A 2ª República portuguesa não tem religião oficial, não refere nenhuma religião na sua Constituição e, portanto, não existe qualquer religião que se possa presumir natural ou estrangeira para quem viva em Portugal. Todas as religiões são igualmente autorizadas, e praticá-las ou não é uma liberdade fundamental: a liberdade de consciência inclui o direito de ter ou não ter uma religião, de mudar de religião ou de manter privada a opção religiosa.
Por outro lado, a Constituição impõe ao Estado o dever de assegurar serviços na educação, na saúde, na assistência social, na habitação económica, e até na cultura e no desporto, mas significativamente não impõe qualquer dever de subsidiar serviços religiosos.
Constitucionalmente, a religião é uma liberdade, mas não um serviço público.
Recentemente, os vereadores da Câmara Municipal de Benavente pronunciaram-se verbalmente contra a construção de uma mesquita em Samora Correia. Acontece que a construção de um templo, seja de que religião for, só depende de autorização camarária nos mesmos termos que outro qualquer edifício destinado a utilização pública. Se um dia o executivo de uma câmara municipal deliberar proibir a construção de locais de culto de uma ou várias religiões, mesmo que com a concordância maioritária dos munícipes, Portugal já não será um país livre.
Mais a norte, a Câmara Municipal do Porto decidiu ceder dois imóveis devolutos a duas associações islâmicas para construção de mesquitas, um apoio estimado em largas centenas de milhares de euros. Poucos dias depois, perante o desagrado da multidão das redes sociais, a Câmara recuou, tomando a decisão certa pela razão errada: decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora).
Continuemos pelo Porto: no mês anterior, Rui Moreira afirmara a sua determinação de «não (…) contribuir com o que quer que seja para a Igreja Católica» após a diocese se comportar como «um qualquer agente imobiliário» em vários negócios. E recordou que essa igreja goza do privilégio de explorar comercialmente monumentos nacionais. O episódio ilustra como os interesses das comunidades religiosas são muitas vezes bem deste mundo.
Há, aliás, numerosos casos de financiamento autárquico da construção ou reparação de igrejas católicas, contra os quais a Associação República e Laicidade tem protestado (recorde-se, por exemplo, os apoios à jornada da juventude católica em 2023).
Uma última paragem em Sintra, onde a justa separação entre o financiamento público a um refeitório e uma escola, e o financiamento privado a uma mesquita no mesmo edifício, não evitou que a extrema-direita que não critica o financiamento sistemático da Igreja Católica gritasse contra o inexistente financiamento a uma mesquita.
A concluir: a entrada de imigrantes não católicos e a manutenção de um regime de privilégio da Igreja Católica potenciam conflitos de religião, e a exposição de favoritismos e clientelismos religiosos.
O futuro será muito conflituoso, a menos que os responsáveis políticos tenham a coragem de aplicar um entendimento estrito da laicidade. Que significa reconhecer a liberdade de praticar qualquer religião (dentro dos limites legais), não subsidiar nenhuma, e separar rigorosamente o financiamento de atividades assistenciais (obviamente lícito) e o de atividades ou edifícios religiosos (ilícito).
(Ricardo Alves, Expresso, 1 de Julho de 2025)
5 comentários :
ainda dá uns quantos votos reparar igrejas a cair de velhas e daqui a uns anos construir mesquitas são só uns milhões de euros que se gastam
há que relevar que o islamismo contrariamente à moribunda igreja católica tornou-se mais extremista nos últimos 30 anos, nomeadamente em frança onde praticou e pratica desmandos de vária ordem, a igreja católica não é uma ameaça ao estado laico já o islamismo de influência wahabita
decisão certa porque a religião não é um serviço público que as autarquias ou o Estado central devam subsidiar; razão errada porque os preconceitos da multidão não são controláveis e no limite podem visar retirar a liberdade religiosa a minorias (veja-se o caso extremo de Samora) concedo que o caso seja retirar direitos a minorias e haja um preconceito real contra o islamismo nos últimos anos que não existia aparentemente quando se construiu a mesquita de lisboa e outras igrejas nomeadamente a evangélica terem promovido a construção de templos por todo o país sem que alguém se manifestasse
Olá Ricardo Alves,
Muito obrigada pelo artigo.
Chega pertinente, é incisivo, e adverte das complicações indesejadas, que conhecemos bem dos retornos da História, de regras, direitos e deveres, diferentes para as diferentes religiões num mesmo espaço territorial.
Só 2 notas. Não é verdade que as religiões não são serviços públicos. Na realidade, não são outra coisa.
“Liturgia” significa isso mesmo, serviço público. A “Salat al-jama'ah” pode também ser vista como um serviço público pela congregação muçulmana.
Só que são o tipo de serviço público que, como bem sublinhas, não compete ao Estado Laico financiar.
Compete aos crentes e às suas respectivas instituições religiosas.
Já os serviços públicos de assistência ao Estado, nomeadamente pela Santa Casa da Misericórdia e outras organizações que prestam serviços de assistência, nomeadamente na Saúde, estes devem/podem ser co-financiados pelo Estado, pois que serve todos, crentes e não crentes.
Dás o bom exemplo da Jornadas Mundiais da Juventude que em 2023 foram em Lisboa. Ora sendo o caso económico favorável ao evento, a ICP só tinha que pedir a soma dos investimentos necessários ao Instituto para as Obras da Religião, aka o Banco Central da Igreja Católica, no Vaticano.
O que aconteceu ali foi que Carlos Moedas e companhia, que confundem demasiadas vezes a representação dos eleitores com obra religiosa, viram ali uma oportunidade turística.
O investimento nas JMJ foi justificado, precisamente, por o caso económico ser favorável aos cofres da cidade de Lisboa. Há meios que não justificam os bons fins, bons pela perspectiva dos crentes. Certamente, que se fossem os muçulmanos a organizar um evento semelhante, com as mesmas dimensões, para a sua juventude em Portugal, cairia o carmo e não haveria qualquer co-investimento pela cidade.
A ICP deveria ter assumido a totalidade das responsabilidades, com a excepção das autorizações de utilização de espaços públicos. Ao não ter feito isto, misturaram os interesses económicos da cidade laica, pela Constituição, com os propósitos das JMJ. Lamentável e, sinceramente, nada católico, no sentido de tal prática ter sido um erro, não ser uma prática, universalmente, desejável.
Com relação à recuperação de edifícios da Igreja devolutos, penso que depende do fim, do propósito. Se forem edifícios para habitação a rendas acessíveis, estamos perante novamente um serviço público, pois que beneficia crentes e não crentes. Assim, podemos justificar uma aliança estratégica, com propósito, entre uma Paróquia e uma Câmara Municipal. Dito isto, tal aliança deve ser sempre uma decisão à escala municipal, com o consentimento informado dos eleitores, i.e. assente num projecto com execução e contas transparentes e votação pelos cidadãos à escala municipal, porque de facto, o representante político ao abrigo do artigo 41 não tem mandato constitucional para forjar tal aliança. Mas lá está, qual é o artigo mais importante? O do direito à habitação ou o da separação dos poderes do estado e da religião?
Quando a fome é muita, todos os santos ajudam.
A outra nota é em relação ao Chega gritar em nome da Igreja e vociferar justificações para vilanias em nome da mesma. Convém relembrar que os deputados do Chega não foram ordenados para falar em nome da Igreja Católica. Aliás, o seu discurso de incitamento ao ódio ao outro e de perseguição política aos imigrantes são práticas completamente contrárias aos fundamentos da Igreja de Cristo e, mais objectivamente medindo, ao corpus das Homilias do Papa Francisco e do discurso do actual Papa, Leão XIV.
Crente ou não crente, o Humanismo é um bem universal.
eu cá sou contra a construção de templos sejam evangélicos, católicos ou muçulmanos e a religião ou os cargo cult's fazem mais para dividir as gentes que aproximá-las principalmente como no brasil onde se infiltram em toda a sociedade e no poder político tentando impor aos outros as suas crenças e leis como os muçulmanos tentam fazer com a sharia e com os tabus alimentares
Enviar um comentário