quinta-feira, 31 de julho de 2025

O "acordo" entre os EUA e a UE

Na sua viagem à Escócia, Donald Trump encontrou-se com Ursula von der Leyen e ambos anunciaram as linhas mestras de um futuro acordo entre os EUA e a UE

Em primeiro lugar importa reforçar esta distinção: não há nenhum acordo sobre a mesa, menos ainda na iminência de ser aprovado. Tipicamente as negociações duram anos, mas o processo de aprovação pode durar muito mais. 
Isto significa que o verdadeiro acordo pode ter sido a de dar a Trump uma vitória simbólica e mediática ao criar a ilusão de que se irá assinar um acordo inquestionavelmente desfavorável para a União Europeia, acordo esse que nunca chegará a ser aprovado, e assim suspender as relações comerciais entre a UE e os EUA no actual status quo, que continua a ser desfavorável para a UE, mas em muito menor grau. O verdadeiro acordo seria um "cessar fogo" não assumido, enquanto se protela um processo negocial ou burocrático por pelo menos três anos, até a UE poder negociar com uma administração americana liderada por algo que se aproxime de um estadista; com eventuais "vinganças" resultantes de um número variado de queixas na Organização Mundial do Comércio (OMC) resultantes de todas as ilegalidades que a administração Trump tem cometido neste domínio.
Devo dizer que, mesmo que seja este o caso, não deixa de ser lamentável a postura da UE, por razões que desejo expor perto do final do texto. Para já, importa analisar o conteúdo do tal futuro acordo, de acordo com o que foi inicialmente declarado à imprensa. Estas são as linhas mestras, seguidas de alguns comentários:

-A UE compromete-se comprar energia dos EUA no valor de 750 mil milhões de dólares ao longo dos próximos 3 anos. 
Para pormos este compromisso em perspectiva, importa aferir quanto é que a UE gasta em energia anualmente: 318 mil milhões de dólares, dos quais 76 mil milhões de dólares são comprados aos EUA. Ora mesmo que o compromisso fosse no sentido de manter o mesmo volume de compras, sem que se previssem quaisquer flutuações na procura, ele seria extremamente prejudicial para a UE, com um impacto fortemente negativo para os preços da energia (se um vendedor sabe que o comprador está contratualmente obrigado a adquirir uma determinada quantidade do seu produto, tem fortes incentivos para aumentar o preço). Ao invés, o compromisso seria no sentido de aumentar a dependência que a UE tem face aos EUA de cerca de 24% para cerca de 80% (ou mais ainda, tendo em conta as obrigações de reduzir o consumo de combustíveis fósseis), criando vulnerabilidades perigosas ao nível geopolítico e devastando o sector industrial europeu com preços energéticos incomportáveis. 
Também não é claro como é que, do ponto de vista legal, um acordo comercial poderia impôr uma obrigação deste calibre aos actores privados. Mesmo que não violasse as regras da OMC (e obviamente viola), ultrapassaria as competências das instituições europeias envolvidas na aprovação do acordo. 

-A UE compromete-se a aumentar o investimento nos EUA em 600 mil milhões de dólares.
O contexto onde surge este compromisso não poderia ser mais irónico. Ainda não faz sequer um ano desde a publicação do relatório Draghi, cujo diagnóstico parece ter sido bem acolhido pelas instituições europeias. Ora o relatório alega que a UE sofre de um grave problema de competitividade, que é necessário um volume anual de investimento de 800 mil milhões de euros (912 mil milhões de dólares), e detém-se sobre as dificuldades em alcançar esse montante, e as reformas e sacrifícios necessários para ter a esperança de atingir esses valores. Concordemos ou não com o conteúdo do relatório, há, da parte das instituições europeias, uma enorme inconsistência entre aceitar as conclusões do relatório e dar início às reformas que propõe para depois impossibilitar o seu sucesso com este tipo de compromissos. 
Acrescidamente, considerando que se trata de investimento privado, as mesmas questões legais referidas no ponto anterior também se aplicam a este.

 -A UE compromete-se a aumentar os gastos em equipamento militar americano.
Embora não tenha encontrado montantes que enquadrem este compromisso, trata-se também de um compromisso de elevada gravidade, e não apenas pelas questões legais evidentes (são os Estados-membros que tomam as decisões relativas aos gastos em equipamento militar, não é uma competência da UE). Antes de Trump iniciar este mandato, já Macron tinha toda a razão na necessidade da UE ter algum grau de autonomia estratégica, quer pela política externa beligerante e agressiva que os EUA vinham mantendo, e postura prepotente e criminosa patente na recusa em aderir ao Tribunal Penal Internacional, mas também pelo evidente risco - que se veio a materializar - de vitória da extrema direita. Assim sendo, já seria importante ir reduzindo gradualmente o volume de compras de material militar aos EUA. 
No entanto, a vitória de Trump elevou os perigos da dependência militar face aos EUA a novos níveis, principalmente com a insistência reiterada nas ameaças militares à Gronelândia (que acompanharam ameaças a países como o Panamá e o Canadá, estas últimas relativamente mais discretas), um território que faz parte do Reino da Dinamarca, um Estado-membro da UE. 
Dado este contexto, as compras militares aos EUA deveriam diminuir tão rápido quanto exequível sem disrupções militares muito graves. Compreende-se que se vá comprando algum equipamento que a UE não produz, enquanto vamos criando capacidade industrial para diminuir essa dependência, mas qualquer compra de equipamento militar americano que não seja estritamente necessária não constitui apenas uma miopia irresponsável e perigosa, mas também um insulto a todos os dinamarqueses, que nos poderá custar caro. Nesse sentido, este compromisso é grave independentemente dos montantes envolvidos, pois assegura uma recusa de implementar a fortíssima redução de compras que se impõe. 

 -A UE baixa as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 0%, os EUA sobem as tarifas sobre a generalidade dos produtos para 15%. 
Isto significa que os EUA conseguem obter alguma receita fiscal que incide parcialmente sobre os consumidores americanos, e parcialmente sobre os produtores europeus (a proporção depende da elasticidade das curvas de procura e oferta de cada produto), ou seja, poderão hipoteticamente conseguir uma receita fiscal que ultrapasse aquilo que os seus cidadãos pagam. Na UE faz-se o oposto, escolhe-se aceitar esta assimetria que torna a indústria europeia contribuinte líquida para o orçamento dos EUA. No curto prazo trata-se de uma espécie de "tributo" que os europeus pagam ao governo dos EUA; no longo prazo viria reforçar a narrativa relativa à eficácia de uma liderança política de extrema direita, destruindo em simultâneo a crença de que a coesão europeia conduz a melhores acordos comerciais. A nível comercial, isto vem convidar um acentuar deste tipo de assimetrias. A nível político, vem degradar a integração europeia e a confiança das instituições, bem como o apreço pela Democracia.

É nesta nota que importa dizer o seguinte: mesmo que o acordo nunca venha a ter lugar, a ilusão de que se trata de algo que a UE aceitaria tem em si uma gravidade imensa, num ambiente político onde a extrema direita está em ascensão e o apreço pelas instituições democráticas em declínio; perder esta oportunidade de aumentar a coesão europeia e tornar claro para a população europeia a importância de algum grau de integração política para evitarmos ser dominados por superpotências como os EUA e a China - e ao invés criar a percepção diametralmente oposta - tem uma gravidade bem superior a um declínio temporário nas relações comerciais atlânticas. Mesmo que a ideia seja não aprovar o acordo, este triste espectáculo de fingir que sim mostra uma preocupante miopia por parte dos nossos líderes políticos, sobrevalorizando os impactos económicos de curto prazo face à sobrevivência das condições estruturais (confiança nas instituições, respeito pelo estado de direito, etc.) que garantem algum grau de prosperidade. Devo dizer que alguns desmentidos da Comissão Europeia quanto às três primeiras condições descritas, longe de me provocar algum tipo de alívio, reforçam a desconfiança e o receio. Ao não estarem presentes em nenhum acordo escrito tornam mais plausível a aprovação do que estiver escrito, já de si para lá do razoável ou sequer aceitável, e colocam dúvidas sobre a existência de compromissos informais "por baixo da mesa" que venham a condicionar de forma não escrutinável a política europeia. Mesmo que nada disso aconteça, a percepção pública sobre esta negociação não melhora.  

Tenho lido por vezes alguma compreensão para com esta capitulação revoltante, alegando-se que os EUA estariam numa posição negocial mais forte, dado o défice comercial que vinham mantendo com a UE. Alega-se que uma guerra comercial iria favorecer os EUA na medida em que taxas aduaneiras muito elevadas de parte a parte iriam ter um impacto muito mais perverso sobre os exportadores europeus do que sobre os exportadores americanos. 
Este argumento parece-me completamente equivocado. Bem pelo contrário, a União Europeia estava perante um contexto negocial particularmente desejável, e muito mais favorável que o americano. 

Um indício do seu equívoco é olhar para 2022, quando a Rússia deu início à invasão em larga escala da Ucrânia. Como sabemos, a relação comercial entre a Rússia e a UE era extremamente assimétrica, sendo a UE o parceiro comercial deficitário. Além de um forte volume das relações comerciais no qual a Rússia era o parceiro superavitário, a flexibilidade da Rússia para encontrar outros clientes era muito inferior à da Europa para encontrar outros fornecedores, dada a inexistência de infra-estrutura necessária para liquefazer muito do gás exportado para a Europa, que não pode ter outros compradores (inicialmente também faltava às economias europeias infra-estrutura para comprar maiores quantidades de gás liquefeito, mas essa insuficiência foi rapidamente suprida). De acordo com esse argumento, a UE rapidamente poria a Federação Russa de joelhos, dada a força negocial que advém de uma balança comercial deficitária. Ao invés, nas fases iniciais da guerra foi a Rússia quem ameaçou (e por vezes cumpriu) interromper os fluxos comerciais, o que repetidamente condicionou a política europeia.

A realidade é que se é verdade que taxas aduaneiras elevadas iria prejudicar muito mais os exportadores europeus do que os exportadores americanos (tendo em conta a balança comercial deficitária dos EUA), pela mesma razão iriam prejudicar muito mais os consumidores americanos do que os consumidores europeus. Esta situação seria particularmente (e assimetricamente) desfavorável a Donald Trump tendo em consideração que a expectativa de que a sua administração fosse mais eficaz no combate à inflação foi uma das causas mais importantes da sua eleição. Mesmo que não tivesse sido esse o caso, e mesmo que os impactos inflacionários fossem iguais dos dois lados do Atlântico, ainda assim teríamos uma outra assimetria favorável à UE, pelo facto de Trump ter iniciado esta guerra comercial: enquanto que eventuais impactos inflacionários elevados sentidos nos EUA na sequência de uma guerra comercial seriam lidos como sendo da responsabilidade de Trump, que a iniciou, qualquer impacto económico perverso sentido na Europa (nos preços, no emprego, nas exportações) iria ser encarado politicamente com maior compreensão, como uma custosa mas necessária defesa perante uma agressão não provocada. Foi isso que se viu no Canadá, na Austrália, e mais recentemente no Brasil: os eleitores recompensarem politicamente os líderes que percepcionam como tendo a coragem de enfrentar o bullying de Trump. Dentro de um ano os EUA vão realizar eleições intercalares nas quais Trump se arrisca a perder a maioria do Congresso (o que até poderia abrir portas à sua destituição), pelo que é Trump quem não tem condições políticas para enfrentar taxas aduaneiras muito elevadas com o seu principal parceiro comercial. 

Bem pelo contrário. Se a UE reconhece (e bem) a necessidade de reformar a legislação relativa ao mercado dos serviços digitais no sentido de melhor proteger a sua soberania (naturalmente de forma desfavorável às multinacionais americanas no sector), seriam de compreender hesitações em avançar num contexto onde se esperaria uma retaliação dos EUA que fosse disruptiva face às relações comerciais entre os dois blocos com prejuízos económicos de parte a parte cuja culpa seria colocada nos líderes europeus, vistos como quem iniciou o conflito. Mas eis que Trump ofereceu à UE uma excelente oportunidade: ao iniciar as hostilidades com as taxas aduaneiras a 10%, permitiu que a UE pudesse fazer o que tem de ser feito para garantir a nossa segurança e soberania, permitindo enquadrar aos olhos da população tal legislação como "retaliatória", e precisamente num contexto onde qualquer grau de escalada do conflito seria muito menos comportável por parte de Trump, dadas as assimetrias mencionadas. Pelo caminho, iria fortalecer-se a identidade europeia, que ganha força precisamente no contexto de agressões externas, e a confiança nas instituições. 

Foi esta a oportunidade que, por gritante cobardia, os nossos líderes à escala europeia decidiram perder. 
Urge suprir o défice democrático europeu. 

terça-feira, 1 de julho de 2025

A religião é uma liberdade, mas não um serviço público

A 2ª República portuguesa não tem religião oficial, não refere nenhuma religião na sua Constituição e, portanto, não existe qualquer religião que se possa presumir natural ou estrangeira para quem viva em Portugal. Todas as religiões são igualmente autorizadas, e praticá-las ou não é uma liberdade fundamental: a liberdade de consciência inclui o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar de religião ou de manter privada a opção religiosa.

Por outro lado, a Constituição impõe ao Estado o dever de assegurar serviços na educação, na saúde, na assistência social, na habitação económica, e até na cultura e no desporto, mas significativamente não impõe qualquer dever de subsidiar serviços religiosos.

Constitucionalmente, a religião é uma liberdade, mas não um serviço público.

Recentemente, os vereadores da Câmara Municipal de Benavente pronunciaram-se verbalmente contra a construção de uma mesquita em Samora Correia. Acontece que a construção de um templo, seja de que religião for, só depende de autorização camarária nos mesmos termos que outro qualquer edifício destinado a utilização pública. Se um dia o executivo de uma câmara municipal deliberar proibir a construção de locais de culto de uma ou várias religiões, mesmo que com a concordância maioritária dos munícipes, Portugal já não será um país livre.

Mais a norte, a Câmara Municipal do Porto decidiu ceder dois imóveis devolutos a duas associações islâmicas para construção de mesquitas, um apoio estimado em largas centenas de milhares de euros. Poucos dias depois, perante o desagrado da multidão das redes sociais, a Câmara recuou, tomando a decisão certa pela razão errada: decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora).

Continuemos pelo Porto: no mês anterior, Rui Moreira afirmara a sua determinação de «não (…) contribuir com o que quer que seja para a Igreja Católica» após a diocese se comportar como «um qualquer agente imobiliário» em vários negócios. E recordou que essa igreja goza do privilégio de explorar comercialmente monumentos nacionais. O episódio ilustra como os interesses das comunidades religiosas são muitas vezes bem deste mundo.

Há, aliás, numerosos casos de financiamento autárquico da construção ou reparação de igrejas católicas, contra os quais a Associação República e Laicidade tem protestado (recorde-se, por exemplo, os apoios à jornada da juventude católica em 2023).

Uma última paragem em Sintra, onde a justa separação entre o financiamento público a um refeitório e uma escola, e o financiamento privado a uma mesquita no mesmo edifício, não evitou que a extrema-direita que não critica o financiamento sistemático da Igreja Católica gritasse contra o inexistente financiamento a uma mesquita.

A concluir: a entrada de imigrantes não católicos e a manutenção de um regime de privilégio da Igreja Católica potenciam conflitos de religião, e a exposição de favoritismos e clientelismos religiosos.

O futuro será muito conflituoso, a menos que os responsáveis políticos tenham a coragem de aplicar um entendimento estrito da laicidade. Que significa reconhecer a liberdade de praticar qualquer religião (dentro dos limites legais), não subsidiar nenhuma, e separar rigorosamente o financiamento de atividades assistenciais (obviamente lícito) e o de atividades ou edifícios religiosos (ilícito).

(Ricardo Alves, Expresso, 1 de Julho de 2025)

sábado, 7 de junho de 2025

Esquerdas: do falhanço à renovação necessária

A esquerda teve nas eleições de 18 de Maio o seu pior resultado de sempre: tem menos de um terço dos deputados, o seu maior partido será, ineditamente, o terceiro em número de deputados, dois dos pequenos partidos de esquerda estão em mínimos históricos, enquanto o único que subiu, só após uma década ultrapassou os 4%. Pior: dada a rápida subida da extrema-direita, não parece impossível que o sistema partidário português, à semelhança de outros países europeus, se polarize entre esse extremo e um partido do centro, o que será inevitável se a imigração continuar a ser a motivação de uma grande parte do eleitorado.

Vale a pena analisar a estrutura eleitoral atual. O CH é o maior partido no eleitorado masculino abaixo dos 55 anos, sendo mais fraco apenas entre os diplomados do ensino superior; é mais forte nos concelhos com mais imigrantes, mais crime ou mais beneficiários do RSI. Pode caracterizar-se o seu eleitorado como «perdedores da globalização»: aqueles que se esperava que votassem à esquerda e pelo Estado social, mas que votam à direita e contra os imigrantes. A AD, que aspira ser o grande partido do centro, tem o eleitorado mais transversal, salientando-se apenas o seu apoio entre os diplomados do ensino superior, e nos concelhos mais católicos ou com mais empresas. Já o PS destaca-se por ter o eleitorado mais idoso, menos instruído e mais feminino. A IL e o LIVRE (partido do qual fomos fundadores e militantes até 2019) partilham um eleitorado muito jovem, instruído e urbano (especialmente onde as rendas são mais elevadas), mais masculino no primeiro caso.

A esquerda só conseguirá recuperar os votos perdidos para a direita e extrema-direita, se se dirigir às preocupações dos que se sentem esquecidos e excluídos. O país mudou, a estrutura socioeconómica alterou-se profundamente e a esquerda não acompanhou esta evolução, não compreendendo os cidadãos e usando uma linguagem tão académica que a mensagem não passa. Vejamos a questão do trabalho. A extrema-direita apresenta soluções fáceis para problemas complexos, fazendo o eleitor acreditar que se expulsar todos os imigrantes a economia recuperará por artes mágicas. E a esquerda não consegue combater estas ideias porque dirige-se principalmente aos trabalhadores que trabalham em grandes empresas, por conta de outrem ou são funcionários públicos. Na realidade, se consultarmos os últimos dados da Pordata, verificamos que o tecido empresarial em Portugal é composto por microempresas de menos de 10 trabalhadores, sendo a maioria até empresas unipessoais. São os cafés, as papelarias, os escritórios de contabilidade, as lojas de roupa que, em média, trabalham 41 horas por semana. Que propostas apresentou a esquerda para estes trabalhadores? Junte-se o número de falências de empresas que tem vindo a crescer desde 2022, e que deixa estes trabalhadores desamparados.

São os novos excluídos de uma esquerda que os ignora, tratando fiscalmente as micro e pequenas empresas como trata as grandes, ignorando completamente este tecido social e empresarial. Junte-se a proliferação de empresas de trabalho temporário, que celebram contratos com empresas de turismo, por exemplo, em que os trabalhadores não pertencem à empresa onde se apresentam para trabalhar, mas sim a outra onde são pagos pelos dias em que trabalham, sem folgas, sem extras, sem fins de semana. Onde está a esquerda para estes trabalhadores? Não será certamente a semana dos quatro dias que os motivará a votar. Onde está a esquerda que não vê que estes trabalhadores do turismo vivem das gorjetas, porque os ordenados são na ordem dos 929 euros mensais?

Onde está a esquerda que, sobre o problema da habitação, aponta o dedo apenas aos fundos imobiliários, que são um problema crescente, mas ainda residual, e não aplica medidas imediatas para baixar a prestação das casas pressionando a banca, permitindo que os juros com o crédito à habitação sejam deduzidos no IRS, possibilidade que terminou após 2010?

Onde estão as propostas da esquerda para os cidadãos endividados, que ao não conseguirem pagar os impostos ou prestações sociais, caem numa espiral de aumento de juros e de dívidas em que o Estado é apenas carrasco? Em 2024, as dívidas incobráveis diminuíram porque os cidadãos já não têm qualquer bem, ou valor líquido, para as liquidar.

Onde está a esquerda que abdicou da regionalização para ver as regiões mais esquecidas a votarem na extrema-direita?

Na verdade, onde está a esquerda? Não é por isso de estranhar que o voto na extrema-direita suba à custa do eleitorado do PS não apenas porque este não os entendeu, mas porque efetivamente os abandonou (o Estado social, só por si, não garante prosperidade). Partidos como o LIVRE sobem apenas porque captam o voto de cidadãos materialmente confortáveis, evidentemente longe de serem a maioria da população portuguesa. Para voltar a crescer, a esquerda terá de mudar estruturalmente as suas propostas perante os trabalhadores.

(Artigo de Ricardo Alves e Marisa Galiza no Observador, 6/6/2025)

domingo, 18 de maio de 2025

Um fim pode ser um princípio

A noite eleitoral de hoje pode ser o pior resultado de sempre para a esquerda: em 1987, a esquerda parlamentar teve 34% dos votos (e a direita parlamentar 55%), mas com um partido do centro (o PRD) com 5%. Hoje, a esquerda deverá ter cerca de um terço dos votos, e a direita quase dois terços. Pode até ter maioria de revisão constitucional, e à hora a que escrevo (com 95% dos votos contados) é possível que os dois maiores partidos em votos e mandatos sejam de direita.

A queda foi rápida: há pouco mais de três anos, a esquerda ainda tinha mais de metade dos votos, e uma maioria absoluta. O que aconteceu? A razão principal da ascensão da extrema direita é a imigração. Que é um filão inesgotável: mesmo que metade dos imigrantes saíssem de Portugal num ano (o que só aconteceria com uma crise económica muito grave), a extrema direita continuaria a exigir a saída dos que ficassem. A xenofobia é uma paixão insaciável.

À semelhança de boa parte da Europa, vamos ter o xadrez partidário polarizado entre a extrema-direita e o bloco central. Como acontece em França e na Alemanha, e pode acontecer no Reino Unido. Nesse cenário, os partidos à esquerda do PS (e a própria IL) tornam-se irrelevantes. Porque existiam para «completar» as maiorias do PS, arrancar cedências pontuais, e num regime de Bloco Central isso não será relevante.

O que fazer? Se houve uma mudança estrutural, a esquerda tem que se reestruturar. Tem que se reconstruir radicalmente. O que pode implicar novos partidos, federar alguns dos existentes, mas principalmente abrirem-se à sociedade civil. Porque não se pode continuar a fazer tudo como se fez até aqui.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

A laicidade na 2ª República: formalizada mas não praticada

 No dia 24 de Abril de 1974, se alguém perguntasse a um português médio qual era a instituição oficialmente não estatal que mais claramente apoiava o Estado Novo, a resposta seria muito provavelmente «a igreja [católica]». Todavia, na morte da ditadura não se fez o julgamento de meio século de união moral entre a maior igreja em Portugal e o regime de extrema-direita, nem se enterraram a generalidade dos ganhos políticos e institucionais que essa igreja conseguira através dessa aliança estreita. Pelo contrário, a laicidade seria, desde a fundação da 2ª República, garantida formalmente mas não praticada substancialmente.

A Revolução do dia 25 de Abril de 1974 deixou realmente, como se verá neste artigo, a República portuguesa actual com uma Constituição que contém um conjunto de preceitos que apontam no sentido da laicidade e poderiam moldar uma República laica. Todavia, os responsáveis políticos e institucionais ao longo das últimas cinco décadas escolheram não assumir a laicidade como um pilar do regime e até ignorar ou mesmo contradizer o espírito e a letra da Constituição de 1976, o que se tornou particularmente claro no século XXI a partir da Lei da Liberdade Religiosa (2001) e da celebração de uma nova Concordata com a Santa Sé (2004), e ainda por práticas políticas e institucionais sem resguardo nesses documentos, umas herdadas do Estado Novo e outras inovadas pela democracia, e que presumem o catolicismo como uma «religião de Estado» não oficial. As garantias de laicidade conferidas aos cidadãos na Constituição têm sido ignoradas nuns casos, defendidas noutros, e a evolução das relações com as comunidades religiosas tem sido nitidamente complexa. À questão «o Estado português é laico?» tem portanto que se responder que constitucionalmente sim, mas que a prática política e institucional se tem abstido de o concretizar, quando não tem contrariado activamente os princípios laicistas. Lamentavelmente, nenhum governo e nenhum partido desde 1976 apresentou uma vontade sistemática, coerente e continuada de laicizar as instituições estatais, ou sequer de assumir a laicidade como pilar fundamental da democracia.

  1. O que é a laicidade?

A laicidade não é a mera separação entre o Estado e as igrejas. É muito mais: é o princípio político de que o Estado se deve restringir a resolver os problemas do mundo que todos concordamos que existe. Dito de outra forma, significa que as concepções religiosas ou metafísicas não são um assunto público de que o Estado se deva ocupar e que devem ser deixadas à apreciação privada dos indivíduos. A laicidade desliga portanto a res publica – que se ocupa dos interesses comuns a todos – das finalidades religiosas – que são do interesse particular de grupos de cidadãos. A ligação política entre os indivíduos de uma República laica é assim a cidadania partilhada por todos, que deve ser exterior e cega aos laços religiosos ou de outro tipo de pertença que existam. Os valores fundamentais da laicidade são a liberdade de consciência, a igualdade dos cidadãos e a universalidade das leis. A liberdade de consciência inclui a liberdade de cada indivíduo ter uma religião, não ter religião alguma, mudar de convicção religiosa, e manter privadas as suas opções em matéria religiosa. A igualdade dos cidadãos significa que ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado pela sua opção em matéria religiosa, seja esta opção uma religião maioritária ou minoritária, ou uma opção espiritual não religiosa (como o agnosticismo ou o ateísmo). A universalidade das leis é a exigência de que não haja leis específicas para cidadãos que pertençam a uma comunidade religiosa: as leis devem ser feitas para todos, e cegas quanto às convicções em matéria religiosa. O reconhecimento de direitos específicos a comunidades religiosas (ou culturais, ou étnicas) introduz necessariamente diferenças de tratamento, e o direito à diferença, embora legítimo no quadro do exercício de liberdades iguais para todos, não pode descambar nas diferenças de Direito.

2. Do 25 de Abril à Constituição de 1976

    As circunstâncias da Revolução impuseram como urgências terminar a guerra colonial e constitucionalizar uma democracia pluralista. A colocação da laicidade como um preceito claramente definidor do futuro regime democrático não era incompatível com estes objectivos, e alguns dos novos protagonistas prometeram-no ao longo do primeiro ano do período revolucionário, designadamente preconizando a revogação da Concordata que em 1940 formalizara a aliança entre a igreja católica e uma ditadura que unia católicos militantes a fascistas e conservadores. Porém, num contexto em que os debates na sociedade e na própria Assembleia Constituinte se polarizaram em torno do carácter potencialmente socialista da 2ª República, e portanto do papel do Estado na economia, na comunicação social e mesmo nos sindicatos, a questão da laicidade foi secundarizada. Pior, a turbulência do processo revolucionário e a correlação de forças posterior ao Verão de 1975 empurraram grande parte do campo progressista para uma aliança de facto com a igreja católica, como os debates da Assembleia Constituinte demonstram. Em resumo, a laicidade seria garantida na Constituição de 1976, mas a sua aplicação prática não seria assumida como desejável pelas principais forças políticas, que evitaram causar qualquer abalo de maior ao poder fáctico da igreja católica, durante o período revolucionário e na instauração do novo regime.

    No período revolucionário e pré-constitucional, o avanço laicista mais importante foi o Protocolo Adicional à Concordata, assinado em 15 de Fevereiro de 1975 e que permitiu o divórcio aos casados pela igreja católica, mas que porém teve o efeito secundário de manter em vigor a Concordata. Esta revisão de um único artigo da Concordata de 1940 aconteceu na sequência de um movimento cívico protagonizado por Francisco Salgado Zenha e outros, tornado premente pelo grande número de casais que se tinham separado mas estavam impedidos de se divorciarem e voltar a casar por a Concordata não o permitir aos casados pela igreja católica1. Infelizmente, num sinal premonitório do que aconteceria nos meses seguintes, o próprio Protocolo Adicional reafirma explicitamente a vigência da Concordata, embora, insista-se, num momento ainda pré-constitucional.

    Nos debates da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de Abril de 1975 e formada a 2 de Junho desse ano, obviamente muito centrados na definição do carácter socialista da Revolução (e portanto em questões como o peso do Estado na economia e na sociedade ou os direitos dos trabalhadores), a laicidade não foi um ponto de discórdia saliente. Os preceitos constitucionais que estabelecem a laicidade da 2ª República foram aprovados por unanimidade em Agosto e Setembro de 1975. Desde então, a Constituição garante no seu artigo 41º que «a liberdade de consciência, religião e culto é inviolável» e que «as igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado». Todavia, o estatuto constitucional da escola privada face ao ensino público seria pretexto para um debate intenso em que a laicidade foi uma questão presente: a 9 de Setembro veio da Comissão de Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais um articulado que mantinha a extinção a prazo do ensino particular, e que garantia também que «o ensino oficial será laico». Ora, a 10 de Outubro a Conferência Episcopal Portuguesa publicou uma Nota Pastoral tomando partido pela escola privada, e no dia 14 de Outubro os partidos maioritários na Constituinte recuaram obedientemente, abandonando a «integração do ensino particular no ensino oficial», e substituindo o carácter «laico» do ensino público pela sua «não confessionalidade». O «caso Renascença» e o «Verão Quente» tinham levado a uma aliança de facto dos sectores moderados com a igreja católica contra as esquerdas radicais, consumada no texto constitucional.

    3. O período de indefinição: avanços e recuos (1976-1999)

      Nas primeiras décadas da democracia, as relações entre o Estado e a igreja católica foram geridas com muita precaução pelo poder político, sempre desejoso de evitar um regresso à «questão religiosa» da 1ª República, mas as questões geradas por novos movimentos religiosos e pela secularização de grande parte da sociedade acabaram por colocar em causa o regime de relações que, através da Concordata, reconhecia uma única comunidade religiosa.

      O Acórdão nº423/87 do Tribunal Constitucional é provavelmente o acontecimento mais paradigmático deste período: constituiu simultaneamente uma pequena vitória e uma tremenda derrota para o laicismo. Vitória porque, por uma maioria de seis votos contra quatro, foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º de um Decreto-Lei que exigia de quem não quisesse frequentar a Religião e Moral Católica uma declaração expressa nesse sentido (obrigando assim à «exteriorização» de algo da «reserva pessoal», violando o nº1 – liberdade de consciência – e o nº4 – privacidade – do artigo 41º da Constituição); derrota porque, por cinco votos a favor e cinco contra – desempatados pelo voto do Presidente do Tribunal Constitucional – não se declararou inconstitucional mais nenhum dos restantes cinco artigos do Decreto-Lei.

      Entre os juízes vencidos na declaração de inconstitucionalidade da generalidade do Decreto-Lei, Luís Nunes de Almeida afirma, na sua declaração de voto, que os demais cinco artigos «ao estabelecerem que o ensino da religião e moral católica é ministrado pelas escolas públicas, integrando o respectivo currículo escolar normal, a expensas do Estado e através de agentes seus, violam o princípio da separação das igrejas do Estado, consignado no nº4 do artigo 41º, o princípio da não confessionalidade do ensino público, vertido no nº3 do artigo 43º, e o princípio da igualdade, reconhecido no artigo 13º da Constituição da República portuguesa». Nunes de Almeida afirma no seu voto de vencido que «não é legítimo que o Estado assuma como coisa sua, adoptando-o oficialmente, o ensino de qualquer religião. Tal ensino é livre (…) mas tão-só quando praticado no âmbito da respectiva confissão», e defende um modelo próximo do francês, em que o Estado «emprestasse» os edifícios escolares para o ensino da religião, sem que este ensino fosse parte do currículo escolar nem os professores, por o serem, tivessem relação com o Estado. Uma solução que seria aceitável para os laicistas.

      Noutra esfera do poder estatal, nos anos 80 e 90 vários governos cederam às pressões da igreja católica para ter (mais uma) frequência nacional de rádio, primeiro, e depois até um canal de televisão.

      Na Assembleia da República, em 1998 os partidos políticos não tiveram a coragem de legislar a Interrupção Voluntária da Gravidez decisivamente, acabando por remeter a questão para um referendo nacional, que foi ganho tangencialmente – para espanto de muitos – pelo campo clerical (51% contra 49%), após uma campanha que demonstrou que a igreja católica tinha maior capacidade de mobilização que as organizações da sociedade civil secularizada.

      Contudo, a sociedade mudava: em meados dos anos 90, foi com intolerância e até hostilidade que os media descreveram as aquisições imobiliárias e manifestações públicas de um novo movimento religioso, a Igreja Universal do Reino de Deus. O período histórico em que o catolicismo era a religião «natural» dos portugueses estava a terminar, e tornavam-se prementes alterações no enquadramento legislativo.

      4. O desvio comunitarista (de 1999 à actualidade)

        O debate que haveria de conduzir à Lei de Liberdade Religiosa (LLR) de 2001 e à Concordata de 2004 seria marcado por duas dinâmicas opostas: os defensores da laicidade – que chegaram a tentar que a LLR se aplicasse à igreja católica – e os defensores do estatuto privilegiado do catolicismo, que no essencial acabaram por triunfar. Efetivamente, nos seus primeiros artigos a LLR densifica os direitos individuais em matéria de religião de uma forma laicista, mas no seu artigo 58 exclui a igreja católica da aplicação da lei em matéria de direitos coletivos de liberdade religiosa, hierarquizando as comunidades religiosas. A LLR permitiu de facto alargar a algumas comunidades religiosas privilégios de que a igreja católica já gozava (do reconhecimento de casamentos às isenções fiscais), mas a predominância do catolicismo sobre outras comunidades religiosas não foi beliscada.

        A Concordata de 2004 manteve o reconhecimento da ordem interna da igreja católica (o «Direito Canónico») no Direito da República, comprometeu o Estado com a oferta de Educação Moral e Religiosa Católica na Escola Pública, e garantiu a «afetação permanente» para o culto católico, livre de encargos, de uma parte significativa do património monumental do Estado. Em 2009, um conjunto de Decretos-Lei sobre a assistência religiosa nos hospitais, prisões, e nas forças armadas e de segurança viria garantir que, embora o acesso de outras comunidades religiosas aos crentes confinados nessas instituições fosse livre, só os capelães católicos seriam remunerados pelo Estado. Práticas clericais como a realização de cerimónias religiosas em escolas públicas, universidades ou inaugurações de obras mantêm-se, mesmo sendo ilegais.

        Seguir-se-iam outras «Concordatas»: em 2015, a chamada «lei dos sefarditas», que veio permitir que as sinagogas interviessem directamente nos processos de aquisição de nacionalidade dos descendentes de judeus sefarditas; e o acordo com a Comunidade Ismaelita, que reconheceu imunidades judiciais e isenções fiscais. Avança-se no sentido, bem pouco republicano, de cada comunidade religiosa ter uma lei própria, aquilo que se pode designar por desvio comunitarista. O horizonte republicano em que todos os cidadãos terão os mesmo direitos independentemente da pertença religiosa fica cada vez mais longe.

        Entretanto e em sentido contrário à evolução legislativa, a sociedade não parou de se secularizar: em 2007, os casamentos civis passaram a ser mais de metade dos novos casamentos; e em 2015, mais de metade das crianças já nasceram de pais que não estavam casados. Simultaneamente, o mesmo poder político que nunca desafiou o poder institucional e económico da igreja católica mostrou-se sensível às alterações nos costumes: em 2007, a IVG foi despenalizada após novo referendo, vencido pelo «sim» (por uma confortável margem de 59% contra 41%); em 2010, o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado; e em 2023 foi finalmente legislada a morte assistida.

        Se a laicidade nos deve proteger da ditadura da maioria, temos infelizmente que reconhecer a 2ª República manteve um regime de favorecimento simbólico e financeiro da igreja católica. Numa época em que as mudanças e os movimentos de povos aceleraram, e em que Portugal recebe um contingente significativo de muçulmanos asiáticos e evangélicos brasileiros, pode perguntar-se como será gerida a diversidade para que Portugal inexoravelmente caminha: através de um regime de predominância do catolicismo como «religião de referência», de um regime comunitarista de reconhecimento de direitos diferentes conforme as comunidades religiosas, ou por um regime de laicidade em que todos os cidadãos sejam livres e iguais?

        (Revista Ágora nº2, Abril de 2024)

        1«Artigo XXIV: Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis ao casamento católico.» [Redação de 1940 da Concordata]

        sábado, 12 de agosto de 2023

        Sim à Laicidade, não à Concordata

        Portugal assiste por estes dias a um evento católico assumidamente promovido pelo Governo da República e por muitas autarquias. Uma grande parte dos cidadãos critica o apoio financeiro do Estado e a submissão simbólica da República à Igreja organizadora, mas não a realização do evento (que decorre da liberdade religiosa). A jornada da juventude católica, um acontecimento pontual, permite lançar um olhar para formas mais sistemáticas de favorecimento.

        A Laicidade existe para nos proteger da ditadura da maioria, inclusivamente em liberdades tão fundamentais como as de consciência, expressão e circulação, mas nem é certo que a maioria hoje concorde com a promoção estatal deste evento ou com outras excepcionalidades católicas. O catolicismo foi, no passado, a religião oficial do Estado português, imposta sem piedade. Não espanta portanto o automatismo com que 78% dos residentes se identificam como "católicos" ao censo. Mas deve reflectir-se em como o comportamento social é radicalmente incongruente: 60% das crianças nascem fora do casamento, 70% dos casamentos são civis e existem 60 divórcios por cada 100 casamentos (metade dos quais de casamentos religiosos).

        No caso concreto da jornada da juventude católica, uma sondagem concluiu que 48% dos respondentes consideram que o apoio financeiro deveria ter sido menor, enquanto só 6% defendem que fosse maior e 42% concordam com o apoio dado. Existe portanto uma cada vez maior contradição entre a reverência institucional e o anacrónico favoritismo com que o poder político lida com a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), e o comportamento social e a vontade política dos cidadãos.

        A indignação contra a promoção simbólica e financeira desta jornada pode orientar-se para mudar este estado de coisas. O privilégio estrutural da ICAR em Portugal tem desde 1940 um instrumento jurídico, actualizado em 2004: a Concordata. Estabelece um regime de excepção que, ao contrário de todas as outras comunidades religiosas, reconhece automaticamente a ordem interna dessa Igreja (o "Direito Canónico") por exemplo na criação, extinção e modificação de associações e fundações, compromete a República com a oferta de "Educação Moral e Religiosa Católica" em todas as escolas públicas com professores nomeados pela autoridade eclesiástica mas contratados e pagos pelo Estado, e garante a "afectação permanente", livre de encargos, para o culto católico de uma parte significativa do património monumental do Estado. Portanto, a Concordata não confere direitos: atribui privilégios.

        Um passo decisivo para afirmar a igualdade de tratamento das comunidades religiosas (e também dos cidadãos) será revogar a Concordata, como pede a petição da Associação República e Laicidade à Assembleia da República, e aplicar a Lei da Liberdade Religiosa à ICAR. Todos os direitos necessários ao livre exercício de qualquer religião estão garantidos pela Constituição de 1976, lei fundamental do Estado português que garante as liberdades de religião e de culto, assim como as liberdades de expressão e de reunião.

        Um outro passo necessário será suprimir o n.º5 do artigo 135 do Código Penal, que coloca o segredo religioso acima do sigilo das profissões laicas, e também revogar o artigo 5.º da Concordata, que estipula que os "eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério".

        Finalmente, é claramente necessário discutir se a liberdade de consciência de cada um é realmente respeitada enquanto os impostos de todos os cidadãos financiam templos e cerimónias de uma qualquer confissão religiosa, seja a católica, a islâmica, a judaica ou a evangélica. Mais de um século depois, volta a compreender-se o sentido do artigo 4.º da Lei de Separação das Igrejas do Estado de 1911: "A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum".

        (Público, 3 de Agosto de 2023)

        sábado, 29 de julho de 2023

        Petição pela revogação da Concordata

        A Associação República e Laicidade lançou uma petição pela revogação da Concordata, que pode ser assinada aqui:

        Como reproduzido na TSF:

        • «O "favorecimento simbólico e financeiro da Igreja Católica toma formas pontuais", como a Jornada Mundial de Juventude (JMJ), que decorre de terça-feira a domingo, em Lisboa, e "formas mais sistemáticas, como a existência de 'Educação Moral e Religiosa Católica' na escola pública, a proteção do 'segredo eclesiástico' ou as isenções fiscais de que beneficiam as instituições católicas", lê-se num comunicado da associação. A associação, que já tinha criticado os gastos com o altar-palco da jornada, alertou ainda que o "favorecimento sistemático de uma comunidade religiosa é incompatível com a Constituição de 1976, e a laicidade do Estado só será concretizada se se revogar a Concordata". Só dessa forma se poderá "caminhar para a igualdade de tratamento entre comunidades religiosas e para a igualdade entre cidadãos de diferentes opções"».

        terça-feira, 11 de abril de 2023

        Se adormecemos no banho é porque a temperatura da água está boa

        Numa comunicação apresentada no Instituto "Mais Liberdade" e reproduzida na forma de ensaio no suplemento P2 do PÚBLICO de 19 de Março, João Miguel Tavares estabelece uma metáfora entre o equilíbrio no confronto das forças e ideias políticas e a temperatura ideal da água para tomar banho. Embora o autor faça dessa metáfora quase um programa político, a mesma parece-me bastante simplista e redutora. Para esta conclusão, basta considerar alguns casos onde ela é aplicada referidos no mesmo artigo. 
        Com efeito, a temperatura com a qual se atinge o conforto térmico, salvo pequenas variações, é mais ou menos a mesma para todos os seres humanos. Pode haver pessoas mais e menos friorentas ou encaloradas, mas é seguramente muito mais fácil encontrar um consenso para a temperatura da água do banho do que para uma política a seguir. Não é preciso um grande conhecimento de canalização para regular a temperatura da água do banho: com torneiras e esquentador funcionais é um problema simples. Mas governar é tudo menos simples, e uma das razões para isso é a enorme disparidade de ideias e pontos de vista, não traduzíveis numa dicotomia simplista de água fria ou quente. (É curioso que o autor classifique como redutora a dicotomia esquerda-direita, para depois acabar por resumir o seu pensamento político a uma dicotomia bem mais redutora.) Genericamente, a "metáfora do duche" parece pretender defender as virtudes do compromisso político. Essas virtudes são bem reconhecidas, mas esse compromisso tem que se estabelecer com base em convergências e pontos de vista comuns. Esses pontos de vista nunca são universais. 
         A primeira falha da metáfora está neste ponto: Tavares pretende convencer-nos de que toda a gente deve partilhar a bondade das suas ideias, como se fosse a temperatura da água do banho (daí o título: Portugal precisa de abrir a água fria, como se fosse um facto). Para nos demonstrar essa bondade e que ele próprio é um "centrista moderado" que toma banho em água morna, Tavares manifesta a sua admiração por Obama e demarca-se do pior dos EUA, o capitalismo selvagem e a total ausência de um Estado Social ou, na sua metáfora, a água gelada. Para os EUA Tavares aceita, portanto, um duche de água quente. Pela mesma lógica da metáfora, o duche de água fria deveria destinar-se a países com a água muito quente. O curioso é que os exemplos do que seria água muito quente são muito genéricos: países "de constituição de matriz marxista". Na verdade, Tavares defende que em Portugal se abra a torneira da água fria, mas não julga que a temperatura da água do banho esteja muito alta! É o próprio autor que reconhece - e acusa - o governo e a esquerda que antes o apoiava de manterem o país "adormecido", ou seja, necessariamente em conforto térmico. Não que eu concorde com este diagnóstico, pelo menos no presente, mas o que me importa aqui sublinhar é que Tavares defende que baixemos a temperatura da água do nosso banho, não por esta estar excessivamente quente, mas por achar que devemos tomar banho em água mais fria, independentemente de vivermos numa casa com aquecimento central, numa casa sem conforto térmico ou de sermos sem-abrigo. Esta opinião do autor é democrática e legítima, mas é uma opinião. Querer disfarçá-la como moderada, "de centro" e de equilíbrio é que me parece enganador e errado. 
        A justificação para esta opinião é a habitual ("não há dinheiro"), mas mais uma vez disfarçada: "a esquerda é mais cara do que a direita". Leia-se: não há dinheiro para conforto térmico para todos; há quem, tendo aquecimento central em casa, não queira mais contribuir para o aquecimento geral da água do banho. A política do governo de Passos Coelho é descrita como tendo-se limitado a aplicar o memorando da troika e não podendo ter procedido de forma diferente (mesmo tendo em conta a miséria, o desemprego e a emigração em valores recorde): nas palavras de Tavares, tudo isso foi um "duche de água fria obrigatório", preferindo assim ignorar os aspetos desse duche que apesar de tudo não eram nada obrigatórios: nomeadamente as privatizações, muito além do previsto, e os cortes nos salários e nas pensões, que a troika exigiu que fossem temporários mas que Passos quis tornar permanentes. 
        Só estes exemplos bastariam para demonstrar que, ao contrário do que Tavares vem afirmando há mais de dez anos, as políticas do governo de Passos foram uma opção ideológica (de direita), e não uma inevitabilidade. Se João Miguel Tavares não consegue ver isto, é porque provavelmente para si não há opção às políticas de direita: tais políticas são sempre uma inevitabilidade. É por isso que classifica as suas propostas como centristas e moderadas, quando de centristas e moderadas não têm nada. Tenta apresentá-las como um duche de água fria quando na verdade pretende baixar definitivamente a temperatura, independentemente do conforto térmico dos portugueses. A metáfora "Portugal precisa de abrir a torneira de água fria" traduz-se de uma forma muito mais simples, menos enganadora, como "só sairemos desta situação empobrecendo". Onde é que já ouvimos isto?