- «Sou conhecido, entre os amigos, pelo meu espírito tolerante. Vários deles consideram-no excessivo. A prova disso é que até recebo em minha casa um ex-PIDE!Não o convidei, obviamente. Apresentou-se na minha residência, dias depois do 25 de Abril, a contar-me a sua história singular.Trata-se de um homem completamente destruído pelo sentimento de culpa. Durante o excepcional regime de incomunicabilidade que me foi imposto da ultima vez que passei pela PIDE – seis meses nos curros do Aljube! – foi encarregado de me guardar, quatro ou cinco vezes, durante a chamada tortura do sono. A sua tarefa era impedir-me de dormir. Era obrigado a estar de pé, sem me encostar à parede, enquanto durasse o castigo, ou seja, enquanto não confessasse o que eles queriam.Mas esse agente, um tal Colaço, permitiu-me, sempre que esteve de serviço, que me encostasse à parede. Recomendou-me que fechasse os olhos e tentasse descansar. Ele passearia no corredor e, quando se aproximasse algum superior, entraria no quarto e acordar-me-ia. E assim fez!Quando foi a minha casa, a seguir à Revolução de Abril, afirmou-me que se tinha apresentado na Comissão Coordenadora do FMA, pouco depois da Revolução de Abril, para contar que tinha pertencido à PIDE, mas conseguira sair daquela polícia cinco anos antes do 25 de Abril. Esse facto foi confirmado. Relatou aos militares de Abril as torturas que me foram aplicadas e que, segundo afirma, o indignaram.Por que é que ele, apesar de, por várias vezes, lhe ter dito que a sua visita me incomodava, continua a aparecer em minha casa na altura do Natal? Compreendo perfeitamente porquê. Sou o seu “álibi”!
A circunstância de um homem dos mais perseguidos pela PIDE o deixar entrar em casa alivia a sua torturada consciência.O Professor Adriano Moreira foi meu colega no Parlamento. Considerei a sua entrada para a Assembleia da República, como representante da direita democrática, um sinal politicamente relevante. Esse acto significou para mim o repúdio da ideologia fascista que tinha inspirado a sua acção como ministro do Ultramar. Mas não apagou o significado de em 1961, como ministro do Ultramar, ter tomado a decisão de mandar reabrir, através da portaria 18.539 do mesmo ano, assinada por si, o tristemente célebre Campo de Concentração do Tarrafal. Fê-lo para alojar ali os prisioneiros da guerra que Portugal conduziu contra os povos irmãos das ex-colónias.Nunca o vi repudiar essa acção. Nem autocriticar-se por ela. Não se trata, pois, ao contrário do que acontece com o Colaço, de um homem arrependido do que fez.Não posso por isso deixar de manifestar o meu espanto – solidário, como estou, com os companheiros que partilharam comigo, em épocas diferentes, o mesmo instrumento de tortura e morte – com a decisão, tomada pela Universidade do Mindelo, de conceder ao doutor Adriano Moreira o grau de Doutor Honoris Causa.Tal decisão ofende não só a memória dos que ali morreram, como os sentimentos dos que por ali passaram e conseguiram sobreviver. E não pode deixar de espantar, estou certo, a maioria dos próprios cabo-verdeanos. Tolerância, sim! Ofensas à memória colectiva, não!» (Edmundo Pedro - Um dos dois sobreviventes do “Campo da Morte Lenta”)
«entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprime, et la loi qui affranchit.»
(Lacordaire)
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