Andam-se a acender novas fogueiras (desta vez, espera-se que «simbólicas») para queimar o ateu Saramago. O seu delito? Ter dito, alto e bom som, que a Bíblia é «um manual de maus costumes», que «está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas» e que «sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores».
Surpreendentemente, até alguma esquerda o critica, talvez por ter acreditado na versão do cristianismo que alguns «católicos progressistas» lhe impingiram. Deveriam saber que «catolicismo progressista» é um oxímoro, como o são «comunismo de mercado» ou «fascismo democrático». Não se pode ser livre e cultuar a obediência. Não se pode ser pela igualdade de direitos e promover a desigualdade.
Acontece que Saramago tem razão. A Bíblia tem dois livritos, o Levítico e o Deuteronómio, de onde se extrai um código penal que mesmo há dois mil anos era bárbaro e desumano. Nele se defende a pena de morte para tudo o que os progressistas, penso eu, defendem poder ser feito livremente, do adultério à blasfémia, passando pela homossexualidade. Será que castigar desta forma a liberdade individual é um «bom costume»? É isso que queremos que as crianças aprendam? Onde fica o «progressismo»?
Saramago entendeu escrever sobre o mito de Caim. Não vou criticá-lo, mas tenho pena que não se tenha dedicado àquele que, na minha modesta opinião de ateu, é o mais atroz e mais relevante dos mitos bíblicos: o de Abraão. Aí, vemos um pai que conduz o próprio filho ao altar para ser sacrificado, por mera ordem de «Deus». Só não há infanticídio porque «Deus» decide suspender o teste. Porque de um teste se tratava e Abraão passou no teste, é recompensado com uma «descendência numerosa». O sentido do episódio é cristalino: «Deus» exige obediência, e recompensa quem obedece ao ponto de aceitar matar os próprios filhos. A essência da religião abraâmica está aqui, na obediência incondicional e acrítica. Não admira que o episódio de Abraão seja tão querido do Islão.
Os candidatos a novos inquisidores têm duas estratégias. A primeira: dizer-nos, como sempre, que o essencial é «o amor». O que é treta. Nada no Novo Testamento revela uma insistência especial no «amor». Em Lucas (17,2), Cristo chega a defender que quem atrapalhe o caminho dos seus discípulos seja atirado ao mar com uma pedra atada ao pescoço (será isto «amor»?). E o episódio central do Novo Testamento, o sacrifício de Jesus Cristo, não é sobre o amor: é sobre a obediência. Pois em Marcos (14,36), prevendo a sua prisão e condenação à morte, Cristo diz: «Pai, todas as coisas te são possíveis; afasta de mim este cálice; não seja, porém, o que eu quero, mas o que tu queres». Ou seja, depois de nos dar como modelo um pai que mata o seu filho, no episódio de Abraão, quando chegamos ao fim do conjunto de mitos reunidos na Bíblia, temos um filho que aceita que o pai não o salve da morte. Há quem ache isto bonito. Eu acho horrendo. Como acho moralmente criticável que alguém morra pelos erros e crimes dos outros. Cada um de nós deve assumir a responsabilidade pelos seus erros e crimes, e não transferir a responsabilidade para outrém. Enfim, somos melhores pessoas quando aceitamos a responsabilidade dos nossos actos, não quando fugimos à dita responsabilidade. Digo eu, que sou ateu.
A outra estratégia dos herdeiros dos inquisidores é discutir «interpretações». Dizer-nos que as defesas da morte são «simbólicas», e que as partes do «amor» (ou do «perdão») são literais. Ou que o sentido real é o contrário do que lá está escrito. Quem tiver pachorra que entre nesse debate, no qual não abunda a honestidade intelectual. Eu não a tenho. A pachorra.
Ricardo,
ResponderEliminaras observações que fazes sobre o episódio de Abraão, tanto quanto soube, também fazem parte do livro do Saramago.
Como o Cain não morre, ele anda para aí a vaguear e acompanha e participa numa série de episódios Bíblicos.
Sobre esse assunto (Abraão e a submissão aos poderosos no lugar da moralidade) ver:
http://www.youtube.com/watch?v=YqC73omSk4o&feature=player_embedded
Por coincidência falei desse episódio no meu post intitulado GÉNESIS 22, 1-19
ResponderEliminarpois, pois.
ResponderEliminare então? queima-se a bíblia ou não?
Queima tu, se quiseres.
ResponderEliminarEu uso gás da companhia. ;)
E as figueiras, não esquecer as pobres das figueiras que Jesus fulmina com um raio por não darem fruto fora de época...
ResponderEliminaresta história faz lembrar-me um comentário algures aos projectos de cloud storage por parte de um maluco, convencido que tudo não passava de um plano dos powers-to-be para fazer desaparecer livros com um click.
ResponderEliminarLúcio Ferro,
ResponderEliminarnão esquecer o que JC reserva para quem não o segue:
«Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem.» (João, 15,6)
É «amor»?
Sim Ricardo, mas eu isso até consigo compreender, afinal o tipo era humano, com a mania das grandezas, mas humano, e é humano ficarmos quilhados com quem não concorda com as nossas mais profundas convicções, i.e., de que o nosso JC seria filho de Deus.
ResponderEliminarAgora, o caso da Figueira é muito diferente disso: vejamos: a Figueira não tinha culpa de nada, ela simplesmente e como é óbvio, não dava fruto fora de época. J.C., está escrito no livro, passou-se com esse facto absolutamente natural e fulminou a árvore com um raio! Que dizer disto? Hum? Que mal lhe tinha feito a figueira? Nenhum, a única conclusão a retirar é a de que JC não batia bem da pinha, essa é que é essa, e desafio qualquer crente a interpretar o episódio de outra forma, se for capaz, mas, lá está, eles são muito selectivos na leitura do respectivo pasquim.
Dorean,
ResponderEliminartinhas razão. Há mesmo quem queira queimar a Bíblia:
http://www.publico.clix.pt/Cultura/igreja-baptista-planeia-queimar-livros-e-musica-no-dia-das-bruxas_1405451
"Pachorra". Você disse a palavra, Ricardo. Já não há pachorra para discutir com quem não mostra ter outra procupação na vida do que as opções de vida pessoais dos outros.
ResponderEliminarEste filme é velho. Só mudou de sala.
«Já não há pachorra para discutir com quem não mostra ter outra procupação na vida do que as opções de vida pessoais dos outros.»
ResponderEliminarPelos visto há...