No texto anterior, a respeito do acordo aduaneiro UE-EUA, escrevi:
"Isto significa que os EUA conseguem obter alguma receita fiscal que incide parcialmente sobre os consumidores americanos, e parcialmente sobre os produtores europeus (a proporção depende da elasticidade das curvas de procura e oferta de cada produto), ou seja, poderão hipoteticamente conseguir uma receita fiscal que ultrapasse aquilo que os seus cidadãos pagam. Na UE faz-se o oposto, escolhe-se aceitar esta assimetria que torna a indústria europeia contribuinte líquida para o orçamento dos EUA. No curto prazo trata-se de uma espécie de "tributo" que os europeus pagam ao governo dos EUA; no longo prazo viria reforçar a narrativa relativa à eficácia de uma liderança política de extrema direita, destruindo em simultâneo a crença de que a coesão europeia conduz a melhores acordos comerciais. A nível comercial, isto vem convidar um acentuar deste tipo de assimetrias. A nível político, vem degradar a integração europeia e a confiança das instituições, bem como o apreço pela Democracia."
Creio que deveria ter explicado um pouco melhor este ponto, pois tenho visto muita desinformação, fruto de alguma ignorância económica, mas também de alguns equívocos compreensíveis, a respeito do impacto das taxas aduaneiras. Em particular, alguns autores, analistas e jornalistas (tipicamente sem formação económica) têm repetido que as receitas das taxas aduaneiras incidem totalmente sobre os consumidores do país que as fixa. Isto é falso. Pode ser aproximadamente verdadeiro nalguns casos extremos, mas nenhum desses casos extremos se aplica à generalidade dos produtos importados pelos EUA. Importa explicar isto em maior detalhe.
Tomemos um imposto como o IVA. Quem o paga? Existem duas formas de olhar para a questão: a incidência legal e a incidência real. Quanto à questão da incidência legal a resposta é simples: é o vendedor do bem ou serviço final que paga o IVA ao estado. Para questões do foro legal, é esta a resposta que importa. Mas, do ponto de vista económico, não é essa a resposta que importa: o que importa é a incidência real. Aqui a questão que se coloca é a seguinte: num cenário alternativo em que não existisse IVA, quem é que ficaria com os ganhos que advém dessa receita fiscal não ser cobrada? Ou seja, quem é que efectivamente fica com menos dinheiro quando comparamos o cenário com impostos e sem impostos? A resposta tipicamente é: tanto o vendedor como o consumidor. Ambos pagam o imposto, em diferentes proporções. A proporção em que o vendedor e o consumidor pagam depende da sensibilidade ao preço da procura e da oferta. Vejamos dois casos extremos, e o caso mais intermédio:
-IVA quase totalmente pago pelo consumidor: insulina
Se o IVA sobre a insulina subir, é provável que o preço suba num montante muito próximo, ou seja, que o vendedor não baixe o preço anterior ao imposto. Isto acontece porque essa subida do preço da insulina não irá afastar clientes, pelo que o preço anterior aos impostos que maximiza o lucro continua a ser o mesmo. Isto acontece quando a elasticidade do preço (ou seja, o quanto variam as quantidades face a uma variação do preço) da procura é muitíssimo menor que a elasticidade da oferta.
-IVA quase totalmente pago pelo produtor: doce de figo
Se o IVA sobre o doce de figo aumentar, é provável que o preço quase não se altere, ou seja, que o produtor absorva a subida dos impostos com uma redução da margem de lucro. Isto acontece porque uma subida do preço final iria levar os consumidores a optarem por doce de pera ou doce de maçã, ou a não consumirem de todo, pelo que o preço anterior aos impostos que maximiza o lucro é aquele que garante um preço após impostos muito semelhante. Isto acontece quando a elasticidade do preço da procura é muitíssimo maior que a elasticidade da oferta.
-IVA repartido igualmente pelo produtor e consumidor
Se a elasticidade da oferta e procura forem muito semelhantes, o preço do produto antes dos impostos vai descer em aproximadamente metade do acréscimo provocado pelos impostos. Isto significa que se um determinado produto vai pagar 10c em impostos acrescidos, o consumidor pagará cerca de 5c a mais por esse produto, enquanto o produtor vai fazer 5c de lucro a menos por esse produto. Isto apenas pressupõe que os produtores fixam o preço que maximiza seus lucros.
No caso das taxas aduaneiras, o mesmo acontece, mas desta vez, quando olhamos para a incidência real das taxas aduaneiras, a parte que incide sobre produtores acaba por incidir sobre entidades económicas externas à economia.
Há, no entanto, uma confusão que explica o equívoco de assumir que o valor incide totalmente sobre os consumidores: a pequena economia aberta. Suponhamos que Portugal não estava inserido na União Europeia. Caso Portugal cobrasse taxas aduaneiras sobre as importações em geral, a pequena dimensão de Portugal no contexto da economia mundial faria com que a elasticidade do preço da oferta fosse muito alta face à elasticidade da procura. Ou seja: o mercado português seria tão reduzido face ao mercado mundial que, para maximizar os lucros, os produtores não iriam descer o preço anterior às taxas, pois poderiam vender a um preço semelhante noutros mercados, fazendo um lucro superior. Assim, este caso seria, por razões diferentes, aproximadamente semelhante ao caso da insulina: a elasticidade do preço da procura muito inferior à elasticidade do preço da oferta. Fazer uma aproximação segundo a qual os consumidores portugueses pagariam a totalidade das taxas impostas por Portugal seria, neste cenário hipotético, muito razoável. Se para uma economia da dimensão da portuguesa ninguém duvida que esta aproximação seria razoável, o caso muda de figura se falarmos de economias com a dimensão do Reino Unido, da Índia ou do Japão. E absolutamente nenhum economista consideraria tal aproximação razoável se falássemos dos três maiores blocos comerciais: a China, a UE, e - principalmente - os EUA. Os EUA não são uma pequena economia aberta, são o oposto disso.
Uma questão de que não falei neste contexto foi do "peso morto" das taxas aduaneiras. O montante que consumidores e produtores perdem tenderá a ser superior à receita que advém das taxas aduaneiras. Esta ineficiência deve-se às transacções que deixam de se realizar devido a estas taxas, as quais geram perdas mas não geram receitas. O "peso morto" aumenta de forma não linear com a taxa. Para taxas muito elevadas é possível destruir todos os benefícios económicos da relação comercial sem gerar qualquer tipo de receita; para taxas muito baixas é possível que as perdas sejam uma proporção irrisória das receitas.
Se estas ineficiências forem suficientemente baixas, e as taxas aduaneiras forem unilaterais (como nos caso dos 15% vs 0%), então é possível obter receitas fiscais por esta via muito superiores ao montante pago pelos consumidores americanos. Um exemplo: suponha-se que as receitas fiscais geram um "peso morto" correspondente a 10% do montante tributado, e suponha-se que 60% dos custos incidem sobre os consumidores norte-americanos. Nesse caso, os consumidores norte-americanos pagariam 66% do montante obtido pelo governo dos EUA, sendo os produtores europeus a pagar o restante. Como as taxas são unilaterais, a UE não cobraria nada aos produtores americanos e estaria perante uma relação "tributária". Parte do orçamento do governo federal dos EUA seria pago por agentes económicos europeus, mas o contrário não se verificaria.
Como se estas consequências não fossem suficientemente graves, importa ver o que a aceitação desta situação significaria: o encorajamento deste tipo de "agressão". Parece claro que a dinâmica aqui presente é uma do tipo "jogo do prisioneiro" repetido. Se um bloco comercial de dimensão relevante cobra taxas aduaneiras a outro bloco de forma unilateral, ele tem o benefício de ter parte das suas receitas fiscais pagas pelos produtores do outro bloco, o qual fica na situação de máxima desvantagem. Se ambos os blocos cobrarem taxas aduaneiras, ficam ambos pior por pagarem os "pesos mortos" provocados sem que a transferência fiscal seja muito relevante. Se nenhum dos blocos cobrar taxas aduaneiras, evita-se pagar o "peso morto". Nesta exposição estou a simplificar um pouco o panorama: existem por vezes boas razões para impôr taxas aduaneiras, vou agora ignorar as razões de cariz ambiental, regulatório, etc que as podem justificar (por não terem estado presentes neste contexto específico) e fazer notar que o panorama de interacções estratégicas que expus é basicamente o do jogo do prisioneiro repetido. E neste contexto sabemos que aceitar a agressão unilateral sem resposta conduz a piores desfechos colectivos no longo prazo. Isto ainda é mais grave quando a agressão vem associada a um líder que tem atacado as instituições democráticas no seu país e em todo o mundo.
Dito isto, lá porque considero que a capitulação europeia é, mais do que lamentável, verdadeiramente escabrosa e perigosa (até para o futuro da UE), isso não significa que considere que a política de Trump defende os interesses dos EUA e acabará por ser vista como um sucesso no contexto doméstico. Sim, é verdade que no curto prazo temos uma transferência fiscal a seu favor, mas num jogo do prisioneiro repetido, não apenas com a Europa mas com o resto do mundo, não é crível que os restantes agentes continuem a apostar na capitulação. Os EUA estão a escolher uma postura não-cooperante e a capitulação constante é insustentável: mais tarde ou mais cedo (e é lamentável que não seja mais cedo, para mais rapidamente se chegar a outro equilíbrio) todos irão perder, incluindo os EUA.
Acrescidamente, Trump está numa situação que é, do ponto de vista politico, particularmente vulnerável: ele foi eleito com um mandato não apenas para combater a inflação, mas até para baixar o nível de preços (o que é irrealista, mas foi a expectativa que criou). Mesmo que estas taxas unilaterais possam criar alguma receita fiscal superior aos custos que têm para os consumidores norte-americanos, esses custos têm um impacto político desproporcional por estarem em contradição directa, muito visível e objectiva, com a mais importante promessa eleitoral (os impostos sobre o consumo, como estes, também são mais regressivos que os impostos sobre o rendimento, o que faz com que à partida já tenham um impacto económico na satisfação com a economia desproporcionalmente perverso). Por esta razão acredito que poderia ser interessante não ameaçar a retaliação apenas com taxas sobre as exportações americanas, mas nalguns casos específicos (dependendo da elasticidade da oferta) com taxas sobre as exportações europeias para os EUA (como a China fez relativamente aos "minerais raros", e como o Canadá deveria fazer sobre o petróleo que os EUA isentaram).