económicos europeus seriam obrigados a pagar tais preços extorsionários para cumprir os seus compromissos internacionais. É uma exigência tão absurda que não tem sido levada a sério.
Também não tem sido levada a sério a exigência de um aumento do investimento europeu nos EUA em 600 mil milhões de dólares. Tem-se dito que isso é uma consequência expectável do saldo comercial bilateral que a UE vai mantendo com os EUA (embora esta relação exista para saldos agregados, não para saldos bilaterais), mas isso não tem em consideração que o compromisso pode mudar as dinâmicas de mercado, conduzindo a distorções desfavoráveis aos interesses europeus. Também aqui, o lado mais positivo deste compromisso é a sua ilegalidade: as instituições europeias não têm competências para garantir investimentos privados com este volume, pelo que dificilmente qualquer acordo aprovado irá traduzir esta intenção de forma fidedigna.
Finalmente, foi também feita a exigência da UE aumentar os seus gastos em armamento norte-americano. A ameaça russa tem levado alguns comentadores a menorizar este compromisso, na medida em que será expectável um aumento do gasto militar da UE nos próximos anos que, argumenta-se, naturalmente também passaria por um gasto acrescido em equipamento dos EUA. Isto não obstante os EUA terem, precisamente em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, mostrado uma falta de compromisso para com os seus aliados, uma política errática, imprevisível, e indiferente ao direito internacional. Isto não obstante os EUA terem, recentemente, ameaçado a integridade territorial de vários países sem qualquer tipo de provocação, desde o Panamá ao Canadá, e incluindo um que faz parte da União Europeia: a Dinamarca. Compreender-se-á, face ao contexto delicado de conflito com a Federação Russa, que os Estados-membros da UE não cessem de forma imediata e repentina todas as compras militares, mesmo a uma potência que se revelou perigosa e imprevisível, mas demonstra uma enorme irresponsabilidade não iniciar desde já uma diminuição gradual da dependência militar, que seria incompatível com este compromisso. Dito isto, uma incompatibilidade mais imediata e inequívoca com este compromisso é a lei: as instituições europeias não podem assumir este compromisso pois não faz parte das suas competências garantir o seu cumprimento.
As novidades recentes
A declaração de 21 de Agosto traz pontos acrescidos. Alguns são detalhes com os problemas de legalidade já mencionados, como por exemplo a exigência de que a União Europeia gaste 40 mil milhões de dólares em circuitos integrados americanos associados à inteligência artificial. Outros são mais graves, pois dizem respeito à “harmonização regulatória” nomeadamente nos sectores automóvel, agrícola, pecuário e florestal – as disposições que faziam parte do acordo transatlântico entre a União Europeia e os EUA (TTIP), felizmente enterrado. Os padrões de segurança e exigência dos EUA nestes campos não são considerados apropriados pelos especialistas, nem pelos eleitores europeus, mas existe a vontade de os impôr pela via de negociações onde a sociedade civil é mantida à margem. A título de exemplo, o Conselho Europeu de Segurança nos Transportes salienta que a travagem automática de emergência, testes de protecção dos peões e sistemas de assistência à manutenção na faixa de rodagem são tecnologias obrigatórias na Europa mas não nos EUA, e que podem ajudar a explicar porque é que na última década a sinistralidade na Europa tem diminuído enquanto a dos EUA tem aumentado. No campo agropecuário, os porcos e o gado bovino nos EUA podem ser medicados com ratopamina, um fármaco usado como aditivo alimentar para conseguir uma maior engorda do animal, proibido na Europa e em 156 outros países pelos riscos que comporta para a saúde dos consumidores. O mesmo acontece com a somatotropina, usada nas vacas leiteiras para aumentar a produção de leite, e a antimicrobiana, uma solução à base de cloro usada no contexto da produção aviária, procurando compensar maus padrões de segurança alimentar neste domínio.
Depois existem pontos onde se exige que a União Europeia faça por ignorar as próprias leis que tem passado, seja em relação à desflorestação, à directiva relativa à devida diligência face a violações dos Direitos Humanos nas cadeias de produção, ou ao mecanismos de ajustamento transfronteiriço de carbono. Finalmente, exige-se que a UE prescinda do seu direito de regular o sector digital como considera mais apropriado (estava a preparar-se legislação europeia para evitar a competição desleal, combater a desinformação e garantir a protecção dos consumidores nas redes sociais e outras plataformas digitais, de que Trump já se tinha queixado).
Deve referir-se que o facto do acordo ser contrário aos interesses dos consumidores e produtores europeus não implica que seja positivo para a população dos EUA, não se trata de um jogo de soma nula: a política comercial errática, imprevisível e impulsiva de Trump terá consequências devastadoras na economia americana. De qualquer forma, o aceitar destes termos vai encorajar esta política comercial no curto e no médio prazo. Por todas estas razões, parece pouco plausível que um acordo tão contrário aos interesses da população europeia (mesmo que corrigido para evitar as ilegalidades flagrantes e substanciais) tenha possibilidades de ser aprovado. Ainda assim, importa acompanhar esta situação com atenção: seria irónico que a aprovação acontecesse sem grande oposição da sociedade civil precisamente porque o acordo era demasiado perverso para ser credível.
Se a União Europeia reduzir como previsto as taxas aduaneiras para os EUA, terá uma política aduaneira ilegal de acordo com a Organização Mundial de Comércio, mas os EUA já paralisaram a instituição há alguns anos. Seja como for, estas taxas aduaneiras assimétricas já estão em vigor. Somos hoje contribuintes líquidos do orçamento de estado dos EUA.
Importa perguntar aos nossos representantes na UE porque é que haveremos de querer financiar as políticas de Donald Trump.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025
A ascensão da extrema direita e a Democracia
O Nobel de economia de 2024 foi atribuído a o Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, pela sua investigação a respeito do que torna as sociedades mais prósperas. Se resumir em muito poucas palavras, quando vemos a relação entre desenvolvimento económico e a democraticidade dos regimes não é o primeiro que causa a segunda, é a segunda que causa o primeiro.
Vendo bem, faz sentido que assim seja: quanto mais democrático é o sistema político, mais incentivo têm os actores políticos para escolher as políticas que resultam em maior bem-estar; e quanto menos democrático for o sistema político, mais as políticas acabam por ter outro objectivo, o de enriquecer e empoderar a elite extractivista que controla o regime. Mais do que fazer sentido em teoria, podemos facilmente observar esta dinâmica na prática ao longo da História.
Dois destes investigadores escreveram um livro de divulgação "(“Porque falham as Nações”) pejado de exemplos históricos relativos principalmente aos últimos séculos. Ainda assim, os autores não escreveram nada no seu livro sobre a erosão da Democracia no ocidente, apesar de ter vindo a saber que a reconhecem. É sobre isso que gostaria de escrever.
Os EUA encontravam-se sob um regime relativamente democrático na sequência do “New Deal” e assim se mantiveram nas três décadas do pós-guerra, quando a qualidade de vida no ocidente aumentou de forma vertiginosa e robusta. Foram décadas nas quais as desigualdades de rendimento foram comparativamente reduzidas e estáveis, com os salários reais (i.e., ajustados à inflação) a subir a par e passo com a produtividade. A democraticidade do regime foi-se aprofundando com o fim de alguns regimes de segregação e outras importantes vitórias dos Direitos Civis. Criou-se um forte optimismo em relação ao futuro, à ciência e ao progresso, e a sociedade tinha confiança nas elites intelectuais que também ajudavam a gerar uma prosperidade partilhada.
Em 1976 uma decisão do Supremo Tribunal iria dar início a uma gradual mudança de regime. Ao impor um sistema de financiamento de campanha onde existem formas de suborno legalizado, que depois foi reforçada pela conhecida decisão “Citizens United”, os incentivos dos actores políticos nos EUA mudaram bastante. Votar a favor de políticas impopulares entre a população em geral, mas populares entre os lobistas tornou-se uma estratégia vencedora, e com esta mudança de incentivos mudou o regime, que passou de democrático para oligárquico à medida que as políticas económicas aprovadas ou rejeitadas deixaram de estar correlacionadas com a sua popularidade entre a população em geral mas extremamente correlacionadas com a sua popularidade entre os lobistas e os 1% de população com maior rendimento. Naturalmente, as desigualdades de rendimento e património começaram a aumentar a uma velocidade vertiginosa, os salários reais deixaram de acompanhar a produtividade, gerando um descontentamento generalizado com o regime político. Uma parte substancial da população, menos politizada, mostrou-se disposta a dar força a qualquer iniciativa política que mostrasse vontade de fazer uma mudança de regime.
Assim, hoje nos EUA vemos 3 regimes em luta: o status quo oligárquico defendido pelos poderes instalados tradicionais nos partidos Democrata e Republicano; o regime autocrático (fascista) defendido pelo movimento MAGA; e o regime democrático defendido por alguns dissidentes do partido democrata (Sanders, AOC, Mandami, etc).
Existem várias causas para a ascensão da extrema direita, mas esta insatisfação com o regime actual que resulta de políticas económicas e sociais que têm provocado insatisfação é uma delas, como aliás alguma investigação científica prova.
Tenho falado mais nos EUA porque é uma realidade face à qual temos algum distanciamento, mas ao mesmo tempo conhecemos razoavelmente. No entanto, mais relevante ainda é o caso Europeu.
Aqui na Europa, apesar do crescimento económico ter sido substancialmente inferior ao dos EUA nas últimas duas décadas, a insatisfação com as políticas económicas tem sido consideravelmente inferior, como inferiores são as desigualdades, e ainda bem. Ainda assim, há problemas comuns, com enorme destaque para o facto da habitação estar cada vez mais inacessível, e o poder de compra dos salários não aumentar em linha com a produtividade. E se é verdade que nos EUA a democraticidade do regime se erodiu desde 1976 o que conduziu a políticas económicas cada vez mais afastadas do interesse público, na UE tivemos uma desejável integração política que não foi suficientemente acompanhada pela supressão do défice democrático que existe à escala federal. Como resultado, tivemos também aqui nos países da UE em geral um recuo da democraticidade do regime que eventualmente trouxe consigo piores políticas públicas e insatisfação popular. Ironicamente, essa insatisfação traz consigo acrescidas ameaças à democraticidade do regime sob a forma de insatisfação com a Democracia e ascensão da extrema direita.
É fundamental reverter este processo e aprofundar a Democracia às diferentes escalas (local, nacional, europeia). À escala europeia isto exige uma integração alicerçada na democratização do regime político em todo o continente. A vitória nesta luta parece particularmente distante, sendo muito mais visíveis as vitórias em sentido oposto, mas tal como a desastrosa vitória de Trump criou oportunidades quase impensáveis para uma vitória mais rápida dos movimentos progressistas e genuinamente democráticos, talvez algo análogo aconteça na Europa.
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
Missa de Estado? Era o que faltava
A ICAR apropriou-se da tragédia do Elevador da Glória para se vestir de Igreja de Estado. Contou para tal com a conivência do presidente da República, do Primeiro Ministro, de vários ministros e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que colaboraram na encenação, assim como políticos da «oposição».
A tragédia da Glória não foi católica, aliás não há religião comum a coreanos, um marroquino, israelitas, brasileiros, norte-americanos, um suíço, alemães, etc. E Lisboa não tem, que se saiba, religião oficial. Tal como a República.
Faz parte da liberdade religiosa a ICAR promover uma missa pela razão que entender, como faz parte dessa liberdade católicos lá irem. Só que a encenação da missa à hora dos telejornais com as altas autoridades do Estado na primeira fila foi uma descarada exibição de poder.
Não há qualquer obrigação para os políticos do poder ou da oposição de se prestarem a estas cerimónias. Há muitas formas de homenagear os mortos e confortar os vivos, e participar na forma católica é privilegiar essa igreja.
Foi confrangedor.
sexta-feira, 15 de agosto de 2025
Sobre quem recaem as taxas aduaneiras? Não é apenas sobre os consumidores
No texto anterior, a respeito do acordo aduaneiro UE-EUA, escrevi:
"Isto significa que os EUA conseguem obter alguma receita fiscal que incide parcialmente sobre os consumidores americanos, e parcialmente sobre os produtores europeus (a proporção depende da elasticidade das curvas de procura e oferta de cada produto), ou seja, poderão hipoteticamente conseguir uma receita fiscal que ultrapasse aquilo que os seus cidadãos pagam. Na UE faz-se o oposto, escolhe-se aceitar esta assimetria que torna a indústria europeia contribuinte líquida para o orçamento dos EUA. No curto prazo trata-se de uma espécie de "tributo" que os europeus pagam ao governo dos EUA; no longo prazo viria reforçar a narrativa relativa à eficácia de uma liderança política de extrema direita, destruindo em simultâneo a crença de que a coesão europeia conduz a melhores acordos comerciais. A nível comercial, isto vem convidar um acentuar deste tipo de assimetrias. A nível político, vem degradar a integração europeia e a confiança das instituições, bem como o apreço pela Democracia."
Creio que deveria ter explicado um pouco melhor este ponto, pois tenho visto muita desinformação, fruto de alguma ignorância económica, mas também de alguns equívocos compreensíveis, a respeito do impacto das taxas aduaneiras. Em particular, alguns autores, analistas e jornalistas (tipicamente sem formação económica) têm repetido que as receitas das taxas aduaneiras incidem totalmente sobre os consumidores do país que as fixa. Isto é falso. Pode ser aproximadamente verdadeiro nalguns casos extremos, mas nenhum desses casos extremos se aplica à generalidade dos produtos importados pelos EUA. Importa explicar isto em maior detalhe.
Tomemos um imposto como o IVA. Quem o paga? Existem duas formas de olhar para a questão: a incidência legal e a incidência real. Quanto à questão da incidência legal a resposta é simples: é o vendedor do bem ou serviço final que paga o IVA ao estado. Para questões do foro legal, é esta a resposta que importa. Mas, do ponto de vista económico, não é essa a resposta que importa: o que importa é a incidência real. Aqui a questão que se coloca é a seguinte: num cenário alternativo em que não existisse IVA, quem é que ficaria com os ganhos que advém dessa receita fiscal não ser cobrada? Ou seja, quem é que efectivamente fica com menos dinheiro quando comparamos o cenário com impostos e sem impostos? A resposta tipicamente é: tanto o vendedor como o consumidor. Ambos pagam o imposto, em diferentes proporções. A proporção em que o vendedor e o consumidor pagam depende da sensibilidade ao preço da procura e da oferta. Vejamos dois casos extremos, e o caso mais intermédio:
-IVA quase totalmente pago pelo consumidor: insulina
Se o IVA sobre a insulina subir, é provável que o preço suba num montante muito próximo, ou seja, que o vendedor não baixe o preço anterior ao imposto. Isto acontece porque essa subida do preço da insulina não irá afastar clientes, pelo que o preço anterior aos impostos que maximiza o lucro continua a ser o mesmo. Isto acontece quando a elasticidade do preço (ou seja, o quanto variam as quantidades face a uma variação do preço) da procura é muitíssimo menor que a elasticidade da oferta.
-IVA quase totalmente pago pelo produtor: doce de figo
Se o IVA sobre o doce de figo aumentar, é provável que o preço quase não se altere, ou seja, que o produtor absorva a subida dos impostos com uma redução da margem de lucro. Isto acontece porque uma subida do preço final iria levar os consumidores a optarem por doce de pera ou doce de maçã, ou a não consumirem de todo, pelo que o preço anterior aos impostos que maximiza o lucro é aquele que garante um preço após impostos muito semelhante. Isto acontece quando a elasticidade do preço da procura é muitíssimo maior que a elasticidade da oferta.
-IVA repartido igualmente pelo produtor e consumidor
Se a elasticidade da oferta e procura forem muito semelhantes, o preço do produto antes dos impostos vai descer em aproximadamente metade do acréscimo provocado pelos impostos. Isto significa que se um determinado produto vai pagar 10c em impostos acrescidos, o consumidor pagará cerca de 5c a mais por esse produto, enquanto o produtor vai fazer 5c de lucro a menos por esse produto. Isto apenas pressupõe que os produtores fixam o preço que maximiza seus lucros.
No caso das taxas aduaneiras, o mesmo acontece, mas desta vez, quando olhamos para a incidência real das taxas aduaneiras, a parte que incide sobre produtores acaba por incidir sobre entidades económicas externas à economia.
Há, no entanto, uma confusão que explica o equívoco de assumir que o valor incide totalmente sobre os consumidores: a pequena economia aberta. Suponhamos que Portugal não estava inserido na União Europeia. Caso Portugal cobrasse taxas aduaneiras sobre as importações em geral, a pequena dimensão de Portugal no contexto da economia mundial faria com que a elasticidade do preço da oferta fosse muito alta face à elasticidade da procura. Ou seja: o mercado português seria tão reduzido face ao mercado mundial que, para maximizar os lucros, os produtores não iriam descer o preço anterior às taxas, pois poderiam vender a um preço semelhante noutros mercados, fazendo um lucro superior. Assim, este caso seria, por razões diferentes, aproximadamente semelhante ao caso da insulina: a elasticidade do preço da procura muito inferior à elasticidade do preço da oferta. Fazer uma aproximação segundo a qual os consumidores portugueses pagariam a totalidade das taxas impostas por Portugal seria, neste cenário hipotético, muito razoável. Se para uma economia da dimensão da portuguesa ninguém duvida que esta aproximação seria razoável, o caso muda de figura se falarmos de economias com a dimensão do Reino Unido, da Índia ou do Japão. E absolutamente nenhum economista consideraria tal aproximação razoável se falássemos dos três maiores blocos comerciais: a China, a UE, e - principalmente - os EUA. Os EUA não são uma pequena economia aberta, são o oposto disso.
Uma questão de que não falei neste contexto foi do "peso morto" das taxas aduaneiras. O montante que consumidores e produtores perdem tenderá a ser superior à receita que advém das taxas aduaneiras. Esta ineficiência deve-se às transacções que deixam de se realizar devido a estas taxas, as quais geram perdas mas não geram receitas. O "peso morto" aumenta de forma não linear com a taxa. Para taxas muito elevadas é possível destruir todos os benefícios económicos da relação comercial sem gerar qualquer tipo de receita; para taxas muito baixas é possível que as perdas sejam uma proporção irrisória das receitas.
Se estas ineficiências forem suficientemente baixas, e as taxas aduaneiras forem unilaterais (como nos caso dos 15% vs 0%), então é possível obter receitas fiscais por esta via muito superiores ao montante pago pelos consumidores americanos. Um exemplo: suponha-se que as receitas fiscais geram um "peso morto" correspondente a 10% do montante tributado, e suponha-se que 60% dos custos incidem sobre os consumidores norte-americanos. Nesse caso, os consumidores norte-americanos pagariam 66% do montante obtido pelo governo dos EUA, sendo os produtores europeus a pagar o restante. Como as taxas são unilaterais, a UE não cobraria nada aos produtores americanos e estaria perante uma relação "tributária". Parte do orçamento do governo federal dos EUA seria pago por agentes económicos europeus, mas o contrário não se verificaria.
Como se estas consequências não fossem suficientemente graves, importa ver o que a aceitação desta situação significaria: o encorajamento deste tipo de "agressão". Parece claro que a dinâmica aqui presente é uma do tipo "jogo do prisioneiro" repetido. Se um bloco comercial de dimensão relevante cobra taxas aduaneiras a outro bloco de forma unilateral, ele tem o benefício de ter parte das suas receitas fiscais pagas pelos produtores do outro bloco, o qual fica na situação de máxima desvantagem. Se ambos os blocos cobrarem taxas aduaneiras, ficam ambos pior por pagarem os "pesos mortos" provocados sem que a transferência fiscal seja muito relevante. Se nenhum dos blocos cobrar taxas aduaneiras, evita-se pagar o "peso morto". Nesta exposição estou a simplificar um pouco o panorama: existem por vezes boas razões para impôr taxas aduaneiras, vou agora ignorar as razões de cariz ambiental, regulatório, etc que as podem justificar (por não terem estado presentes neste contexto específico) e fazer notar que o panorama de interacções estratégicas que expus é basicamente o do jogo do prisioneiro repetido. E neste contexto sabemos que aceitar a agressão unilateral sem resposta conduz a piores desfechos colectivos no longo prazo. Isto ainda é mais grave quando a agressão vem associada a um líder que tem atacado as instituições democráticas no seu país e em todo o mundo.
Dito isto, lá porque considero que a capitulação europeia é, mais do que lamentável, verdadeiramente escabrosa e perigosa (até para o futuro da UE), isso não significa que considere que a política de Trump defende os interesses dos EUA e acabará por ser vista como um sucesso no contexto doméstico. Sim, é verdade que no curto prazo temos uma transferência fiscal a seu favor, mas num jogo do prisioneiro repetido, não apenas com a Europa mas com o resto do mundo, não é crível que os restantes agentes continuem a apostar na capitulação. Os EUA estão a escolher uma postura não-cooperante e a capitulação constante é insustentável: mais tarde ou mais cedo (e é lamentável que não seja mais cedo, para mais rapidamente se chegar a outro equilíbrio) todos irão perder, incluindo os EUA.
Acrescidamente, Trump está numa situação que é, do ponto de vista politico, particularmente vulnerável: ele foi eleito com um mandato não apenas para combater a inflação, mas até para baixar o nível de preços (o que é irrealista, mas foi a expectativa que criou). Mesmo que estas taxas unilaterais possam criar alguma receita fiscal superior aos custos que têm para os consumidores norte-americanos, esses custos têm um impacto político desproporcional por estarem em contradição directa, muito visível e objectiva, com a mais importante promessa eleitoral (os impostos sobre o consumo, como estes, também são mais regressivos que os impostos sobre o rendimento, o que faz com que à partida já tenham um impacto económico na satisfação com a economia desproporcionalmente perverso). Por esta razão acredito que poderia ser interessante não ameaçar a retaliação apenas com taxas sobre as exportações americanas, mas nalguns casos específicos (dependendo da elasticidade da oferta) com taxas sobre as exportações europeias para os EUA (como a China fez relativamente aos "minerais raros", e como o Canadá deveria fazer sobre o petróleo que os EUA isentaram).
quinta-feira, 31 de julho de 2025
O "acordo" entre os EUA e a UE

terça-feira, 1 de julho de 2025
A religião é uma liberdade, mas não um serviço público
A 2ª República portuguesa não tem religião oficial, não refere nenhuma religião na sua Constituição e, portanto, não existe qualquer religião que se possa presumir natural ou estrangeira para quem viva em Portugal. Todas as religiões são igualmente autorizadas, e praticá-las ou não é uma liberdade fundamental: a liberdade de consciência inclui o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar de religião ou de manter privada a opção religiosa.
Por outro lado, a Constituição impõe ao Estado o dever de assegurar serviços na educação, na saúde, na assistência social, na habitação económica, e até na cultura e no desporto, mas significativamente não impõe qualquer dever de subsidiar serviços religiosos.
Constitucionalmente, a religião é uma liberdade, mas não um serviço público.
Recentemente, os vereadores da Câmara Municipal de Benavente pronunciaram-se verbalmente contra a construção de uma mesquita em Samora Correia. Acontece que a construção de um templo, seja de que religião for, só depende de autorização camarária nos mesmos termos que outro qualquer edifício destinado a utilização pública. Se um dia o executivo de uma câmara municipal deliberar proibir a construção de locais de culto de uma ou várias religiões, mesmo que com a concordância maioritária dos munícipes, Portugal já não será um país livre.
Mais a norte, a Câmara Municipal do Porto decidiu ceder dois imóveis devolutos a duas associações islâmicas para construção de mesquitas, um apoio estimado em largas centenas de milhares de euros. Poucos dias depois, perante o desagrado da multidão das redes sociais, a Câmara recuou, tomando a decisão certa pela razão errada: decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora).
Continuemos pelo Porto: no mês anterior, Rui Moreira afirmara a sua determinação de «não (…) contribuir com o que quer que seja para a Igreja Católica» após a diocese se comportar como «um qualquer agente imobiliário» em vários negócios. E recordou que essa igreja goza do privilégio de explorar comercialmente monumentos nacionais. O episódio ilustra como os interesses das comunidades religiosas são muitas vezes bem deste mundo.
Há, aliás, numerosos casos de financiamento autárquico da construção ou reparação de igrejas católicas, contra os quais a Associação República e Laicidade tem protestado (recorde-se, por exemplo, os apoios à jornada da juventude católica em 2023).
Uma última paragem em Sintra, onde a justa separação entre o financiamento público a um refeitório e uma escola, e o financiamento privado a uma mesquita no mesmo edifício, não evitou que a extrema-direita que não critica o financiamento sistemático da Igreja Católica gritasse contra o inexistente financiamento a uma mesquita.
A concluir: a entrada de imigrantes não católicos e a manutenção de um regime de privilégio da Igreja Católica potenciam conflitos de religião, e a exposição de favoritismos e clientelismos religiosos.
O futuro será muito conflituoso, a menos que os responsáveis políticos tenham a coragem de aplicar um entendimento estrito da laicidade. Que significa reconhecer a liberdade de praticar qualquer religião (dentro dos limites legais), não subsidiar nenhuma, e separar rigorosamente o financiamento de atividades assistenciais (obviamente lícito) e o de atividades ou edifícios religiosos (ilícito).
(Ricardo Alves, Expresso, 1 de Julho de 2025)
sábado, 7 de junho de 2025
Esquerdas: do falhanço à renovação necessária
A esquerda teve nas eleições de 18 de Maio o seu pior resultado de sempre: tem menos de um terço dos deputados, o seu maior partido será, ineditamente, o terceiro em número de deputados, dois dos pequenos partidos de esquerda estão em mínimos históricos, enquanto o único que subiu, só após uma década ultrapassou os 4%. Pior: dada a rápida subida da extrema-direita, não parece impossível que o sistema partidário português, à semelhança de outros países europeus, se polarize entre esse extremo e um partido do centro, o que será inevitável se a imigração continuar a ser a motivação de uma grande parte do eleitorado.
Vale a pena analisar a estrutura eleitoral atual. O CH é o maior partido no eleitorado masculino abaixo dos 55 anos, sendo mais fraco apenas entre os diplomados do ensino superior; é mais forte nos concelhos com mais imigrantes, mais crime ou mais beneficiários do RSI. Pode caracterizar-se o seu eleitorado como «perdedores da globalização»: aqueles que se esperava que votassem à esquerda e pelo Estado social, mas que votam à direita e contra os imigrantes. A AD, que aspira ser o grande partido do centro, tem o eleitorado mais transversal, salientando-se apenas o seu apoio entre os diplomados do ensino superior, e nos concelhos mais católicos ou com mais empresas. Já o PS destaca-se por ter o eleitorado mais idoso, menos instruído e mais feminino. A IL e o LIVRE (partido do qual fomos fundadores e militantes até 2019) partilham um eleitorado muito jovem, instruído e urbano (especialmente onde as rendas são mais elevadas), mais masculino no primeiro caso.
A esquerda só conseguirá recuperar os votos perdidos para a direita e extrema-direita, se se dirigir às preocupações dos que se sentem esquecidos e excluídos. O país mudou, a estrutura socioeconómica alterou-se profundamente e a esquerda não acompanhou esta evolução, não compreendendo os cidadãos e usando uma linguagem tão académica que a mensagem não passa. Vejamos a questão do trabalho. A extrema-direita apresenta soluções fáceis para problemas complexos, fazendo o eleitor acreditar que se expulsar todos os imigrantes a economia recuperará por artes mágicas. E a esquerda não consegue combater estas ideias porque dirige-se principalmente aos trabalhadores que trabalham em grandes empresas, por conta de outrem ou são funcionários públicos. Na realidade, se consultarmos os últimos dados da Pordata, verificamos que o tecido empresarial em Portugal é composto por microempresas de menos de 10 trabalhadores, sendo a maioria até empresas unipessoais. São os cafés, as papelarias, os escritórios de contabilidade, as lojas de roupa que, em média, trabalham 41 horas por semana. Que propostas apresentou a esquerda para estes trabalhadores? Junte-se o número de falências de empresas que tem vindo a crescer desde 2022, e que deixa estes trabalhadores desamparados.
São os novos excluídos de uma esquerda que os ignora, tratando fiscalmente as micro e pequenas empresas como trata as grandes, ignorando completamente este tecido social e empresarial. Junte-se a proliferação de empresas de trabalho temporário, que celebram contratos com empresas de turismo, por exemplo, em que os trabalhadores não pertencem à empresa onde se apresentam para trabalhar, mas sim a outra onde são pagos pelos dias em que trabalham, sem folgas, sem extras, sem fins de semana. Onde está a esquerda para estes trabalhadores? Não será certamente a semana dos quatro dias que os motivará a votar. Onde está a esquerda que não vê que estes trabalhadores do turismo vivem das gorjetas, porque os ordenados são na ordem dos 929 euros mensais?
Onde está a esquerda que, sobre o problema da habitação, aponta o dedo apenas aos fundos imobiliários, que são um problema crescente, mas ainda residual, e não aplica medidas imediatas para baixar a prestação das casas pressionando a banca, permitindo que os juros com o crédito à habitação sejam deduzidos no IRS, possibilidade que terminou após 2010?
Onde estão as propostas da esquerda para os cidadãos endividados, que ao não conseguirem pagar os impostos ou prestações sociais, caem numa espiral de aumento de juros e de dívidas em que o Estado é apenas carrasco? Em 2024, as dívidas incobráveis diminuíram porque os cidadãos já não têm qualquer bem, ou valor líquido, para as liquidar.
Onde está a esquerda que abdicou da regionalização para ver as regiões mais esquecidas a votarem na extrema-direita?
Na verdade, onde está a esquerda? Não é por isso de estranhar que o voto na extrema-direita suba à custa do eleitorado do PS não apenas porque este não os entendeu, mas porque efetivamente os abandonou (o Estado social, só por si, não garante prosperidade). Partidos como o LIVRE sobem apenas porque captam o voto de cidadãos materialmente confortáveis, evidentemente longe de serem a maioria da população portuguesa. Para voltar a crescer, a esquerda terá de mudar estruturalmente as suas propostas perante os trabalhadores.
(Artigo de Ricardo Alves e Marisa Galiza no Observador, 6/6/2025)